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CAPÍTULO 1 O PROCESSO: CONTEXTUALIZAÇÃO E FINALIDADES

1.5 A NATUREZA JURÍDICA DO PROCESSO

O significado do processo para o mundo jurídico é o objetivo deste tópico, que vai adiante para evidenciar que a lealdade pode ser exigida em um processo, na forma de conduta das partes, sobretudo em razão do caráter do processo ou da sua natureza para o direito, uma vez que ele transitou do privado para o público, na forma como hoje é concebido.57

56 In Manual de direito processual civil, de Arruda Alvim, p. 138.

57JARDIM, Afranio Silva. Da publicização do processo civil. Rio de Janeiro: Editora Liber Juris Ltda.,

1982, p. 87/88: “No estágio em que se encontra a ciência processual, malgrado a diversidade das teorias sobre a natureza do processo, uma coisa é do consenso geral: o processo tem natureza eminentemente pública, sendo informado pelos princípios que regulam o Direito público.Esta colocação é de grande importância para a boa compreensão do sistema processual e para a correta aplicação e interpretação das leis do processo, bem como a formulação de seus princípios.”

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Por isso mesmo, o caráter público do processo moderno faz com que a ideia privatista do processo civil romano afaste qualquer prática do interesse exclusivo da parte, devendo a mesma acatar o preceito expresso na norma, que alterca a boa-fé processual e afasta a litigância de má-fé, com sanções e restrições processuais várias.

Essa ideia de um processo, com hipotéticas feições privadas, pode ser entendida, do mesmo modo, a partir da atualidade, quando a ação é um impulso do autor, no exercício de um direito público subjetivo – exercício do direito de ação. Exercício este, que invoca, subseqüentemente, a prestação jurisdicional do Estado para reprimir direito individual violado, dando ensejo ao processo, como instrumento hábil da jurisdição. Por isso mesmo, se há a iniciativa da parte em acionar o Estado- juiz, nada a impediria de promover o seu direito, como melhor lhe aprouvesse, ainda que com deslealdade processual.

Nessa trilogia processual – ação, jurisdição e processo - “encontra-se a resolução dos conflitos de interesses; a ação provoca a jurisdição, que se exerce através de atos, que são o processo.”58

Dessa tríade processual, que converge para a composição dos conflitos, a ação, pela intimidade com os demais elementos, propulsora da jurisdição e do processo, evocou a actio romana que tinha um caráter privado, produzindo a ideia de que o processo era contratual.59

Contextualizando historicamente, nos períodos romanos das legis actiones (754 ao 149 a.C.) e no formulário ou per formulas (ano 149 a.C. até o séc. III da Era Cristã), os procedimentos se constituíam em duas fases, in iure e in iudicio. A primeira, sob a condução do magistrado, tinha o seu termo com a concessão ou não da ação. Concedida a ação, definia-se a litiscontestatio, proclamando-se o objeto da

58In Arresto Cautelar de Sérgio Shimura (p., 35), que se reporta a Moacyr Amaral Santos, autor do

enunciado seguinte: “Ação, jurisdição, processo, eis o trinômio que enfeixa o fenômeno da resolução dos conflitos de interesses; a ação provoca a jurisdição, que se exerce através de um complexo de atos, que é o processo.”(na obra Primeira linhas..., v. 1, p. 125, n. 106, 5ª ed.).

59Enrico Tullio Liebman, na obra Manual de Derecho Procesal Civil, em judicioso comentário,

acrescenta que, “a los juristas romanos les era desconocido el concepto del derecho subjetivo, tal como fue elaborado en tiempos mucho más recientes; ellos conocían, en cambio, la actio, que era el medio jurídico para pedir la satisfacción de las propias razones. Para decir que a Ticio le correspondía un derecho decían que le correspondía la actio. Toda la evolución del derecho clásico se ha desarrollado a través de la ampliación y el enriquecimiento de las figuras de las acciones. El pretor, que fue el artífice de esta evolución, concedía la acción también en casos, cada vez más numerosos, en los que no habría correspondido según el estricto ius civile. El sistema jurídico de los romanos era concebido y se desarrolló en función del proceso y de los medios que el mismo ofrecía para la tutela de los intereses de los varios sujetos.”(p.p. 110/111).

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demanda, obrigando-se as partes a permanecerem em juízo e a acatarem o que fosse decidido na sentença. Esta era proferida por um iudex ou arbiter, um particular a quem competia proferir a decisão. Como se deduz, um procedimento privado ou parcialmente privado, com características contratuais, porquanto às partes poderiam aderi-lo ou não.60

Esta característica originária do processo romano, foi o fundamento para que nos séculos XVIII e XIX, se pensasse no processo com a feição de um contrato.

José Eduardo Carreira Alvim, registrou que “a doutrina Francesa dos sécs. XVIII e XIX, influenciada pela doutrina política do contrato social, de J. J. Rousseau, continuou considerando o iudicium como sendo um contrato. Supunha-se um acordo de vontades, ou uma convenção das partes, de aceitarem a decisão do juiz.”61

O registro é para evidenciar sua evolução em um curso histórico. Realça-se, todavia, que à época da teoria do processo como contrato, era prestigiada a supremacia da vontade e tudo se resolvia com um contrato, que expressa a íntima vontade dos contraentes.

Segue-se a teoria do processo como um quase-contrato, sob o argumento de que no processo civil romano, a vontade das partes sofria limitações, uma vez que na fase in iure havia o in ius vocatio. Medida de força pela qual o réu poderia ser coercitivamente conduzido à presença do magistrado. Logo, o processo civil romano, nesse tempo, não era eminentemente contratual.

Em seguida surgiu a ideia do processo como uma relação jurídica, cuja teoria persiste até a atualidade, não obstante o surgimento de outras. Coube a Bülow (1868)62 a sistematização do que fora preconizado por Búlgaro: “judicium esta actum

trium personarum: judicis, actoris et rei”, e provavelmente “nas próprias Ordenações

do Reino já se vislumbrava, ainda que sem muita nitidez, a instituição de uma

60Fernando Luso Soares, in Direito Processual Civil – parte geral e processo declarativo, mostra com

muita propriedade que “não é difícil ver na litis contestatio algo de contratual. Ela está mesmo na origem daqueles que perspectivaram o processo como um contrato, ou um quase-contrato.”(p. 110). Esta afirmativa derivou do comentário a respeito das fases processuais romanas dos períodos das legis actiones e do processo formular, desmembradas em in iure e in iudicium. Quanto a primeira fase, “se os interessados a aceitavam (através da litis contestatio), na fase seguinte in iudicium – o juiz punha termo à lide, proferindo a sentença.”(mesma p.).

61In Elementos de Teoria Geral do Processo, p. 167.

62 A respeito da relação jurídica contida no processo civil, Chiovenda elucida que esta “ideia

singelíssima, e, não obstante fundamental, vislumbrada por Hegel, positivada por Bethmann- Holweg, e esplanada especialmente por Oskar Bölow, e depois por Kohler e muitos outros inclusive na Itália (...).É a ideia inerente ao iudicium romano, assim como à definição que do juízo emitiam os nossos processualistas medievais: Iudicium est actus trium personarum, actoris, rei, iudicis (Búlgaro, De iudiciis, § 8º).”(in Instituições de direito processual civil, 1ª ed., Campinas: Bookseller, 1998, p. 78)

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relação jurídica ligando parte e Estado-juiz ( trata-se da ‘instância’ ou ‘juízo’, de que falam as Ordenações Filipinas).”63

Bülow estampou seu estudo na obra “Teoria dos pressupostos processuais e das exceções probatórias”, na qual evidenciou que a relação jurídica processual não se confunde com a relação de direito material subjacente à lide. A relação material litigiosa (res in judicium deducta) era diversa da relação processual (judicium), de onde se tem o processo como uma relação ampla, lembrando um continente, e o litígio, o seu conteúdo. 64 Na relação processual, existem aspectos muito próprios que podem ser identificados a partir dos seus sujeitos, representados pelo autor, réu e Estado-juiz; pelo seu objetivo, que é a prestação jurisdicional; e, por seus pressupostos, que são de natureza processual.65

Houve adesões à teoria da relação jurídica, como, do mesmo modo, resistências, que podem ser apontadas pelo surgimento de outras doutrinas, como a de Goldschmidt, que concebeu o processo como uma situação jurídica; Jaime Guasp, seguido por Couture, identificou o processo como uma instituição; João Mendes Junior distinguiu o processo com a sua doutrina ontológica; Foschini, desenvolveu a tese de o processo como entidade jurídica complexa.

Contudo, esses e outros, não serão particularizados neste trabalho. Tem-se o propósito de mostrar que o processo, de uma ideia inicial privada, é admitido na atualidade como um método de ordem pública voltado para a função jurisdicional. Ademais, este mesmo processo do qual se fala, está fundado em uma relação jurídica processual, como natureza de maior aceitação pela doutrina contemporânea. Por sua vez, tendo em vista a tese que se propõe, a relação jurídica processual melhor se ajusta como natureza do processo, sobretudo quando se identifica a presença do Estado nesta relação, por meio do juiz, atuando sob um procedimento instituído com poderes e faculdades, sujeição e deveres, dos quais sobreleva a lealdade,

posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever da verdade,

63Teoria geral do processo, p. 280.

64 In Manual de Direito Processual Civil, de Arruda Alvim, v. 1., p. 101. José Eduardo Carreira Alvim,

in Elementos..., p. 180.

65 Antecipando alguns aspectos de temas relacionados com os pressupostos processuais adiante

tratados, “a doutrina mais autorizada sintetiza esses requisitos nesta fórmula: uma correta propositura da ação, feita perante uma autoridade jurisdicional, por uma entidade capaz de ser parte em juízo.”( in Teoria Geral do Processo, p. 289).

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agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do direito e realização da justiça.66