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CAPÍTULO 3 – DEONTOLOGIA DO PROCESSO

3.4 DIFERENÇA ENTRE PODER, ÔNUS, DEVER, DIREITOS E OBRIGAÇÕES

3.5.4 A probidade como princípio processual

3.5.4.1 Ideário precursor da probidade

A relação entre o processo, o juiz, e a sociedade, (esta representada pela partes processuais), instiga uma incursão pelas mutações sócio-políticas influentes na sistematização do processo, como instrumento público de uso institucional jurídico.

Delimitando o tempo à Revolução Francesa, anote-se que esta veio em socorro às garantias e direitos individuais, sobrelevando a individualidade e a respectiva liberdade de todos. Vitoriosa, difundiu, sobretudo, a liberdade e teve no direito a respectiva autonomia da vontade, onde esta era erguida à condição fundamental para todos os atos da vida civil. Da vontade manifesta viriam as sucessivas obrigações por meio do contrato, que era a expressão jurídica maior da

271 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 2º v. 22. ed. rev. e atual.,

São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p.79. Igualmente, CRETELLA NETO, José. Fundamentos principiológicos do processo civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 242 desenvolve raciocínio semelhante, como se deduz: “Embora, estritamente, apenas o inciso II do art. 14 consagre o princípio da lealdade processual e da boa-fé (também denominado de princípio da moralidade processual) pode-se considerar que, de modo ampliado, também os incisos I e III desse artigo enfeixam regras de conduta leal para as partes e para seus procuradores, que devem obxservá-las no curos do processo. Ou seja, os incisos I, II e III podem ser incluídos no dever mais geral de agir com lealdade, vale dizer, obedecer às regras do jogo do qual deve vencer aquele que tem razão.” No que concerne ao inc. IV do art. 14, admite atos inúteis ou próprios a travar a marcha do feito podem revelar deslealdade processual ou inépcia do advogado. Do mesmo modo, BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao código de processo civil. v. I, t. I, Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 173: “Se analisarmos os três primeiros itens (refere-se aos incisos do art. 14, do CPC), veremos que são meras particularizações do princípio da lealdade, feitas para melhor destacar partes do conteúdo daquele.(...) Em última análise, como dissemos, todos eles podem ser incluídos no dever mais geral de agir com lealdade, isto é, obedecer as regras do jogo, no qual deve vencer aquele que realmente tem razão. Já o item IV tem características diferentes, (...). A prática dos atos aí previstos pode, em certos casos, decorrer de procedimento desleal da parte, que aumenta a atividade processual coma finalidade reprovável de adiar a solução da demanda. Mas, em alguns casos, esse excesso de atividade inútil pode decorrer de inabilidade do advogado, derivar de pouca experiência ou reduzido conhecimento de sua profissão. Nesse caso, não pode haver uma censura à sua conduta, sob o aspecto ético.”

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época, tanto que o próprio processo era visto como um contrato272, submetido à

relação de direito material que o instituía.

Viveu-se, conseqüentemente, a época do liberalismo, sintetizada pela máxima do laissez faire, laissez passer. Tempo em que a sociedade abominava toda a intervenção estatal, por temer na lembrança o absolutismo despótico273, que

violentou as liberdades individuais. Por isso, a postura do juiz dessa época bastante passiva, equidistante e meramente espectadora das pretensões das partes274.

Do contrário, ter-se-ia como certa a intervenção do Estado no domínio privado, pois sendo o juiz um agente do poder estatal, sua intervenção na atuação individual das partes denunciava a própria interferência do Poder Público na privacidade das partes processuais.

Contudo, a distensão do liberalismo, a concentração de rendas e dos meios de produção ensejaram injustiças sociais na relação laboral, sem que o estado estivesse apto a intervir. O operário viu-se momentaneamente desassistido frente ao império do capital e diante de uma Revolução Industrial, que desprestigiava o trabalho e cultuava a riqueza.

Como foi dito, o Manifesto Comunista de 1848, lançado por Marx e Engels, a encíclica Rerum Novarum, de 1891, escrita por Leão XIII e o Tratado de Versalhes, de 1919, responsável pela criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), representam momentos fundamentais em prol da valorização do trabalho e da pessoa do trabalhador, acentuando assim o papel dos denominados direitos sociais, hoje especificados nas constituições dos povos civilizados275

Como se vê, havia um brado contra o liberalismo aliado a uma exigência por um Estado social, que fosse sensível às causas sociais, refreasse o capital avassalador e contivesse a onda liberal que violava direitos fundamentais da pessoa humana e transigia sobre direitos indisponíveis como a liberdade, a dignidade e a devida remuneração do trabalhador, que sem ela, via comprometida a própria subsistência e da sua família.

O direito também se submete às injunções sociais, senão deixaria de ser o fluxo (conseqüência) da cultura e de estar submetido ao influxo (influência) das

272Cf. GOMES, Sergio Alves. Os poderes do juiz na direção e instrução do processo. Rio de Janeiro:

Forense, 1995, p. 26.

273GOMES, loc. cit. 274 GOMES, loc. cit. 275GOMES, op. cit., p. 30

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ações de toda uma sociedade. Com esta premissa, avalia-se que, à época do liberalismo, o processo também estava sob o individualismo vigente, de tal sorte que prevalecia o interesse privado, sendo as partes processuais as maiores agentes do impulso processual, vedado ao juiz qualquer intervenção, salvo para proferir o direito a quem o tivesse. Provas, produzidas pelo juiz, não se poderia cogitar, pois era uma faculdade inerente aos demandantes dizer quais as provas do direito que alegavam ter, bem como produzi-las no momento oportuno, caso assim desejassem.

Sergio Alves Gomes destaca que “o Estado social nasceu com o desgaste da cosmovisão político-jurídica e econômica pregada pelo liberalismo. É que os abusos do absolutismo presentes no ancien regime sucedem-se do capitalismo selvagem, onde a liberdade dos economicamente fortes gerou a escravidão dos fracos.276

Vingou, então, o fundamento do estado social, independentemente de origem cristã ou marxista.

Irrefutável, que as ciências sofrem a influência do momento social, tanto que o direito não ficou isento aos fatos que o circundavam. Em um primeiro momento, pereceu o sincretismo que restringia o processo a uma relação de direito material, dando lugar a uma ciência processual, que fixava a distinção entre a relação jurídica processual e a relação de direito material, podendo ensejar a devida ação.

Paralelamente, renova-se o conceito de que o poder emana do povo e em seu nome há de ser exercido. Logo, o juiz deve se voltar para o papel participativo de agente do poder social, com a precípua função de distribuir a justiça e não como outrora, sendo um mero expectador dos acontecimentos que as partes produziam ao longo de um processo, repetindo as litúrgicas palavras da lei, que o legislador anteriormente instituíra como normas da ordem vigente. Predominava a interpretação literal e lógica.

São as razões que fizeram do julgador um agente estatal afinado ao tempo, contemporâneo aos fatos sociais, e sensível às exigências de uma sociedade que clamava por justiça. Esta, capaz de aplicar o direito, para torná-lo um instrumento de coesão social, redutor das desigualdades e responsável pelos valores fundamentais do homem.

Verificou-se, pois, que o juiz não era suficientemente indene, a ponto de não sofrer as injunções que o descontentamento social denunciava cotidianamente. O

276Ibid., p. 34.

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juiz também participava do processo, via as convulsões sociais acontecerem e perscrutava a sua posição de poder estatal ou de estado-juiz, com o compromisso de pacificar e suprimir os conflitos sociais.

Manifestava sua atuação pelo processo, sendo o meio hábil que utilizava o Estado para dizer o direito e dá-lo a quem o tinha. Sendo assim, em um estado contemporâneo, em que predominavam os valores democráticos e sociais, sob o pálio de um intervencionismo moderado, devia o juiz estar investido de poderes para fazer valer a ordem social e democrática.

Cabe ao juiz mais que julgar. Cabe-lhe uma decisão justa que possa dar à lei um tom ajustado à realidade e às carências sociais, nem sempre observadas nas casas legislativas, que na representação popular descuram-se dos ideais de seus representados – o povo que as elegeu. Tais considerações levam a se pensar nos poderes que investem a autoridade judicial e, pensar, sobremaneira, na irrenunciabilidade de exercê-los, como forma de sagrar a democracia e os valores fundamentais da pessoa humana.

Diz-se, pois que,

quanto mais democrático for o Estado, quanto mais efetividade buscar para as normas jurídicas que disciplinam a atuação do poder, delimitando e direcionando este para os fins socialmente almejados, quanto mais se preocupar com o atendimento das questões que afligem a sociedade como um todo, maior será o papel do juiz no processo, pois exercerá a direção

material e não apenas formal deste e participará ativamente de sua

instrução,sem ferir sua imparcialidade.277

Assim, deverá prevalecer a verdade real, ao invés da formal; quanto às partes, a igualdade não será apenas a preconizada em lei, mas uma igualdade que tenha substância e na aplicação do direito, há que se buscar uma fórmula para que impere a justiça.

Constata-se, dessa forma, que o princípio dispositivo sofreu atenuações por força de ocorrências social e democrática que buscaram equilibrar forças, de tal sorte que o processo não destacasse a hegemonia e a hipossuficiência, mas representasse uma igualdade entre os contendores, ainda que alcançada por uma efetiva postura judicial.

277Ibid., p.35.

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Naturalmente o conjunto das ideias políticas, sociais e econômicas conduziram a uma valoração maior da própria justiça, da atuação do juiz, da correta relação jurídica processual, de tal sorte que o processo tivesse o respeito de todos que o integravam, como um meio ou instrumento público útil à jurisdição, para proclamar o direito a quem o tivesse. Para tanto, a verdade, a lealdade e a boa-fé processual passaram a integrar o acervo ético do processo e com melhor sentido a probidade, como valor ético indissociável de todos que tivessem qualquer vínculo com o processo, em caráter permanente, como partes e juiz, ou, eventual, da mesma forma que o perito ou testemunha.