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Privilégios materiais para instituições religiosas

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 193-196)

Uma forma importante de aporte econômico às instituições religiosas consiste na doação de terrenos para a construção de templos, da qual o caso mais importante no período republicano foi a construção da catedral de Brasília. Terrenos continuam a ser doados a instituições religiosas, tanto para a construção de templos quanto para suas instituições educacionais e de assistência social. Um caso que suscitou amplo debate, em 1970, foi a cessão à PUC-Rio, por um século, do terreno situado ao lado de seu câmpus, depois da transferência dos moradores do Parque Proletário da Gávea para um distante conjunto habitacional. Hoje é aí que se situam o estacionamento, o ginásio, além de edificações destinadas à pesquisa.

Em Florianópolis, a Câmara de Vereadores aprovou duas leis, em 2017, doando terrenos para a construção de templos para as igrejas Assembleia de Deus Fazendo Missão e Assembleia de Deus Ministério de Firminópolis. No mesmo ano, o promotor de Justiça Ricardo Lemos Guerra pediu a anulação dessas leis. De imediato, obteve liminar no pedido de paralisação das obras e devolução dos terrenos à prefeitura. No dizer do promotor, não há correspondência entre as atividades de uma igreja e os interesses da sociedade. Como o Estado brasileiro é laico, a administração estava impedida de amparar qualquer forma de atividade religiosa.11

Outro mecanismo comum no Brasil é a doação de recursos financeiros públicos para a construção de templos. No seu terceiro mandato de prefeito da cidade do Rio de Janeiro (2005/2009), Cesar Maia determinou que a Empresa Municipal de Urbanização transferisse R$ 149 mil reais à Mitra Diocesana para a construção do templo de São Jorge, no bairro de Santa Cruz. Em 2012, o Tribunal de Justiça fluminense condenou o ex-prefeito e a diocese a ressarcirem os cofres municipais da quantia ilegalmente transferida à Igreja, além de cassar os direitos políticos de Cesar Maia nos cinco anos seguintes, por improbidade administrativa.12 Dois anos depois, o Superior Tribunal de Justiça aprovou o recurso do ex-prefeito e suspendeu a punição que lhe havia sido imposta. Recuperando seus direitos políticos, ele se candidatou a vereador, foi eleito e tomou posse em 2013, sendo reeleito quatro anos depois.

11 MONTEIRO, M. Liminar determina paralisação das obras de igrejas em áreas públicas de Firminópolis. Jornal Opção, Goiânia, 01 fev. 2018. Disponível em: <https://www. jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/liminar-determina-paralisacao-da-obras-de-igrejas-em- areas-publicas-de-firminopolis-116136/>. Acesso em: 2 maio 2018.

12 Justiça condena ex-prefeito do Rio e empresas por construção de igreja. Denuncio, [s.d]. Disponível em: http://denuncio.com.br/noticias/justica-condena-ex-prefeito-do-rio-e- empresas-por-construcao-de-igreja/14818/. Acesso em: 23 mar. 2018.

Mais sucesso teve a arquidiocese de Palmas (TO), beneficiada com a doação de um terreno na praça central da cidade, onde se situavam as instalações da administração estadual. A Lei Estadual nº 789, de 1995, aprovou a doação do terreno, que, no entanto, foi alvo de ação popular. Argumentando contra a transgressão da laicidade do Estado, como previsto na Constituição Federal, a doação não poderia ser feita. No entanto, o juiz Vandré Marques e Silva, da 4ª Vara da Fazenda Pública do Tocantins confirmou a validade da doação, porque ela atendia “ao anseio da grande maioria da população, notadamente católica”,13 sentença essa confirmada pelo Tribunal de Justiça em 2017, sem direito a recurso.

Uma espécie de complemento simbólico às transferências de recursos financeiros às instituições religiosas é a grafia de mensagem religiosa em espaços públicos. José Sarney, quando presidente da República, inovou nesse quesito ao mandar grafar nas cédulas do cruzado, nova moeda impressa a partir de fevereiro de 1986, a expressão “Deus seja louvado”, versão brasileira de “In God we trust” do dólar norte-americano. No início de nova reforma monetária, no governo de Itamar Franco, em março de 1994, as cédulas do real começaram a ser impressas sem aquela frase, mas logo ela retornou ao lugar onde permanece até hoje. Reações contra essa inscrição religiosa chegaram ao Ministério Público do Estado de São Paulo, que notificou o Banco Central em 2010. Sem resposta convincente, o MP pediu à Justiça Federal a retirada da frase “Deus seja louvado” das cédulas de real, por ofensa à laicidade do Estado. O interessante nesse caso é que o procurador que moveu a ação era declaradamente católico, e a justificou com base no princípio constitucional de liberdade religiosa. A indignação de certas lideranças religiosas chegou ao ponto de justificar a inscrição pelo preâmbulo da Constituição, que menciona a proteção divina evocada pelos parlamentares constituintes. Em 2013, a Justiça Federal negou o pedido do MP, alegando que aquela expressão nada tinha contra a laicidade do Estado, que não repudiaria a fé, ao contrário a apoia como no caso dos feriados religiosos.14

O deputado federal paulista Fausto Pinato apresentou o Projeto de Lei nº 181, em 2015, que determina a isenção de pagamento de impostos sobre produtos industrializados e sobre importação incidentes sobre a comercialização de 13 Justiça decide que terreno foi legalmente doado à Catedral do Divino Espírito Santo em Palmas. Conexão Tocantins, Palmas, 03 abr. 2017. Disponível em: <https://conexaoto. com.br/2017/04/03/justica-decide-que-terreno-foi-legalmente-doado-a-catedral-do-divino- espirito-santo-em-palmas>. Acesso em: 10 maio 2017.

14 CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ministério Público em

material de construção, obra de arte e objeto decorativo considerado sagrado e/ou de valor histórico cultural para templos religiosos. A justificação do projeto foi de duas naturezas. A primeira, de caráter jurídico, isto é, se a Constituição isenta os templos de impostos, deveria estender esse dispositivo para a importação de materiais e obras artísticas a serem empregadas neles. A segunda é de incentivo ao turismo, sobre o que o deputado lançou mão de dados estatísticos, que estimam em 6,6 milhões o número de pessoas que se deslocaram de um estado a outro por razão de culto religioso, em 2010, correspondente a 3,6% do número de viagens domésticas registradas pelo Ministério do Turismo. Fausto Pinato mostrou exemplos de templos de religiões diferentes, que atraem turistas, além dos frequentadores habituais. Entre eles, dois no Estado de São Paulo, a basílica de Nossa Senhora Aparecida, católica, e o Templo de Salomão, evangélico pentecostal; e outro em Pernambuco, a sinagoga Kahal zur Israel, judaica. Com isso, ele pretendeu mostrar que seu projeto não visava beneficiar apenas uma religião, mas todas.

As doações de recursos materiais podem até mesmo chegar ao estrangeiro. Em janeiro de 2018, no curto período em que ocupou a Presidência da República, o deputado Rodrigo Maia assinou a Medida Provisória nº 819, autorizando o Governo Federal a doar R$ 792 mil ao Estado da Palestina para restaurar a basílica da Natividade, na cidade de Belém, situada na Cisjordânia. Segundo a tradição, foi nesse lugar que Jesus teria nascido. O templo é administrado pela Igreja Ortodoxa Grega, pela Igreja Apostólica Armênia e pelo Patriarcado Latino de Jerusalém (Vaticano). A doação ocorreu três meses depois que o deputado/ presidente visitou o templo junto com uma comitiva parlamentar brasileira, ocasião em que os administradores pediram a contribuição brasileira.15 Não se conhece o desfecho da medida provisória, se ela será aprovada mediante alguma recompensa à bancada religiosa nacional, simplesmente rejeitada ou condenada a perder a validade por decurso de prazo.

Um privilégio ao mesmo tempo material e simbólico é a concessão, pelo governo federal, de passaportes diplomáticos a dirigentes religiosos. No tempo do Império, quando o Estado brasileiro tinha uma religião oficial, os bispos recebiam passaportes diplomáticos para suas viagens a Roma. Depois da proclamação da República, esse privilégio não poderia ser tolerado, devido à laicidade do Estado, mas fazia parte do menu de trocas políticas, nas quais entravam os altos dirigentes da Igreja Católica, assim como políticos e seus familiares. Em 2011, depois de denúncias de que familiares do ex-presidente 15 MUSA AL-SHAER. Maia doa R$ 792 mil a palestinos para restaurar basílica da Natividade. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 dez. 2017. Disponível em: <http://www1.folha. uol.com.br/mundo/2018/01/1953771-maia-doa-r-792-mil-a-palestinos-para-restaurar-basilica- da-natividade.shtml>. Acesso em: 02 maio 2018.

Lula manteriam seus passaportes diplomáticos, o Ministério das Relações Exteriores emitiu a Portaria nº 98, em 21 de janeiro, deixando claro que essa proteção do Estado somente caberia a quem estivesse no “desempenho de missão ou atividade continuada de especial interesse do país”.

O critério não foi seguido à risca, pelo menos em dois casos. Em 2013, no governo Dilma Rousseff, o dirigente da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdemiro Santiago de Oliveira, e sua mulher receberam passaporte diplomático para viagem ao exterior. E, em 2017, já com Michel Temer na Presidência da República, o ministro José Serra autorizou a concessão de passaporte diplomático ao pastor Samuel Ferreira e sua mulher, ambos pastores da Assembleia de Deus, assim como ao pastor R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus. Neste caso, uma ação popular movida pelo advogado Ricardo Amin Abrahão questionou esse privilégio. A juíza Diana Brunstein determinou o recolhimento do passaporte, mostrando, na justificativa da sentença, que as viagens constantes do dirigente religioso visam à propagação da doutrina cristã e a defesa dos interesses de sua igreja. O Estado laico não poderia garantir tal privilégio.16

Deixei para o fim deste subitem o caso mais ostensivo de uso do poder para favorecer uma instituição religiosa. Foi em Serrita (PE), onde o prefeito Carlos Eurico Ferreira Cecílio mandou descontar quantias de valor variado dos salários dos servidores para o financiamento de uma capela católica. Em 2010, o Ministério Público instaurou processo que culminou na condenação do ex- prefeito a pagar multa e não poder contratar com o Poder Público durante três anos. Em sua defesa, o acusado alegou que Serrita era uma cidade católica apostólica romana, mas o promotor Wesley Odeon dos Santos argumentou que ele havia ferido o princípio da laicidade do Estado, que proíbe a subvenção de igrejas da parte da União, dos estados e dos municípios.17

No documento Embates em torno do Estado laico (páginas 193-196)