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A norma-matriz e sua estrutura principiológica

No documento João Emmanuel Cordeiro Lima (páginas 98-102)

4. O DIREITO CONSTITUCIONAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE

4.2. Os contornos do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado

4.2.2. A norma-matriz e sua estrutura principiológica

O caput do art. 225 da Constituição de 1988 dispõe que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê- lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Essa fórmula tem clara inspiração na Constituição Portuguesa de 1976, que no no 1 do seu art. 66 estabelece que “todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”.

Apesar da semelhança, algumas diferenças entre os dispositivos merecem ser realçadas. Em primeiro lugar, nota-se que a Carta de 1988 classificou o meio ambiente como um bem de categoria especial, que não se enquadra como público nem como privado, preocupação não demonstrada pelo dispositivo lusitano. Sobre a peculiaridade dessa categoria de bens, manifesta-se Celso Antônio Pacheco Fiorillo:

Dessa forma, em contraposição ao Estado e aos cidadãos, ao público e ao privado, iniciou-se no Brasil, com a Constituição Federal de 1988, uma nova categoria de bens: os de uso comum do povo e essenciais à sadia qualidade de vida. Esses bens não se confundem com os denominados pens públicos, tampouco com os denominados bens particulares (ou privados).196

Além disso, o enunciado nacional teve uma preocupação especial com as futuras gerações que não se via197 na redação original da Carta Portuguesa. Ao impor o dever de defesa e preservação ao Poder Público e à coletividade, a Carta Magna teve o cuidado de deixar claro que esse dever tem como beneficiário tanto as gerações presentes como as futuras. Entendem Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer que

196FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11. ed. São Paulo:

Saraiva, 2010. p. 141.

197Em 1997, a alínea “d” do no 2 do art. 66 da Constituição portuguesa foi alterado e passou a fazer

estaria aí a consagração do chamado princípio da solidariedade intergeracional, cujo conteúdo seria o seguinte:

O princípio da solidariedade intergeracional estabelece responsabilidades (morais e jurídicos) para gerações humanas presentes em vista da ideia de justiça intergeracional, ou seja, justiça (e equidade) entre gerações humanas distintas. As gerações futuras nada podem fazer hoje para preservar o ambiente, razão pela qual toda a responsabilidade (e deveres correspondentes) de preservação da vida e da qualidade ambiental para o futuro recai sobre as gerações presentes.198

Se essas diferenças não podem ser negadas, o mesmo se diga para as semelhanças. Tanto o dispositivo português como o brasileiro consagram a expressão ecologicamente equilibrado. Para José Afonso da Silva, o termo ecologicamente não está incluído no texto constitucional em vão. Um meio ambiente ecologicamente equilibrado é mais do que um simples meio ambiente equilibrado. Com essa previsão, o que a Constituição quis evitar é “a ideia, possível, de um meio ambiente equilibrado sem qualificação ecológica, isto é, sem relações essenciais dos seres vivos entre si e deles com o meio ambiente”199.

Também o dever genérico imposto a todos de defender o meio ambiente é encontrado nas duas Cartas. A única diferença é que o texto português se satisfez com o uso da palavra todos, ao passo que o brasileiro é mais específico e deixa claro que esse dever cabe tanto ao Poder Público como à coletividade. O efeito, no entanto, é o mesmo, tendo o texto nacional a vantagem de afastar qualquer questionamento sobre os destinatários desse dever.

A doutrina enxerga no caput do art. 225 a efetiva consagração do direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, como já vimos. No entanto, o seu conteúdo é matéria difícil de se aferir por completo em abstrato. Há, como já indicado, algumas indicações desse conteúdo ao se estabelecer a natureza do meio ambiente (bem de uso comum do povo), os destinatários de sua proteção (todos) e a obrigatoriedade do Poder Público e da coletividade de preservá-lo e conservá-lo.

198SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. São Paulo:

Saraiva, 2014. p. 74.

199SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

Porém, não há uma indicação clara e definitiva do que o Poder Público ou a coletividade devem fazer para assegurar essa preservação ou conservação. Tampouco há indicação do que se deve entender como um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A partir desse dever genérico, é de se indagar, por exemplo, se seria possível entender que todo e qualquer cidadão estaria obrigado a movimentar suas economias para tratar as águas de um rio poluído ou para remediar um solo contaminado, ainda que não tenha qualquer relação com a poluição causada. Ou se seria possível exigir a atuação do Poder Público para tomar todas as medidas necessárias para recuperar a qualidade do meio ambiente, independentemente do custo que isso possa ter. Pode-se questionar também até que ponto se pode entender que o meio ambiente está ecologicamente equilibrado ou, dito de outro modo, qual nível de desequilíbrio pode ser tolerado.

Parte dessas dúvidas é sanada nas chamadas normas-instrumento e nas determinações específicas previstas nos parágrafos 1o a 6o do art. 225. Há nesses dispositivos, como veremos nos tópicos seguintes, autênticas regras a serem seguidas pelo Poder Público e pela coletividade. Entretanto, muitas questões não são abordadas diretamente, permanecendo a dúvida sobre a possibilidade ou não de invocação do art. 225 para justificar determinadas decisões e para controlar a constitucionalidade de leis. O que desde logo se pode registrar é que essa falta de detalhamento inegavelmente tende a resultar em uma maior liberdade de conformação para o Legislador.

Essa falta de precisão tem levado à invocação do caput do art. 225 como panaceia para todos os males. Esgrimindo-o, é comum que o Judiciário imponha ao Poder Público deveres específicos. Em decisão tomada no Recurso Extraordinário nº. 417408200, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal chancelou julgado que determinou a realização de obras para que se restabelecesse o equilíbrio ambiental e fosse resguardada a saúde pública, que eram ameaçados pelo lançamento de esgoto em determinado rio. Tudo isso sob o manto do art. 225.

200

RE 417408 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 20/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-081 DIVULG 25-04-2012 PUBLIC 26-04-2012 RTJ VOL-00223-01 PP-00512.

O mesmo dispositivo é também comumente chamado para justificar a invalidação de leis que supostamente poderiam ofender o dever geral nele previsto. Foi o que ocorreu no julgamento de arguição de inconstitucionalidade do art. 67201 da Lei Federal nº. 12.651/2012 pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Dentre os fundamentos invocados para sustentar procedência da arguição, a corte mineira entendeu que houve violação “do dever geral de proteção ambiental previsto no art. 225, caput, da Constituição da República”202.

Analisando o caput do art. 225, Ney Barros Bello Filho203 conclui que a estrutura utilizada pela Constituição para consagrar o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado enquadra-se no que Robert Alexy classifica como norma-princípio e, por isso, funcionaria como mandado de otimização. Por outro lado, os enunciados previstos nos seus parágrafos 1o a 6o, ao menos na maioria dos casos, se assemelham ao que esse autor alemão trata como regra. Sobre essa distinção, vale trazer à baila as lições do próprio Alexy:

Uma primeira característica importante que decorre do que foi dito até agora é o distinto caráter prima facie das regras e dos princípios. Princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Nesse sentido, eles não contêm um mandamento definitivo, mas apenas prima facie. Da relevância de um princípio em um determinado caso não decorre que o resultado seja aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios apresentam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. A forma pela qual deve ser determinada a relação entre a razão e contra-razão não é algo determinado pelo próprio princípio. Os princípios, portanto, não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e das possibilidades fáticas. O caso das regras é totalmente diverso. Como as regras exigem que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam, elas têm uma determinação de extensão do seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode falhar diante de

201

Art. 67. Nos imóveis rurais que detinham, em 22 de julho de 2008, área de até 4 (quatro) módulos fiscais e que possuam remanescente de vegetação nativa em percentuais inferiores ao previsto no art. 12, a Reserva Legal será constituída com a área ocupada com a vegetação nativa existente em 22 de julho de 2008, vedadas novas conversões para uso alternativo do solo.

202Arg Inconstitucionalidade Nº 1.0144.11.003964-7/002 - COMARCA DE Carmo do Rio Claro -

Requerente(s): 1ª CÂMARA CÍVEL – Requerido (a)(s): ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS - Interessado: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, SINEZIA MARIA DA SILVA SANTOS, PAULO MARCELO DOS SANTOS.

203 BELLO FILHO, Ney de Barros. Direito ao Ambiente: da compreensão dogmática do direito

impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorrer, vale definitivamente o que a regra prescreve.204

Na condição de mandado de otimização, não seria possível definir de forma abstrata todo o conteúdo desse direito fundamental, cuja realização se dá a partir de diferentes graus e depende das possibilidades jurídicas e fáticas. Nas palavras do já citado Ney Barros Bello Filho:

(...) o cumprimento de uma obrigação decorrente de um direito fundamental ao ambiente não se realiza desde um padrão fixo segundo o modelo de regras, mas sim a partir de uma ponderação e uma proporcionalização dos direitos, bens e valores que estão em jogo quando do caso concreto.205

Por isso mesmo, o citado autor206 adverte que somente de forma aproximada, ou prima facie, seria possível extrair o conteúdo do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ainda segundo ele, somente “o resultado do confronto de um amálgama de posições empíricas, normativas e analíticas, tendo por base um caso concreto e exercidas a utilização do instrumento da ponderação propõe um direito fundamental ao ambiente aplicável ao caso”. Voltaremos a essa discussão ao tratarmos da identificação de parâmetros para verificação da compatibilidade de determinas leis com esta norma-matriz.

No documento João Emmanuel Cordeiro Lima (páginas 98-102)