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CAPÍTULO 1 O PROCESSO: CONTEXTUALIZAÇÃO E FINALIDADES

1.2 A PACIFICAÇÃO QUE O PROCESSO ENCERRA

Conseqüentemente, o processo, dentro das suas inúmeras perspectivas, pode ser visto ontologicamente ou estudado como um ser que representa a dialética de um conflito intersubjetivo, submetido à apreciação do Estado-juiz para julgamento da causa. Assim o diz, com o seu proverbial conhecimento, Fernando Luso Soares: “o processo, como aliás toda a organização de meios instituída para um determinado fim, constitui um ser. É isso: o processo é ontologicamente necessário.”31

30SHIMURA, Sérgio. Arresto cautelar. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos

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Louvando-se na afirmativa anterior, que identifica o processo como um ser necessário, cabe justificar a asserção. Em primeiro lugar, porquanto a exigência do processo se justifica na medida em que, somente por seu intermédio, é possível aos interessados em um litígio se convencerem da afirmação da justiça, por meio de uma decisão judicial. Em segundo lugar, porque, como meio de representação da autoridade estatal, o processo impõe respeito, com a dignidade de todos que dele participem. Ao revés, haverá sanções e responsabilidades processuais, sobretudo para afastar a litigância de má-fé. Por isso, o processo é uma entidade indispensável à realização do direito.

Ademais, existem outros termos e ocorrências que podem fortalecer a ideia da necessidade do processo. Conseqüentemente, o interesse, o conflito de interesses, a pretensão e a lide, vistos em estreitas linhas abaixo, realçam fatos e concorrem para a necessidade do fenômeno processual.

Registra-se que entremeiam a vida social, os bens. Fato, até imperceptível, mas real, é a necessidade que o homem tem de se acercar ou mesmo se apropriar desses bens para a sua sobrevivência, evolução e bem-estar. Realça José Eduardo Carreira Alvim, que a “necessidade decorre do fato de que o homem depende de certos elementos, não só para sobreviver, como aperfeiçoar-se social, política e culturalmente, pelo que não seria errôneo dizer que o homem é um ser dependente.”32

A necessidade primária dos bens da vida produz no homem um interesse, que pode ser o núcleo de toda a lide, ou de toda a desavença, que adiante se transformará em um processo judicial para a composição desse conflito, dessa disputa. Há uma relação homem e bem, intermediada pelo interesse. No homem está o sujeito do interesse; no bem, encontra-se o objeto do interesse e um conflito à vista, frente à perspectiva de uma contenda entre dois sujeitos por um único bem, como ocorre cotidianamente.

31SOARES, Fernando Luso. A responsabilidade processual civil. Coimbra: Livraria Almedina, 1987, p.

105.

32ALVIM, José Eduardo Carreita. Elementos de teoria geral do processo, Rio de Janeiro: Forense,

1995, p. 2. Na mesma página, “esta expressão – necessidade – é difícil de ser definida; traduz-se numa situação de carência ou desequilíbrio biológico ou psíquico. Etimologicamente, deriva de nec esse, que significa não ser, não existir. Em outras palavras, traduz a falta de alguma coisa.”

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Como disse Moacyr Amaral Santos, “a razão entre o homem e os bens, ora maior, ora menor, é o que se chama de interesse”33, ou “o interesse é um juízo formulado por um sujeito acerca de uma necessidade, sobre a utilidade ou sobre o valor de um bem, enquanto meio para a satisfação dessa necessidade.”34

Sucede que os interesses são sempre ilimitados, mormente em uma sociedade de consumo, como se denomina o conjunto de pessoas que convivem atualmente, ao passo que os bens são limitados, de sorte que se “duas ou mais pessoas têm interesse pelo mesmo bem, que a uma só pode satisfazer, dar-se-á um conflito intersubjetivo de interesses ou simplesmente um conflito de interesses.”35

O conflito de interesses pode diluir-se desde que os seus sujeitos observem as disposições contidas em lei ou um deles renuncie ao seu intuito. Mas, por outro lado, pode consolidar-se em uma pretensão.36 Esta acontece quando um dos sujeitos deseja submeter o interesse de outrem ao seu próprio ou faz prevalecer o seu interesse frente ao outro. É uma situação para a qual concorrem duas possibilidades, sendo a primeira delas a de conformar-se um dos sujeitos com a submissão ao outro e a conseqüente perda do bem; a seguinte é resistir à pretensão daquele sujeito que defende a hegemonia do seu interesse. Esta conflagração de pretensões produz um embate, um choque de interesses. A doutrina o denomina de conflito de interesses, que representa um litígio ou lide. Lide37, portanto, é este

conflito de interesses onde se destaca uma pretensão resistida.

O litígio ou a lide desarmoniza a vida social, produzindo um desequilíbrio nas relações intersubjetivas, que urge pela restauração. Para tanto é necessário

33SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 1º v., 9. ed.atual., São Paulo:

Saraiva, 1981. p. 3.

34ALVIM, José Eduardo Carreira. Elementos de teoria geral do processo, Rio de Janeiro: Forense,

1995. p. 4.

35SANTOS, op. cit., p. 4.

36“Pretensão é, pois, a exigência da subordinação de um interesse de outrem ao próprio”, in

Primeiras linhas…, p. 8.

37Na Exposição de motivos do Código de Processo Civil vigente, elaborada por Alfredo Buzaid, então

Min. da Justiça, em 31.07.1972, foi averbado a respeito da terminologia processual (n. 6), que “o projeto só usa a palavra ‘lide’ para designar o mérito da causa. Lide é, consoante a lição de CARNELUTTI, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência de outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes.”

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solucionar o conflito de interesses ou compor a lide de acordo com a ordem jurídica, restabelecendo a paz social.38

O direito objetivo será a diretriz para a composição do litígio, pois solvê-lo impõe a aplicação da lei ao caso concreto, sendo de se observar que, esta atuação da lei à espécie devida, há que ser feita de conformidade com a especificidade de cada caso, por meio de órgãos constituídos para fazê-lo.

O meio próprio para fazer aplicação da lei ao caso concreto, com as operações jurídicas convenientes, é o processo. Hoje, em decorrência da Constituição Federal, apenas o termo processo será insuficiente para a proeminência que a ele se confere. Diz-se bem mais, pois se fala em devido processo legal, numa representação da sua magnitude para compor a lide.39 O

devido processo legal não é apenas um processo judicial, mas um processo justo, legítimo, capaz de assegurar direitos e produzir deveres, tudo em conformidade com a ordem jurídica.

Veja-se, pois, que se introduziu o tema acerca do processo reportando-se ao método ou meio que ele representa. Este meio é fundamentalmente necessário para o exercício da justiça e plenitude da cidadania, à luz da doutrina e da Constituição Federal. Conclui-se, agora, acrescentando que o processo, como meio de composição dos litígios, é um instrumento de pacificação social.

A sociedade contemporânea produz sistematicamente utilidades para despertar interesses e sugestionar necessidades. Estas descambam para pretensões e conflitos, alguns de proporções, que o processo visa mitigar por meio da solução do litígio. Na atualidade, o processo está alçado à condição de um meio indispensável para a pacificação social e a harmonia das relações intersubjetivas. Do contrário, voltar-se-á à violência, que se manifestava nas sociedades primitivas quando os interesses eram disputados acirradamente.

Por isso o processo tem toda uma deferência da Ciência Jurídica, uma vez que representa a salvaguarda das relações sociais e a prevalência do direito objetivo sobre a força.

38 E a paz, à qual se faz alusão, tem a seguinte e oportuna observação: “O processo não cumprirá

sua finalidade, de pacificação social e de segurança jurídica, de instrumento de expressão da cidadania, próprio de uma democracia participativa, enquanto for visto e estudado como mera especulação acadêmica, apenas como pura retórica e ciência isolada e descolada do direito material, sem que esteja voltado à busca e à solução dos problemas da vida, sem que seu norte esteja direcionado a resultados práticos que evitem ou atenuem os conflitos sociais.”(SHIMURA, Sérgio. Tutela coletiva e sua efetividade. São Paulo: Editora Malheiros, 2006, p. 21.

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