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A liberdade de conformação do legislador como corolário da separação dos

No documento João Emmanuel Cordeiro Lima (páginas 36-42)

1. SEPARAÇÃO DOS PODERES

1.6. A liberdade de conformação do legislador como corolário da separação dos

permitam o seu exercício de forma ilimitada, sem controle. Diz-se que a separação é relativa porque ela se dá na forma da Constituição, que pode - e deve - prever mecanismos de interpenetração e controle aptos a impedir que abusos sejam cometidos. É claro, porém, que esses mecanismos só podem ser usados na forma da Constituição, sendo também inaceitável que se invoque a suposta necessidade de controle de um Poder pelo outro para se criar canais de interferência não consagrados pelo Poder Constituinte ou para distorcer os canais existentes.

1.6. A liberdade de conformação do legislador como corolário da separação dos poderes

O controle de constitucionalidade das leis é, como visto, um mecanismo de controle do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário criado pela própria Constituição Federal. É uma manifestação do que a doutrina denomina como freios e contrapesos (checks and balances). Assim, o só fato de exercê-lo, ainda que represente uma natural fricção entre os poderes, não representa uma violação do princípio da separação dos poderes, ao menos na forma como esse princípio foi consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil.

Na verdade, a recusa do Poder Judiciário em exercer o controle nas situações em que for legitimamente chamada a fazê-lo é que deve ser vista como uma violação à separação dos poderes na forma consagrada pela Constituição. Isso porque tal inação poderá resultar na formação de instâncias hegemônicas de poder (no caso, do Poder Legislativo), podendo o órgão hegemônico editar as normas que entender conveniente mesmo nos casos em que isso represente violação a direitos fundamentais, cuja proteção, como visto, é o que, em última instância, justifica a divisão de poderes.

Porém, isso não significa que o controle possa se dar a qualquer custo e sem limites. O primeiro desses limites é sem dúvida a forma de seu exercício. A Constituição fixa as regras a serem seguidas para a realização do controle, indicando, por exemplo, quem tem legitimidade para a provocação do Poder Judiciário, os instrumentos que podem ser utilizados, os órgãos do Poder Judiciário que podem realizá-lo, os quóruns de deliberação necessários, dentre outros aspectos. Tudo isso pode e deve ser respeitado, sob pena de inegável violação ao princípio da separação dos poderes.

O segundo desses limites diz respeito à finalidade do controle a ser exercido. Como visto, a separação dos poderes visa a garantir a realização de direitos fundamentais e outros valores constitucionais, razão pela qual o controle, como mecanismo de balanceamento dessa separação, não pode fugir dessa finalidade. Ou seja, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes, a intervenção do Poder Judiciário na esfera típica de atuação do Poder Legislativo jamais pode servir como instrumento para ofender direitos fundamentais, e, sim, para protegê-los ou fomentá-los.

Não obstante o fato de o controle ter como objetivo a garantia dos direitos fundamentais e de outros valores constitucionais, esse pretexto por si só não pode servir como escudo para justificar qualquer controle, por mais bem intencionado que seja, ainda que seja manejado por meio de procedimento adequado. Há também um terceiro limite que deve ser observado e cuja verificação é, sem dúvida, a mais complexa de todas e causa das maiores fricções entre os poderes. Referimo-nos aqui ao que podemos chamar de limite da liberdade de conformação do legislador.

A ideia por trás desse limite é a de que, na divisão de poderes, o constituinte outorgou ao legislador – e não ao Judiciário - a função de regular a conduta humana por meio de leis. Essas devem, sem dúvida, respeitar os limites constitucionais e buscar a realização dos direitos fundamentais e outros valores constitucionais. Entretanto, a concretização da Constituição pode ser feita de inúmeras formas, cabendo ao legislador optar por aquela que entender mais adequada de acordo com seu juízo político.

Sobre essa liberdade de conformação ou discricionariedade do legislador, vale trazer a baila o que escreveu Felipe Lima Gomes e Janaína Sena Taleires:

(...) a expressão “liberdade de conformação do legislador” se consagrou no direito alemão (Gestaltungsfreiheit des Gesetzgebers) e, com algumas expressões sinônimas, com discricionariedade do legislador, alude a algo como um “espaço” dentro do qual o legislador pode escolher o conteúdo das decisões a tomar, em um espectro de decisões viáveis, do ponto de vista constitucional (ou de normas que conforme a sua ação, ainda que não tenham cunho constitucional). Essa liberdade significa que é conferido um poder ao legislador para cometer um ato jurídico, mas que a conduta a que são imputados os efeitos jurídicos típicos desse mesmo ato não constitui o conteúdo de um dever jurídico. Essa liberdade implica (e baliza) a atribuição ao legislador de competência para realizar um planejamento estratégico do desenvolvimento legislativo da Constituição, a qual, por sua incompletude, tem de reservar uma quantidade razoavelmente grande de matérias para o trato normativo infraconstitucional.65

Um exemplo ajuda a ilustrar o que aqui se diz. A Lei Federal n.º 12.305, de 2 de agosto de 2010, que criou a Política Nacional de Resíduos Sólidos, estabeleceu inúmeras obrigações para o Poder Público e para a sociedade civil relacionadas à gestão integrada e gerenciamento de resíduos sólidos. Trata-se de uma lei que, inegavelmente, promove os direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à saúde. Assim, é certo que quanto mais cedo seus preceitos passassem a ser atendidos, melhor para a realização de tais direitos.

Não obstante isso, em seu art. 5466 essa lei fixou um prazo de quatro anos para que fosse implementada de forma definitiva a disposição final ambientalmente adequada de rejeitos. Isso significa que até lá os direitos fundamentais em questão seriam atendidos apenas parcialmente. Basta dizer que no momento de edição da lei havia – e ainda há - inúmeros lixões pelo Brasil67, nos quais são depositados resíduos sólidos, causando danos à saúde e ao meio ambiente. Essa situação poderia persistir por mais quatro anos em razão da escolha feita pelo legislador. Para piorar, passados quatro

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GOMES, Felipe Lima; TALEIRES, Janaina Sena. A liberdade de conformação do legislador no âmbito dos direitos fundamentais. In: Alexandre Walmott Borges; Ilton Norberto R. Filho; Marco Aurélio Marrafon. (Coord.). Teoria e história do direito constitucional. Florianópolis: FUNJAB, 2012. p. 172-195.

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Art. 54. A disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, observado o disposto no § 1o do art. 9º,9o, deverá ser implantada em até 4 (quatro) anos após a data de publicação desta Lei.

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Reportagem publicado no portal Terra em 2013 indica que o Brasil ainda possuía 2.906 lixões. O fim dos lixões? Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/ciencia/infograficos/fim-dos-lixoes/> Acesso em: 18 ago. 2015.

anos, o Senado Federal aprovou um projeto de lei 68 que pretende ampliar drasticamente o referido prazo. O texto, que agora aguarda aprovação da Câmara, prevê novas datas para implementação da disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, que podem ir de 2018 até 2021. Além disso, ampliou o prazo para que Estados e Municípios elaborem os seus planos de gestão de resíduos sólidos.

Diante de um cenário como esse, poder-se-ia questionar a constitucionalidade da lei em questão sob o argumento de que os direitos fundamentais acima indicados seriam violados pelo tratamento leniente emprestado pela lei e, especialmente, pelo novo projeto aprovado no Senado caso ele venha a ser confirmado pela Câmara. Diante disso, sob o pretexto de preservar e promover tais direitos, o Poder Judiciário poderia declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos em questão de modo a garantir que a obrigação de disposição final de rejeitos passasse a ser exigível de imediato.

Ocorre que, em tal situação, o prazo pode ter sido considerado essencial para que os Municípios possam obter receitas suficientes para implementar tal medida sem prejudicar outros serviços públicos que garantem direitos igualmente fundamentais. Assim, a exigência do atendimento dessa obrigação imediatamente prejudicaria outras prioridades relevantes. Em casos assim, nos quais se considere haver escolhas legítimas a serem feitas, a opção deve caber ao Poder Legislativo e não ao Judiciário, sob pena de se negar àquele espaço reservado pela Constituição, transferindo-o de

68 Trata-se do projeto de lei no 425/2014, aprovado no dia 1.07.2015, com a seguinte redação: Art. 1º

Os arts. 54 e 55 da Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, passam a vigorar com a seguinte redação:“Art. 54. A disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, observado o disposto no § 1º do art. 9º, deverá ser implantada nos seguintes prazos: I – até 31 de julho de 2018, para capitais de Estados e de Municípios integrantes de Região Metropolitana (RM) ou de Região Integrada de Desenvolvimento (Ride) de capitais; II – até 31 de julho de 2019, para Municípios com população superior a 100.000 (cem mil) habitantes no Censo 2010, bem como para Municípios cuja mancha urbana da sede municipal esteja situada a menos de 20 (vinte) quilômetros da fronteira com outros países limítrofes; III – até 31 de julho de 2020, para Municípios com população entre 50.000 (cinquenta mil) e 100.000 (cem mil) habitantes no Censo 2010; IV – até 31 de julho de 2021, para Municípios com população inferior a 50.000 (cinquenta mil) habitantes no Censo 2010. Parágrafo único. A União editará normas complementares para definição de critérios de priorização de acesso a recursos federais e para implementação de ações vinculadas dentro dos prazos máximos estabelecidos nos incisos do caput.” (NR) “Art. 55. O disposto nos arts. 16 e 18 entra em vigor nos seguintes prazos: I – até 31 de julho de 2017, para Estados e para Municípios com população igual ou superior a 50.000 (cinquenta mil) habitantes no Censo 2010; II – até 31 de julho de 2018, para Municípios com população inferior a 50.000 (cinquenta mil) habitantes no Censo 2010. Parágrafo único. Os Estados deverão apoiar os Municípios nos estudos de regionalização, na formação de consórcios públicos e no licenciamento ambiental.” (NR) Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

maneira ilegítima ao Poder Judiciário. Se esse espaço decisório inexistisse, razão não haveria para que o Estado mantivesse uma estrutura – no caso brasileiro, uma grande e cara estrutura que se replica em todos os entes da federação - com a função principal de fazer leis. Estando todas as respostas prontas e delineadas na Constituição, bastaria o Judiciário para aplicá-las.

O Supremo Tribunal Federal em algumas oportunidades já reconheceu o limite ao exercício do controle de constitucionalidade representado pela liberdade de conformação do legislador. Isso se deu, por exemplo, na análise da constitucionalidade da Lei Federal no. 12.234, de 5 de maio de 2010, que trata da prescrição da pretensão punitiva, na modalidade retroativa, com base na pena aplicada na sentença. Ao votar pela higidez da lei, o Ministro Dias Toffoli assim se manifestou:

A Lei nº 12.234/10, portanto, se insere na liberdade de conformação do legislador, que tem legitimidade democrática para escolher os meios que reputar adequados para a consecução de determinados objetivos, desde que eles não lhe sejam vedados pela Constituição nem violem a proporcionalidade. Deve o legislador, ao restringir direitos, realizar uma tarefa de concordância pratica justificada pela defesa de outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos69. (Grifo nosso.)

Esse limite foi também invocado em caso envolvendo a discussão sobre a constitucionalidade de vedação contida na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul que impedia o exercício da advocacia privada pelos procuradores do estado. Lê-se em trecho do voto do Ministro-relator Gilmar Mendes:

No caso em apreço, além de se fazer presente a liberdade de conformação do poder constituinte derivado, nota-se que a restrição ao exercício da advocacia fora das atribuições institucionais foi também opção do legislador estadual, de modo que o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal no julgado referido acima é de todo aplicável à hipótese.70 (Grifo

nosso.)

Não obstante haver consenso sobre a existência desse limite, nem sempre é fácil identificá-lo no caso concreto, daí a importância da identificação de parâmetros e

69 HC 122694, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2014,

PROCESSO ELETRÔNICO DJe-032 DIVULG 18-02-2015 PUBLIC 19-02-201.

70 ARE 646761 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 29/10/2013,

técnicas que auxiliem nessa verificação. Essa problemática ganha ares de complexidade ainda maior quando envolvem leis ambientais, tendo em vista as peculiaridades que as cercam. É dessas peculiaridades que trataremos no capítulo seguinte.

No documento João Emmanuel Cordeiro Lima (páginas 36-42)