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CAPÍTULO 3 – DEONTOLOGIA DO PROCESSO

3.2 CONCEITOS QUE SEDIMENTAM O DIREITO: MORAL, ÉTICA, BOA-FÉ

3.2.2 Moral

A moral185 tem origem latina – mos, mores, moralis – que significa costume ou prática comum. É uma maneira de consagrar-se a si próprio, com valores que guardem fidelidade aos seus pensamentos, convicções e ações. É uma qualidade favorável ao homem, comumente aceita segundo o entendimento individual e coletivo.

O direito, pode-se dizer, é normativo. Estabelece regras de conduta e socialização, algumas até provenientes da moral. A moral é um valor que se difunde, como um costume que se pratica habitualmente até se padronizar como um modelo e um ideal de conduta. Como destaca Stoco, “a moral, portanto, tem âmbito bem mais amplo do que o Direito, posto que inúmeras de suas regras, estabelecidas apenas como deveres, escapam do universo normativo do Direito.”186 Ademais, “a

ética, enquanto atributo ou qualidade do caráter, representa a ciência moral ou o estudo dos padrões morais estabelecidos.”187

Como se pode constatar, há um relação muito entranhada entre o Direito, produtor de normas; a moral, promotora dos costumes; e a ética, que sonda os valores. À guisa de ilustração, a má-fé processual é um tema jurídico, que mostra uma prática censurada pela ética e penalizada pelo direito.

Justifica-se como imprescindível o estudo da moral, concernente à análise da deontologia processual que se faz, porquanto se chega melhor à compreensão dos deveres e respectivas origens. Avalia-se, também, o valor atribuído aos costumes nos primórdios e ainda nos dias de hoje, como fonte do direito, inclusive processual.188 Nesse passo, a lealdade tem uma relação com os costumes, com a

185“Em sentido amplo, sinônimo de ética, enquanto teoria dos valores que regem a ação ou conduta

humana, tendo um caráter normativo ou prescritivo. Em um sentido mais estrito, a moral diz respeito aos costumes, valores e normas de conduta específicos de uma sociedade ou cultura, enquanto que a ética considera a ação humana do seu ponto de vista valorativo e normativo, em um sentido mais genérico e abstrato.”(in Dicionário básico de Filosófica, p. 172)

186Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 46. 187Id., p. 46.

188ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil, v. 1, 7ª. ed., rev., atual. e ampl., São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 154: “O costume é fonte do Direito Processual Civil, porém, mais amplamente, é fonte do Direito em geral. Bastante para esta conclusão é ler o art. 4º. Da LICC, assunto este regulado, para o processo civil, no art. 126 do Código de 1973.” Art. 126 – O juiz não se exime de sentenciar ou despachar, alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.”

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moral, com a ética e com a boa-fé, e todos, em associação, dão a mais precisa dimensão da litigância de má-fé e da responsabilidade do seu agente. Do mesmo modo, compreender-se-á melhor a sanção que o direito processual impõe a quem demanda de má-fé.

A propósito, a lealdade nem precisaria estar legislada, pois trata de uma prática social eleita e sua antítese – a deslealdade – rejeitada.

Nesta seqüência, para o cabal encaminhamento das ideias, presume-se necessário dizer que as ações humanas sempre estiveram regidas sob normas de naturezas distintas. Aliás, cada fase da história teve o seu sistema normativo, cada quadrante terrestre também, com normas variadas quanto às suas espécies. Porém, todas unidas por um fundamento, estabelecidas sob a coerência de temas e afastadas de contradições entre si. Um só fundamento, um único princípio do qual emergem normas distintas: um princípio ético, que regularia a atividade do homem, desdobrando-se em duas ordens.189

A primeira delas regida pelo sujeito ativo que, na sua subjetividade, faz uma opção e exclui as demais. A segunda ordem vê uma intersubjetividade, uma vez que as ações são restringidas por ato de outros sujeitos ou “o princípio ético tende a instituir uma coordenação objetiva do operar, manifestando-se por uma série correlativa de possibilidades e de impossibilidades de conteúdo com respeito a vários sujeitos.”190 Na primeira incursão tem-se a ordem ética da moral e na

segunda, a ordem ética do direito.

Com estas considerações, destaca-se a importância que a moral representa para o direito, frente ao tratamento que a doutrina jurídica lhe confere, admitindo a coexistência de duas ordens, sendo uma jurídica e outra moral191 - “ambas

igualmente imperativas”192. A esta fundamentalidade que as duas ordens contêm,

acrescenta-se a dificuldade de extremá-las, sem a permeabilização de uma pela outra. Algo arraigado às duas normas – jurídica e moral, que torna difícil decompor suas partes para apartar esta daquela.

Não sem razão, pois se a moral é a precursora dos costumes, terá sido ela a pioneira na produção do direito, visto que este se apropriou daquelas práticas

189Del Vecchio, in Lições de filosofia do direito, p. 355.

190VECCHIO, Giorgio Del. Lições de filosofia do direito, p. 356.

191ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito – introdução e teoria geral, p. 90, n. 40. 192VECCHIO, Giorgio Del. Lições de filosofia do direito, p. 359

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habituais da sociedade, costumeiras ou consuetudinárias, para instituir sobre elas a juridicidade, que as elevava à condição de normas de direito.

O direito positivo atual já foi antes um costume, uma prática socialmente aceita, reiterada e predominante no recinto social. Por isso, repetindo-se o que foi dito acima, o direito, a moral, a ética e os costumes alinham-se em proximidade e valor.

Del Vecchio sustenta que “o costume, mais que uma espécie própria de normas, indica o fato da observância de qualquer espécie de normas. Não existem dúvidas de que as normas jurídicas positivas são também costumeiras, como dizia Vico; isto é, normas traduzidas em costumes. O mesmo acontece aos preceitos morais, na medida em que foram consagrados e são efetivamente seguidos.”193

O costume é uma provisão, que antecede o direito, como ciência, e a moral, como comportamento. Aliás, a doutrina afirma que a separação entre as duas ordens – jurídica e moral - deu-se paulatinamente. Algo que não se explica bem, mas o ser humano traz consigo esta necessidade de conviver, de se organizar, estabelecer regras e até de se submeter a elas. São sentimentos presentes, hoje imperceptíveis, por força de um Estado legislativo, mas que nas eras primitivas foram demais acentuados, propiciando o surgimento do denominado costume

indistinto, representado pelo encontro da moral com o direito.194

Distinta verdadeiramente é a possibilidade que a moral oferece ao indivíduo de escolher a ação que praticar; podem ser diversas as opções, mas o sujeito é único, num processo subjetivo de preferência, que somente a ele cabe escolher e agir. Já com o direito, dá-se o contrário: cotejam-se diversos atos com titularidades diversas, ficando clara a ideia de que a moral é unilateral e o direito é bilateral. O exercício do direito de ação – um direito, evidentemente –, manifestado pelo autor,

193Del Vecchio, in Lições de filosofia do direito, p. 357. Averba-se que, deixa-se de consultar Vico

(G.B. Vico, napolitano, 1668-1744), pela anterioridade de suas obras, duas destacadas por Giorgio Del Vecchio: De universi iuris uno principio et fine uno (1720) e Principii di uma Scienza nuova intorno alla comune natura, delle nazioni .Desta última, considerada de “importância capital”, seguiram-se, ainda, duas edições nos anos de 1730 e 1744 (p. 112, da obra mencionada no início desta nota).

194Cf. Del Vecchio, págs. 357 e 366, constando desta última que: “De fato a distinção entre Moral e

Direito efetuou-se lentamente. Nas fases primitivas da vida social existia um costume indistinto, composto de normas de caráter misto, com força obrigatória mal definida no tocante à sua natureza moral ou jurídica. Durantes estas fases, não é bem claro se as normas reguladoras da atividade humana têm caráter subjetivo ou objetivo; nem tão pouco é claro até que ponto, por quem e por que formas, se pode ou deve exigir a sua observância. A tradição, o costume atávico envolvem o indivíduo com toda a sua grande autoridade, acompanham-no em toda a sua vida; Moral, Direito, Religião surgem aí englobados.”

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não pode ser objetado pelo demandado. Esta é a ideia do direito, pois o que é juridicamente possível a uma parte não pode ser obstado pela outra. Nestas circunstâncias o direito projeta-se perante os outros, impõe-se aos outros, o que não sucede com a moral.

Fala-se, então da alteridade, decorrente da bilateralidade que o direito manifesta nas suas prescrições, com a notícia histórica de que “S. Tomás de Aquino, Rosmini e outros, por exemplo, falam da alteridade do Direito. Com esta palavra querem significar que o Direito se refere ao outro (ad alter), uma vez que tende a estabelecer relação entre vários sujeitos e a delimitar a conduta de cada um deles. Mas o conceito, aliás, deriva de Aristóteles.”195

Para Radbruch “a relação entre a moral e o direito apresenta-se-nos como uma relação muito especial. O direito começa por se encontrar ao lado da moral, mas estranho a ela, diferente dela e até, possivelmente, oposto a ela, como acontece com os ‘meios’ colocados ao lado dos ‘fins’. Posteriormente, como meio para a realização de certos valores morais, o direito toma, porém, parte no valioso deste fim. Deste modo, embora como reserva da sua autonomia, é absorvido pela Moral.”196 Afirmação, como se observa, que não promete fixar uma diferença ou demarcar o espaço entre a ordem moral e a jurídica. Por certo, até hoje há uma dificuldade para definir como o direito atua frente a uma moral tão ciosa, como sucede na contemporaneidade, que busca incessantemente uma ética positiva em prol da compatibilização social e da dignidade humana.

Como desdobramento das ordens moral e jurídica, ambas normas éticas, está a norma técnica.197 Esta, que representa uma indução para obtenção de

resultado colimado, apresenta-se, segundo Del Vecchio, extensa como o saber humano, produzida pelo conhecimento científico e deriva para uma formulação técnica.198 Uma relação de causa e efeito, logo poderá ensejar uma norma técnica para estabelecer com precisão o resultado. Segundo Dinamarco, “técnica é a

195Del Vecchio, Lições de filosofia do direito, p. 372. 196 In Filosofia do direito, p. 113.

197“Uma fonte de complicações parece se representada pala chamada ordem técnica da sociedade.

Como logo resultará do facto de alguns distinguirem esta ordem técnica das ordens normativas, enquanto que outros pensam que a ordem normativa se traduz em normas técnicas e normas éticas”, in O Direito – introdução e teoria geral, de José de Oliveira Ascensão, págs. 22/23.

198Cf. Lições de filosofia do direito, p. 359: “Qualquer conhecimento científico pode converter-se,

efectivamente, em regra técnica. Uma vez verificado o nexo causal entre o facto causa e o facto- efeito (é este o procedimento típico da ciência) , é logo possível deduzir a regra , de harmonia com a qual, para se atingir o dito efeito se terá de por em ação a dita causa.

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predisposição ordenada de meios destinados a obter certos resultados preestabelecidos.”199

O processo judicial , método ou meio, é o produto de uma normatização técnica, oriunda de um conflito de interesses que se deseja pacificar.200 Mesmo assim, as ordens da moral e jurídicas são distintas das normas técnicas, até certo ponto. No caso jurídico-processual, a norma regente do processo tem sim caráter ético,201 porquanto, para atingir os objetivos da justa composição do conflito de interesses, a via única é o exercício do direito de ação, a formação de um processo, que tenha trâmite sob a jurisdição202. Ou seja, “quando um fim(...) é considerado por

uma norma ética como obrigatório (...), a norma técnica passa a assumir um certo caráter ético.”203

As relações sociais realçam estas ocorrências.204 A técnica que orienta a sociedade contemporânea, vem erradicando toda a prática popular e, sobretudo, a de natureza empírica. Nada se faz por fazer, mas sim do modo que a técnica orienta o fazer. Porém, na maioria dos ofícios, haverá sempre a técnica orientada pelas normas jurídicas e éticas. Há uma associação, como se a técnica possibilitasse o fazer, a moral orientasse pelo melhor e o direito contivesse o preceito. Segue-se nessa linha uma aplicação para fazer bem feito, responsabilidade, respeito ao próximo, observância dos valores sociais vigentes, costumes predominantes e a juridicidade dos comportamentos.

Uma técnica não empregada ou não observada tem repercussão na ordem moral. Censura-se o artista pouco primoroso nas suas obras e se aplaude aquele diligente talentoso. Mas há sempre um juízo repressivo à inobservância da norma técnica. Não é demais lembrar da Associação Brasileira de Normas Técnicas –

199In Instituições de direito processual civil, v. I, p. 59.

200 Id. p. 59: “A técnica do processo visa em primeiro lugar à pacificação de indivíduos e grupos de

indivíduos, eliminando conflitos mediante a realização da justiça.”

201“Em decorrência de sua instrumentalidade ao direito material, as normas processuais, na maior

parte, apresentam caráter eminentemente técnico. Entretanto, a neutralidade ética que geralmente se empresta à técnica não tem aplicação ao processo, que é um instrumento ético de solução de conflitos , profundamente vinculado aos valores fundamentai que informam a cultura da nação. In Teoria Geral do processo, de Ada Pellegrini Grinover e outros, p. 90.

202Igualmente, para Cândido Dinamarco, “a técnica processual é descrita de maneira mais visível nas

leis e tem, portanto, indisfarçável tendência às conotações dogmáticas”, sendo suscetíveis aos momentos históricos e suas fases (p. 59).

203Del Vecchio, op. cit. p. 360.

204 Cf. José de Oliveira Ascensão, na obra O DIREITO – introdução e teoria geral, 2ª. ed., p. 23: “A

ordem técnica é a ordem de agir do homo faber, dominando a natureza de modo a obter bens que esta não oferece espontaneamente. A técnica representa hoje um setor muito vasto e em crescimento constante, e implica também uma ordem de condutas. Consideremos por exemplo uma instalação siderúrgica: logo vemos a ordenação que a racionalidade técnica implica.”

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ABNT, que dispôs, dentre outras normas, daquelas que devem ser observadas na elaboração dos trabalhos científicos. Não acatá-las pode acarretar uma reprovação de ordem moral, com o juízo de desídia do autor da obra. Uma típica censura moral. A exceção à condenação, somente se justificará diante de um fim, que seja altruísta, donde se convirá que o fim proporcionou uma justificável abstração da norma técnica.205

Quanto ao direito, pressupõe-se que no seu exercício haja o natural emprego de normas técnicas, principalmente nas relações contratuais. Contratações de profissionais das diversas áreas trazem, ínsito no contrato, o dever da atuação deles, consoante o disposto nas normas técnicas.

É o caso do advogado. Contratado, acredita-se responsável e apto a aplicar as normas técnicas pertinentes ao exercício do seu mister, pois do contrário haverá a responsabilização dele.

Como se diz, as normas técnicas, pela natureza delas ou,

por si só, (...) não são propriamente obrigatórias; à face do Direito, nenhuma falta comete (...) o advogado que, fazendo valer em juízo um seu direito de crédito, ignorasse os princípios mais elementares do direito processual. Contudo a obrigatoriedade é elemento das normas técnicas, não pela sua própria natureza, mas quando a actividade correspondente às mesmas se torna conteúdo de uma relação contratual, de modo que outros podem exigir a sua observância.206

É um dado a mais, a favor da responsabilidade do advogado pela improbidade processual. O mandato, em nome do qual ele exerce sua profissão, é representativo de um contrato, com obrigações do contratado – o causídico, dentre elas a do exercício regular da profissão com técnica e ética.

205“Não é condenável, em geral, a contravenção de regras técnicas, quando esta contravenção for o

único meio para manifestar, ainda que de modo imperfeito, uma intenção que pode ser nobilíssima.”in Lições de filosofia do direito, Del Vecchio, p. 362.

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