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Os contornos do princípio da separação dos poderes

No documento João Emmanuel Cordeiro Lima (páginas 33-36)

1. SEPARAÇÃO DOS PODERES

1.5. Os contornos do princípio da separação dos poderes

Para evitar conflitos dessa ordem, o primeiro passo é sem dúvida delimitar com maior precisão possível o alcance da doutrina da separação dos poderes no ordenamento jurídico pátrio. Porém, antes de se avançar nesse tópico, duas advertências merecem ser registradas. A primeira é que o fato de estarmos buscando identificar o alcance desse princípio na Constituição de 1988 não nos inibe de nos valermos da doutrina estrangeira produzida com semelhante objetivo para um contexto diferente. Nada impede que ideias produzidas em outros locais possam encontrar ressonância e utilidade por aqui. O que não nos parece razoável seria importar acriticamente tais ensinamentos para explicar a manifestação desse princípio no ordenamento brasileiro, o que se buscará evitar. A segunda é que essa delimitação do princípio da separação por si só não resolve o problema aqui estudado como um todo, pois ele se desdobra em outros aspectos que serão abordados adiante. Ainda assim, é fundamental que ela

57 Referimo-nos à Proposta de Emenda à Constituição no 33, de 25 de maio de 2011, apresentada pelo

Deputado Federal Nazareno Fonteles.

58 O exemplo aqui indicado serve apenas para ilustrar o conflito de poderes que pode resultar do

controle de constitucionalidade. Não pretendemos fazer juízo de valor sobre essa proposta específica, tendo em vista a ausência de pertinência com o presente trabalho.

seja feita. Dito isso, volte-se ao tema do presente tópico.

Ao analisar o que chama de compreensão reinante do princípio da separação dos poderes na Alemanha, Korad Hesse59 aponta quatro aspectos fundamentais: a distinção entre funções, a atribuição dessas funções a poderes especiais, a proibição de exercício de funções atribuídas a um poder por outro e o controle recíproco de poderes. Para ele, nessa concepção dita reinante, “o princípio de divisão de poderes aparece como meio de repartição e, com isso, de moderação do poder estatal, que serve à proteção da liberdade particular”.

André Ramos Tavares60 registra que o desenvolvimento da teoria da separação dos poderes passou a ter duas matrizes distintas. Uma delas, fiel às bases lançadas por Montesquieu, se pautou no modelo iluminista de lei e na ideia mecanicista da função judicial. A separação serviria, nesse contexto, como forma de garantir o primado do Poder Legislativo e não de efetivamente fomentar um equilíbrio entre os poderes. Escreveu o autor:

No contexto do Estado de Direito legalista, que se constituiu, como já anteriormente demonstrado, para realizar o sentido conferido à lei pelo iluminismo, o princípio da separação dos poderes deveria prestar-se à garantia do primado da lei. Era, na realidade, a busca prática de um monismo de poder, centrado no legislativo. Não há, nessa concepção, qualquer pretensão de equilíbrio de ‘poderes’ ou mesmo de uma separação funcional efetiva61.

Já a outra matriz teria por objetivo não a garantia do primado do Legislativo e sim o controle do poder estatal para preservação e promoção dos direitos fundamentais. Para o referido autor, enquanto a primeira matriz, de fundamento marcadamente iluminista, teria se mostrado fadada à superação, essa segunda segue sendo a base das reflexões do constitucionalismo moderno. Por isso mesmo, defende ser esse o autêntico “núcleo imutável da separação de poderes” 62.

59 HESSE. Konrad. Elementos de direito constitucional da república da Alemanha. Tradução de Luís

Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 1998. p. 366.

60 TAVARES, André Ramos. Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 167.

61

Ibidem, p. 168.

62

Luís Roberto Barroso63 indica como conteúdo nuclear histórico do princípio da separação dos poderes a i) divisão das funções estatais e sua atribuição a órgãos diferentes e ii) a existência de mecanismos de controle recíproco entre esses órgãos. Com base nesse entendimento, ao analisar as cláusulas pétreas da constituição, entende que o conteúdo nuclear desse princípio só seria atingido por uma reforma constitucional se houvesse uma concentração de funções em um poder ou se a inovação introduzida resultasse no esvaziamento da independência orgânica entre os poderes ou de suas competências típicas.

O Supremo Tribunal Federal analisou o alcance do princípio da separação no julgamento de Mandado de Segurança contra ato de Comissão Parlamentar de Inquérito. No caso, a CPI havia determinado, sem fundamentação, quebra de sigilo fiscal, bancário e telefônico de determinada pessoa, tendo a Suprema Corte entendida que o ato praticado pelo Poder Legislativo era ilegal e que seu controle pelo Supremo não implicava em ofensa à separação dos poderes. Entendeu-se que a essência do princípio seria a conservação da liberdade dos cidadãos e o meio para garantir a realização de direitos fundamentais. Lê-se na ementa:

A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição. Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir e nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal. (...) O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação de poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos Poderes da República sobre os demais órgãos da soberania nacional.64

A partir dessas ideias, entendemos ser possível assumir como objetivo central da separação dos poderes a defesa dos direitos fundamentais dos indivíduos consagrados pela Constituição Federal em face do Estado. Esse objetivo foi o que motivou o nascimento do princípio da separação e segue sendo o pilar no qual ele se sustenta.

63 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos

fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 196-197.

64MS 23452, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/1999, DJ 12-

Houve, porém, um aumento do alcance da proteção pretendida coerente com a ampliação dos direitos fundamentais consagrados pelas constituições. Avançou-se da simples proteção a direitos fundamentais de primeira geração para a preservação de todos os demais direitos que se consagrariam (segunda, terceira, quarta e quinta geração).

O instrumento para alcançar esse objetivo é a separação relativa de funções entre os

No documento João Emmanuel Cordeiro Lima (páginas 33-36)