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CAPÍTULO 2 – ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA VERDADE PROCESSUAL

2.4 DEVER DA VERACIDADE NO PROCESSO CIVIL ROMANO

2.4.2 Período per formulas

É interessante observar que o desenvolvimento vai ocasionando novas situações, que acarretam consideráveis mudanças sociais e jurídicas – na antiguidade ou na atualidade. Assim sucedeu ao direito processual romano, que na ascensão de Roma, procurou conciliar as múltiplas ocorrências provenientes de uma cidade, que, primeiramente, ampliou os seus domínios, em seguida, passou a conviver com estrangeiros, e depois prosperava em população, riqueza, arte e comércio.

Como se vê, um progresso em todos os sentidos que precisa de proteção jurídica, para a garantia dos negócios e da própria cidadania romana. Como leciona Moacyr Amaral Santos: “O segundo período conhecido por período formulário ou per

formulas, vai do ano 149 a.C., ou seja desde a Lei Aebutia, até o século III da Era

Cristã. Abraça os tempos da República, que substituía o governo dos reis. Coincide com o amplo desenvolvimento romano nos mais variados setores.”103

Consequentemente, a ampliação do território romano e a influência que Roma passou a exercer sobre a península itálica, tanto em termos culturais quanto políticos, fez com que houvesse a necessidade de ajustar o direito aos tempos correntes de prosperidade.

101SOARES, Fernando Luso. A responsabilidade processual civil Coimbra: Livraria Almedina, 1987,

pp.59/60.

102Ibid., p. 60.

103SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 5ª ed. Saraiva: São Paulo,

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Enquanto Roma era menor, somente os romanos poderiam recorrer à magistratura para a solução das suas pendências e somente aos romanos se poderia aplicar o ius civile. Era, à época, o magistrado dos romanos, o pretor urbano. Contudo, o incremento dos negócios fez com que estrangeiros, domiciliados em Roma, passassem a reivindicar direitos contra romanos ou, mesmo, contra outros estrangeiros, resultando esta necessidade no surgimento do pretor peregrino (praetor peregrinus). Como os estrangeiros não estivessem submetidos ao ius civile, havia a necessidade da criação de novas fórmulas jurídicas, por meio das quais ficava definido o objeto do litígio, para que o processo prosseguisse perante o juiz escolhido pelas partes. Perante ele, então, continuava a demanda com a produção de provas e sentença final.

O fato generalizou-se. As novas fórmulas passaram a ser repetidas pelo pretor urbano, tornando-se a prática tão frequente entre os romanos, que fortaleceu o surgimento da Lei Aebutia (149 a.C.), que instituiu as fórmulas e extinguiu a legis

actiones, admitida sob exceção a partir desse momento. Subseqüentemente, duas leis Julia (lex iudiciorum privatorum e lex iudiciorum publicorum), decretaram a

extinção efetiva dos sistemas das legis actiones e instituíram o “sistema processual

per formulas”.104

O sistema per formulas baniu as solenidades daquele sistema que o antecedeu. Mesmo assim, manteve as fases que constituíam o processo primitivo e a característica de uma justiça híbrida, formada por um magistrado e um juiz, com características de árbitro, da livre escolha das partes ou senão, indicado pelo pretor. O nome do indicado era extraído da lista dos juízes (album iudicium).105

As fases do sistema formulário eram a in iure e in iudicio.106 A fase in iure

processava-se sob a direção de um pretor, com início pela iniciativa do autor que convidava o réu a comparecer à presença de um magistrado, que decidiria sobre o direito de ação ou não do proponente dela. Anota-se que o réu, não aceitando o convite do autor, dava-lhe o direito de conduzi-lo à força.

104SANTOS, Moacyr Amaral. Primeira linhas de direito processual civil. 5. ed. Saraiva: São Paulo,

1977.v. 1. p. 38.

105CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano e o direito civil brasileiro, no novo código civil.

28ª.ed.rev. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 299/300.

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Oportuno dizer que, quando o autor expunha a sua pretensão, já apontava no álbum a fórmula indicativa da ação que resguardaria o seu direito. A fórmula,107 como o próprio vocábulo evoca era o enunciado de uma regra ou de um preceito, com modelo publicado previamente pelo pretor em seu edito. Desse modo, se o autor fosse detentor do direito de ação, por reconhecimento do pretor, este juntamente com as partes elaboravam a fórmula, escrita em pequena tábua, na qual definiam a litiscontestatio,108 fixavam o objeto do litígio, declaravam-se os interessados obrigados a prosseguir na lide até a decisão final, bem como a aceitar o que fosse sentenciado. Além disso, a fórmula reserva espaço para nomeação do juiz, do árbitro ou árbitros, escolhidos pelas partes.

Convém dizer que a fórmula seria negada se o autor fosse carecedor de ação, dando ensejo à extinção do processo, que, igualmente se extinguiria se o réu admitisse e satisfizesse de plano a pretensão do autor ou a confessasse (confessio

in iure).

A fase in iudicio, tinha sob a sua direção um “iudex, ou arbiter, ou colégio de juízes, que continuavam a ser particulares e não autoridades ou funcionários do Estado. Procedia-se ao preparo e julgamento da causa; então, produziam-se as provas dos fatos, debatiam as partes os seus direitos e o juiz proferia a sentença, aplicando o direito à espécie, condenando ou absolvendo o réu.”109

As provas tinham, como nos dias atuais, sua importância, tanto que os meios guardam afinidade com o presente, pois eram “testemunhas, documentos, confissão e juramento”. Seguiam-se, após esta fase, os debates (altercaciones), quando as partes poderiam se representar por cognitores ou procuradores. 110

Dois pormenores quanto à sentença merecem registro. O primeiro deles refere-se à oralidade da sentença, como extensão ou complementação de todo o procedimento oral que norteava as duas fases, observando-se ademais que o juiz estava submetido à formula. O outro pormenor diz respeito à irrecorribilidade da

107 SOARES, Fernando Luso. Direito processual civil. Coimbra: Almedina, 1980, p.110: “O que era a

fórmula? E o que caracterizava o processo formular, próprio desse período? A prática da fórmula vem marcar, mais nítida, a função concretizante. A fórmula é um escrito de declaração jurídica que o juiz deverá resolver. Neste período, a actio é o direito de alguém perseguir pela fórmula aquilo que lhe é devido.”

108 SOARES, Fernando Luso. Direito processual civil. Coimbra: Almedina, 1980, p.110: “Não é difícil

ver na litis contestatio algo de contratual. Ela está mesmo na origem daqueles que perspectivaram o processo como um contrato, ou um quase-contrato.”

109 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeira linhas de direito processual civil. 5. ed. Saraiva: São Paulo,

1977.v. 1. p. 39.

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sentença e o terceiro à eficácia da sentença, que inobstante provir de um leigo, produzia resultados pela convenção da sua aceitação que as partes manifestavam por ocasião da litiscontestatio. Naquela ocasião, tanto o autor, quanto o réu, declaravam que cumpririam aquilo que fosse decidido.111

São características desse período: a) o procedimento oral, a exceção da fórmula; b) a divisão em duas fases: in iure e in iudicio, estando na fase in iure declarado o direito de ação, procedia-se à formula, que era o norte do juiz na fase in

iudicio; c) o comparecimento das partes era pessoal, mas estas podiam ser

orientadas por juristas e assistidas por cognitores ou procuradores; d) a prática do contraditório presente nos atos processuais e manifestações das partes; e) o princípio da livre convicção vigente à época dos formulários; f) a condenação sempre em dinheiro, muito embora a causa tivesse pedido de certa coisa.112

Na fase processual, como a do formulário, em que a ação e subseqüentes desdobramentos estavam sob o encargo das partes, sem a coerção de uma autoridade estatal , muito natural que se clamasse pela verdade e a impusesse com rigor. Era um meio de afastar injustiças bradantes, resultantes das inverdades deduzidas em juízo. O juiz julga, segundo o alegado e provado, de sorte que se o alegado é falso e a prova é inidônea , estas premissas comporão o silogismo com uma conclusão contaminada pelos enunciados prévios. Logo, uma injustiça se manifesta pela eiva dos enunciados prévios. Por isso, a verdade é tão prestigiada no processo civil romano. A propósito, o que se diz para o período em análise, diz-se, do mesmo modo, para a época processual das ações da lei ou da legis actiones.

Não irrelevante é recordar que, as fases processuais romanas das legis

actiones e per formulas, estavam regidas pela ordo iudiciorum privatorum , o que

revelava um vínculo privado e de caráter contratual, com a difundida ideia de que as partes tinham a integral liberdade de agir sem freio nas suas pretensões. Por isso

111 Cf. MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. 3ª.ed.rev., Rio: Forense,

1966, p. 102, n. 49: “Na fase apud judicen (ou in judicio), ditava o juiz a sententia, de conformidade com a fórmula oral ou escrita a que estava sujeito, nela subsumindo a matéria do litígio. A sentença era precedida de audiência oral com as partes. Dominava o princípio do contraditório e o da verdade real, não havendo recurso contra a sentença. Se a decisão não fosse cumprida voluntariamente, deveria ser pedida a execução ao magistrado. No processo per formula, isto se realiza pela actio judicati.”

112SANTOS, Moacyr Amaral. Primeira linhas de direito processual civil. 5ª ed. Saraiva: São Paulo,

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mesmo, as sanções e responsabilidades são ventiladas desde a antiguidade, como forma de prevalência da justiça.

Assim,

já nos primeiros tempos da República Romana se considerava a investigação da verdade como objeto fundamental da ação. Entre os recursos técnicos que deveriam assegurá-lo, destacou-se claramente, desde o segundo século antes de Cristo, o dever de veracidade. Em virtude da consideração – atribuída à época de Justiniano, mas evidentemente já então em vigor – de que as instituições processuais, destinadas à investigação da verdade existiam non pro commodo privatorum, sed pro

communi utilitate (não no interesse dos particulares, mas em benefício da

comunidade), aplicavam-se já então severas medidas preventivas contra a mentira processual. 113

Havia, nas instituições de Gaio e posteriormente nas de Justiniano, previsão de poenae temere litigantium (penas aplicáveis aos litigantes temerários); verdadeiramente, sanções contra a deslealdade processual. Contudo, como advertência das sanções opostas à deslealdade processual – a malícia processual (esse era o sentido romano), havia a possibilidade do juramento de calúnia,114 que consistia em exigir o autor do réu o compromisso da veracidade processual ao tempo em que o próprio autor, igualmente, assumia idêntico compromisso.

Sequencialmente, foram melhor definidas as práticas processuais que revelassem improbidade, fossem elas a calúnia ou temeridade e falsidades. A calúnia ou temeridade relacionava-se com a incorreção dos fatos e a demanda por créditos infundados, no sentido lato. Falsidades, a priori relacionavam-se com documentos falsos; a posteriori, com a supressão ou omissão de dados significativos para o processo, a pretensão a direitos inexistentes, propositura de ações injustificadas ou excesso de pedido sobre o crédito provado.115

Vê-se, pois, que a verdade era um princípio de inescusável cumprimento pelas partes no direito romano. Na instância in iure, sob a direção do magistrado romano, os atos processuais que refletiam a deslealdade de uma das partes, davam

113GROSSMANN, Kaethe. O dever de veracidade no processo civil – exposição de direito comparado.

Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 101, fascículo 499, janeiro de 1945, p. 280

114A fase corresponde ao período formulário, como se deduz pela retórica de Walter Zeiss, in El dolo

procesal: “Abolidos el procedimiento de las legis actiones y por ende también la legis actio sacramentum, la función de advertência contra los actos de improbidad procesal pasó – aparte las poenae temere litigantum – al juramento de calumnia, que se continuó aplicando em el proceso civil común.”(p. 16)

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ensejo a diversas providências, como a improcedência de qualquer argumentação, agravada, esta sanção, pela actio interrogatoria, com caráter penal, ou a responsabilidade in solidum. Quando a comprovação dava-se a tempo, a ação era rejeitada.116

Na fase in iudicio, em curso perante o juiz, havia o juramento de calúnia, obrigatório desde a época de Justiniano. A transgressão ao compromisso da lealdade processual acarretava ao réu a sua condenação ao dobro ou triplo da soma reclamada; ao autor a condenação tinha com base fração em torno de décimo do valor cobrado, além da condenação ao pagamento de indenização e custas judiciais. Todas estas sanções eram a título da “conduta processual injusta”.117 Mesmo assim,

se a ação fosse adiante, não obstante a mácula da deslealdade processual, “mencionam os Digestos a inexistência da autoridade da coisa julgada.”118

Nessa fase do processo romano outras penas surgem, com as incidências e características abaixo esclarecidas:119

a)a sponsio dimidae partis ou simplesmente sponsio era uma convenção, ou um rústico contrato verbal, assentado na fórmula da indagação/resposta: spondes?-

spondeo, que sacramentava a responsabilidade do demandado de pagar a outra

parte um acréscimo da metade do pedido se perdesse a causa. b)o restipulatio , restipulatio dimidiae partis ou tertiae partis,

constituía uma estipulação sob a forma de restipulatio (vinculação a que alguém se obrigava perante outrem), segundo a qual o demandante e o demandado reciprocamente se vinculam, a título de pena, por uma quantia

116GROSSMANN, loc. cit.

117MOREIRA, José Carlos Barbosa. em artigo de sua lavra denominado de “ a Responsabilidade das

partes por dano processual”, estampado na Revista de Processo n. 10 , abr-jun 1978, editada em São Paulo pela Revista do Tribunais, denomina a conduta malévola das partes de “incorreção do comportamento das partes”, tendo-a como um dos pressupostos da responsabilidade. Além do mais, elucida que: “É antiga nos legisladores, a preocupação de combater a incorreção das partes no seu comportamento em juízo. Bem se compreende a necessidade de tentar impedir que a falta consciente à verdade, o uso de armas desleais, as manobras ardilosas tendentes a perturbar a formação de um reto convencimento do órgão judicial, ou a procrastinar o andamento do feito, embaracem a administração da justiça e desviem do rumo justo a atividade jurisdicional.” (pp. 15 e 23).

118GROSSMANN, op. cit., pp. 280/281.

119Esclarece Fernando Luso Soares que, “diferente índole e distintas funções tiveram as várias penas

que existiram no período do processo formulário, para sancionar o vencido. Este constituiu a segunda fase do processo romano e vamos ver que nele o desenvolvimento histórico acabará por implicar, numa mesma teoria da responsabilidade processual, o tratamento das custas e do dolo.”(in A responsabilidade processual civil,págs. 60/61).

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equivalente à metade (ao terço) do pedido, que resultaria em favor do vencedor.120

Penas estas que tinham a particular característica de provirem de uma responsabilidade objetiva, ou melhor, responsabilidade processual objetiva, à qual estavam submetidos demandante ou demandado, desde que vencidos. Assim, conforme o vencimento, era cabível a multa a um ou outro dos demandantes. O vencimento – do demandante ou demandado – era o móbil da pena, comprovando- se a assertiva anterior da objetividade da sanção.