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CAPÍTULO 3 – DEONTOLOGIA DO PROCESSO

3.4 DIFERENÇA ENTRE PODER, ÔNUS, DEVER, DIREITOS E OBRIGAÇÕES

3.5.3 Lealdade e verdade

Pode-se presumir, fundado em diversas manifestações doutrinárias, que existe no âmbito processual harmoniosa relação entre a lealdade e a verdade. Por isso ambas são avaliadas, a partir de agora, em conjunto.

Prenunciando o encadeamento porvir, é possível inferir que a lealdade processual deve concorrer para a verdade que tanto se espera presente entre os participantes do processo.

Alfredo Buzaid, em trabalho intitulado Processo e verdade no direito brasileiro, após análise ao inc. I do art. 14 do CPC, no qual é dada ênfase à verdade, ratifica que,

todos os demais deveres das partes e dos seus procuradores estão em estreita conexão com o dever de dizer à verdade. Assim o art. 14, II, do CPC dispõe que compete às partes e aos procuradores ‘proceder com lealdade e boa-fé’. Esta norma legal regula a atividade honesta das partes. A lealdade, como o étimo da palavra indica a toda evidência, consiste em pautar os atos em correspondência com a lei.262

260Op. cit. , p. 300.

261Os poderes do juiz na direção e instrução do processo, p. 69

262Publicado na Revista de Processo n. 47, p. 96. MIRANDA, Pontes. Comentários ao código de

processo civil. t.I, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 470: “Lealdade, por seu étimo, é legalidade; mas nem todas as leis são regras jurídicas: há regras morais, éticas, artísticas, estéticas, regras de usos e costumes, regras religiosas (fora das regras jurídicas religiosas), regras econômicas, regras

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Deduz-se, pois, que desempenharem os litigantes suas atividades processuais com aporte na verdade é proceder de conformidade com a lei, ou com lealdade.

Por isso mesmo, deu-se uma aproximação aos vocábulos – lealdade e verdade, seguindo o próprio espírito do legislador, que os aproximou e os tratou analogicamente. A lealdade conduz a verdade, que, em termos processuais, permite regularidade na tramitação do processo e justiça na decisão.

Anote-se que a importância da verdade é histórica. Sua relação com o homem provém de um sentimento inato, que a humanidade valoriza e exige nas diferentes manifestações. A mentira, o oposto da verdade, é censurada socialmente.263 A verdade, muito ao contrário, foi questão nas mais diversas fases

da história, além de ser objeto de valor religioso e filosófico. Um exemplo muito trivial são os juramentos, que perenizam a verdade de quem declara alguma coisa ao longo de séculos, nas mais variadas circunstâncias. A prova como meio de sustentação ou ratificação de um fato debatido em juízo não prescinde da verdade. Toda a credibilidade das argumentações processuais esgrimidas pelos litigantes torna indispensável a presença da verdade, para levar o julgador ao convencimento. A relação verdade e direito, ou processo e verdade, é simétrica, tanto que, a definição de prova pode ser dada como “um mecanismo pelo qual se tenta estabelecer a verdade de uma alegação, de um direito ou de um fato”264. Assim fica

patente que as condutas e ocorrências processuais devem ser subsidiadas pela verdade.

É possível afirmar que o dever de veracidade ou de dizer a verdade e não mentir vem das origens da civilização. Por isso mesmo, religiosos, filósofos e pensadores detiveram suas ideias sobre o valor da verdade. E as leis, uma constante projeção dos anseios do povo e reflexo da cultura social, também

políticas, regras científicas, regras de moda, e muitas outras. No sentido em que o art. 14, II, emprega a palavra é o sinceridade, fidelidade, o que exige não só a verdade do que se diz como também o dever de não omitir.” Quanto à origem da palavra lealdade, esta provém de legale, termo latino, que significa, relativo às leis ou conforme à lei divina. (FERREIRA, António Gomes. Dicionário latim-português. Porto-Portugal: Porto Editora Lda. [s.d.], p. 666).

263BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, n.

47, p. 98: “(...)por tradição imemorial na História do universo, se impôs sempre aos homens dizerem a verdade como uma obrigação e se condenou sempre a mentira como uma manifestação torpe. Não se trata de um dever moral destituído de sanção. É um imperativo legal, que atende à condição da própria existência dos homens em sociedade. Por isso ele figura na legislação dos povos civilizados.”

264 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 2ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

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absorveram a verdade, como qualidade inarredável do direito, para a melhor realização da justiça.

Essas considerações serviram para dimensionar a amplitude da verdade, como exigência nas relações sociais, políticas e, igualmente, jurídicas.

Atualmente, pensa-se superada a fase vivida no século XIX, quando o processo admitia a luta renhida das partes sem lhes excluir a astúcia, habilidade e toda a sorte de paixões, ainda que ilegítimas, com o fim de frutificar a pretensão judicial daquela que fosse mais apropriada. Predominava como fruto da filosofia jurídica o sentimento “liberal e individualista”265, que afastou a lealdade e probidade

transmitidas pela tradição românica, germânica e canônica.

Lembra-se, por ser oportuno e propício ao tema, que até meados do século XIX, o processo era um meio para a solução do conflito intersubjetivo, sem que houvesse a devida autonomia do direito processual. A relação jurídica processual era olvidada em razão da relação jurídica de natureza substancial, que legitimava a discussão sobre o bem da vida e reproduzia os mesmos sujeitos do processo. A ação era considerada o próprio conflito, decorrente da lesão. Esta, representada pela violação ao direito subjetivo material. O período vivenciado era denominado de sincretismo, porquanto se fundia o direito substantivo com as vagas ideias do processo, de sorte que aquele – direito substantivo ou material - era determinante para a solução do conflito instaurado entre os litigantes.

A partir daí, na segunda metade do século XIX, a contribuição de Oskar Von Bülow ao processo deu autonomia científica ao direito processual, por meio de objeto e método próprio, deixando de ser apenas um auxiliar do direito civil para se constituir em um ramo do direito dotado de cientificidade. Logo, a relação jurídica processual passa a ser distinta da relação de direito material. Expurgam-se os vícios do processo de então, cunhado com visão privatista, reproduzindo as impressões do momento liberal, que valorizava o individualismo e as relações privadas, sem nelas intervir. Valorizavam-se, fundamentalmente, as relações privadas, como forma de assegurar a liberdade de cada uma insculpida na Declaração dos direitos do

homem e do cidadão, aprovada em 26 de agosto de 1789, pela Assembléia Nacional

da França, na qual os arts. 4º. e 5º. preconizavam a liberdade de fazer tudo aquilo

265 BUZAID, op. cit. p. 95.

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que não prejudicasse o próximo, bem como assegurava a todos, a possibilidade de tudo fazerem, desde que não fosse vedado por lei.

Com a temática liberal e individualista em voga naquela época, processo e juízes são tomados por este sentimento que domina a sociedade, persistindo o individualismo no direito processual, a supremacia da vontade privada sobre o público, o impulso processual determinado pela vontade das partes, e as provas sem qualquer ingerência judicial.266 Havia a lembrança do absolutismo despótico, de modo que, qualquer intervenção estatal nas relações intersubjetivas, poderia lembrar o passado e a possibilidade da retomada do controle de todas as relações privadas, como já existira em regime político anterior, com ameaça de retorno à tirania.

Advém desse momento histórico a dificuldade oposta à regularidade da conduta dos litigantes em processo judicial. Por isso, a resistência ao regramento da contenda processual, com a expectativa de um comportamento parcial de cada um dos demandantes, porém leal, ou seja, fiel à lei. Sem tramas, chicanas e inverdades.

As mudanças políticas se fizeram necessárias, como forma de atenuar os impactos sociais e políticos causados pelo avassalador individualismo que pontuava o sistema liberal. Substituiu-o o Estado social, que no direito brasileiro valoriza o trabalho e objetiva o bem-estar e justiça sociais267, não abdicando da efetividade de

todas essas premissas. Em suma, o bem comum é a meta do Estado contemporâneo; a finalidade maior, a provisão do povo e, no que concerne à jurisdição, especificamente, o bem comum se transmuda em pacificação com justiça.

Conclusivamente,

prevalecendo as ideias do Estado social, em que ao Estado se reconhece a função fundamental de promover a plena realização dos valores humanos, isso deve servir, de um lado, para pôr em destaque a função jurisdicional pacificadora como fator de eliminação dos conflitos que afligem as pessoas e lhes trazem angústia; de outro, para advertir os encarregados do sistema, quanto à necessidade de fazer do processo um meio efetivo para a realização da justiça.268

266DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4. ed. rev. e atual. São Paulo:

Malheiros Editores Ltda., 1994, p. 18, doutrina argutamente: “Tinha-se, até então a remansosa tranqüilidade de uma visão plana do ordenamento jurídico, onde a ação era definida como o direito subjetivo lesado (ou: o resultado da lesão ao direito subjetivo), a jurisdição como sistema de tutela aos direitos, o processo como m era sucessão de atos (procedimento); incluíam a ação no sistema de exercício dos direitos (jus quod sibi debeatur, judicio persequendi) e o processo era tido como conjunto de formas para esse exercício, sob a condução pouco participativa do juiz. Era o campo mais aberto, como se sabe, à prevalência do princípio dispositivo e ao da plena disponibilidade das situações jurídico-processuais – que são direitos descendentes jurídicos do liberalismo político então vigorante (laissez faire, laissez passer et lê monde va de lui même).

267CF, art. 193.

268CINTRA. Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER. Ada Pellegrini. DINAMARCO. Cândido Rangel.

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A nova ordem estatal renovou o ideário sócio-jurídico e deu valor à verdade processual, como elemento favorável ao postulado da ordem jurídica justa. Não se pode pensar em missão pacificadora do processo, sem que as partes processuais disputassem seus interesses usando dos mais variados e lesivos expedientes, que irremediavelmente influenciaram no espírito do julgador, passível de um pronunciamento judicial contaminado pela astúcia. Por isso, o predomínio da verdade e a exigência da lealdade como pertinentes à relação jurídica processual, sob pena de desnaturar-se.

Os deveres processuais das partes, e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, foram timbrados com peculiar particularização. Poderiam, talvez, estar restritos à condutas verdadeiras, leais e de boa-fé. Contudo, o legislador, como forma de não permitir que a dúvida, retirasse a eficácia do dever, pormenorizou-os com devida tipificação que deveria receber cada conduta devida por quem do processo tomasse parte.

O inc. I do art. 14 do CPC ordena que a exposição dos fatos seja verdadeira. Com este preceito é combatida a mentira, resguardado o tribunal contra o engano e a outra parte da solércia – por obra e ação acoimada de inverdades.

O inc. II, do mesmo artigo e código, reporta-se à lealdade e boa-fé, que representam a expectativa de conduta honesta das partes. O CPC esmiúça o comportamento de cada uma delas, detalhando quando e como fazê-lo a exemplo do que sucede com a petição inicial e a contestação. Por isso, quem não observa as normas correspondentes a estes atos, ou deixa para praticá-los a destempo, como forma de surpreender a parte contrária, age com deslealdade. Quanto à boa-fé, esta pressupõe que o demandante não age temerariamente.

Moacyr Amaral Santos refere-se à lealdade como princípio, “também conhecido por princípio da probidade, ou da moralidade”269, diz que este se insere declaradamente na lei processual como deveres das partes e de seus procuradores, dentre os quais conta o de “proceder com lealdade e boa-fé”270 (art. 14, inc. II). E

prossegue:

269SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 2º v. 22. ed. rev. e atual., São

Paulo: Editora Saraiva, 2002, p.79.

270 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 2º v. 22. ed. rev. e atual.,

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Todavia, a esse dever se enlaçam outros que o integram, previstos no mesmo art.14, quais sejam: ‘I – expor os fatos em juízo conforme a verdade; (...)III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.271