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CAPÍTULO 2 – ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA VERDADE PROCESSUAL

2.6 O PROCESSO ROMANO-BARBÁRICO

O processo romano teve percurso longo e ainda hoje se faz sentir os seus reflexos. Verdade e juramentos são temas que ocupam as normas preceptivas do processo contemporâneo, como bem se pode constatar sobretudo ao compulsar o Código de Processo Civil.

Mas, em tempos idos, ameaças à sua hegemonia, ainda vigorante, foram observadas. A queda do Império Romano, no ano de 476 da era Cristã, e sua invasão pelos germanos, realçou um choque entre os direitos dos dominados e dos dominadores, com ênfase à temática processual.133

Como se constatou, vivia o império romano uma Justiça estatizada, com custas para subsidiar os gastos processuais, primando pela verdade e sob a égide de uma magistratura oficial. Enquanto isso, os germanos viviam uma fase judiciária

132GROSSMANN, Kaethe, em artigo sob o título O dever de veracidade no processo civil – exposição

de direito comparado, publicado na Revista Forense, em janeiro de 1945, v. CI, fascículo 499, p.281 Igualmente Walter Zeiss, in El dolo procesal, reportando-se ao “juramento de calumnia”, afirma que “en el derecho antiguo, apoyado en el justinianeo, lo prestaban ambas as partes. También seguió siendo obligatorio em el proceso del derecho canônico clásico (siglos XIII y XIV)” (p. 18)

133SOARES, Fernando Luso. Direito processual civil. Coimbra: Livraria Almedina, 1980, p. 112: “A

queda do Império Romano do Ocidente determina uma regressão na concepção do processo. Ao debilitar-se, pelo fraccionamento do poder do Estado, a função jurisdicional, volta o juiz, em muitas ordens jurídicas, a ser o árbitro da luta de interesses entre as partes. Esta luta relega-se à condição de um combate e toma, da disputa, as suas formas mais toscas e rudimentares. É a época dos torneios, das ordálias, dos julgamentos de Deus, episódios de violência em que a força física ofuscará a razão dialogada da força moral e intelectual.”

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muito rudimentar, ocupando o ápice da jurisdição as assembléias populares constituídas por homens livres (ding), sob a direção do conde feudal. Às causas menores tinham, na condição de presidente das assembléias, um delegado do conde feudal.

Quanto ao procedimento, era inteiramente oral e aos juízes cabia, apenas, uma conduta conciliatória acerca do direito em discussão, das provas e do provável preceito a ser aplicado à questão. Contudo, a decisão era da assembléia popular.

Menos compreensível ou quiçá, para os padrões romanos e sobretudo para a atualidade, eram os meios de prova que adotavam os germanos. Algo que, em síntese, era confiado à providência divina declarar e nessa declaração estaria a sentença de inocência ou de culpa do implicado.

Dois meios de prova se destacavam. O primeiro deles era o juramento da parte e o segundo eram as ordálias ou os juízos de Deus.

Quanto aos juramentos, colhia-se da parte a sua afirmação ou juramento, que era ratificado pelo seus conjuradores, ou conspurgadores, que abonavam o juramento anterior feito pela parte. Há uma dúvida quanto aos conjuradores, pois não se tem a certeza se eles confirmavam a prévia afirmação da parte ou somente abonavam-lhe o caráter, de forma que ela pudesse merecer fé.

Moacir Amaral Santos, citando Salvioli, elucida que, “quanto às leis germânicas, tanto se deu aos conspurgadores, aquele como este caráter, isto é, entre alguns povos foram considerados como confirmantes da verdade jurada pelo réu e, entre outros, meros abonadores da veracidade que este devia merecer ao seu comportamento.”134

Sobre as ordálias, práticas probatórias cruéis e de risco para a parte, que tinham como valor a ideia de que Deus viria em auxílio daquele que verdadeiramente agisse sob o pálio da sinceridade, com afirmações leais e autênticas, no exercício de um direito, livrando-o do mal. Tais provas dividiam-se em

134In Prova judiciária no cível e comercial, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 27. Quadra dizer ainda,

com relação aos conspurgadores, que este vieram em socorro aos desacreditados juramentos que se difundiram na Idade Média, maculados de falsidade e suspeitos de merecerem qualquer credibilidade. Por isso mesmo instituíram-se os conspurgadores, que juravam a veracidade do que antes foram dito, por quem estivesse sob juramento (p. 26). A realização do juramento pelos conspurgadores tinha formalidade idêntica àquela dos litigantes, sendo idênticas as penas para ambos em caso de perjúrio (p. 28). A finalidade desta prática era restituir ao juramento o prestígio que ele desfrutava na antiguidade, notadamente no direito romano (p. 26)

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prova pela sorte, prova pelo fogo, prova pela água fervendo, prova pelo cadáver, prova pela água fria, prova pela serpente e outras mais. 135

Dentre as ordálias, ainda são encontrados os duelos ou combates judiciários, que sucederam os juramentos, quando chegaram ao descrédito. O valor era o mesmo, ou seja, Deus não abandonaria o que tivesse o direito a seu favor. Por outro lado, considerando os guerreiros naturais,como podem ser tidos os homens da Idade Média, nada mais natural que exercer o direito pelo uso da força, quando o visse combalido frente a um falso juramento; ao perjúrio que passou a frustrar tantas expectativas de direito.

Por isso o duelo, ou combate judiciário, “como instituto probatório, a mais usada e apreciada das ordálias, mesmo indispensável para a solução de quase todos os litígios”.136

Apesar da sua característica primitiva ou rudimentar, o processo germânico evoluiu sobre o território romano, dentre outras causas pela preponderância compreensível que os vencedores detinham sobre os vencidos.137 Mesmo assim, o

processo romano resistia ao desaparecimento, dando Moacyr Amaral Santos a notícia da sua inteireza nos rincões de Roma e Ravena.138 Por outro lado, o direito canônico, com o seu fundamento justinianeu, e aplicação igualmente a temas não religiosos, teria favorecido à integridade do direito romano, mesmo em tempo de dominação germânica.

Desta forma, se os germanos tinham a superioridade pela dominação, os romanos, uma cultura que foi gradualmente influenciando as instituições daqueles e até renovando seus valores. Por fim, pode-se dizer que o direito romano fez frente às ideias daquele rudimentar direito bárbaro, propiciando a formação de um

135Cf. Prova judiciária no cível e comercial, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 16, as ordálias “se

fundavam na crença de que Deus não deixaria de sustentar o direito do inocente”, enquanto os juramentos davam o sentimento de que “ninguém se atreveria a tomar Deus como testemunha de uma falsidade”. Quanto às ordálias, nas suas modalidades e outras não citadas são descritas nas p.p. 17 usque 21.

136SANTOS. Moacir Amaral. In Prova judiciária no cível e comercial, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1983, p.

28.Também Primeiras linhas ..., v. 1, p. 42.

137SOARES, Fernando Luso. Direito processual civil. Coimbra: Livraria Almedina, 1980, p. 112: “É

certo, porém, que não foi em toda a parte assim, ou seja, com igual intensidade ou rigor. Durante a Idade Média debateram-se entre si duas correntes antagônicas – a germanista e a romanista. Mas não é menos exacto que é a primeira delas que em regra triunfa. O processo privado das suas características essenciais da oralidade, da publicidade, da concentração e da identidade do juiz, acaba por se consubstanciar numa complicadíssima e interminável série de actos, aliás incapazes de satisfazer as necessidades do comércio jurídico.”

138SANTOS, Moacyr Amaral. Primeira linhas de direito processual civil. 5ª ed. Saraiva: São Paulo,

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processo misto, identificado como romano-barbárico, ou, por força da região onde ascendeu - a Lombardia, processo romano-longobardo.