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A redescoberta da vontade privada: um retorno ao privatismo processual?

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 102-107)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

2 PREMISSAS PARA A COMPREENSÃO DA CLÁUSULA GERAL DE NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO

2.1 PREMISSAS HISTÓRICAS E IDEOLÓGICAS

2.1.3 A redescoberta da vontade privada: um retorno ao privatismo processual?

A ideia de que a valorização da autonomia privada implicaria um indesejado retorno à fase do privatismo processual e a circunstância de haver o publicismo, em contrapartida, desprezado a autonomia das partes no processo são fatores que contribuíram para que sobre o tema dos negócios processuais a doutrina, em grande medida, silenciasse31. Em verdade, a concepção publicística tradicional de processo tende a enxergar essa relevância atribuída à autonomia de vontade das partes como um retrocesso, uma tendência à privatização da relação jurídica processual, um retorno, enfim, à visão de processo como coisa das partes.

O adequado tratamento a ser conferido ao tema perpassa pelo afastamento dessa errônea premissa soerguida pelo publicismo.

Não há, em primeiro lugar, incompatibilidade entre o caráter público do processo e o exercício, pelas partes, de sua autonomia da vontade. Tampouco há, em segundo lugar, exclusividade relacional entre o autorregramento dessa vontade em matéria processual e o modelo adversarial de processo.

29 GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – primeiras reflexões. In: MEDINA, José Miguel Garcia

et al. (coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo, RT, 2008, p. 290.

30

Nesse sentido posiciona-se Antonio do Passo Cabral, ao apresentar a primeira das duas teses fundamentais que lastreiam o seu trabalho em: CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 38.

31

GODINHO, Robson Renault. A autonomia das partes no projeto de Código de Processo Civil: a atribuição convencional do ônus da prova In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2014, v. 03, p. 564.

É possível harmonizar a autonomia da vontade das partes com o caráter público do processo. O espaço concedido a essa autonomia decorre, sobretudo, da circunstância de serem as partes as destinatárias da prestação jurisdicional. Elas possuem, desse modo, interesse e, por vezes, maiores condições de avaliar as providências necessárias para o alcance da solução do litígio, sem que deixem de ser resguardados, nessa escolha, os objetivos processuais ligados ao interesse público (a paz social, o bem comum, dentre outros)32.

O processo, visto não do ponto de vista ideal, mas, sim, histórico, revela uma convivência entre elementos privatistas e publicistas, não se encontrando, na realidade, os tipos puros tais como idealizados pela doutrina. Nesta, muitas vezes, é maior a reação ao privatismo do que a busca equilibrada de meios de viabilizar a participação das partes no processo, sem que se despreze a autoridade judicial, como se o prestígio conferido à autonomia das partes representasse uma ameaça às conquistas alcançadas pelo processo civil na concepção publicística, em especial a sua autonomia científica33.

A rejeição da ideia de processo como coisa das partes foi premissa soerguida pelo publicismo para a construção de um modelo processual – o inquisitivo – pautado na supremacia judicial. Em virtude desse movimento, os acordos processuais foram postos à margem do sistema, como reflexo de uma visão processual privatista que se buscava esquecer. Sendo cogentes as normas processuais, não poderiam ser elas suplantadas por normas de cunho convencional34.

O publicismo processual rotula de “privatização do processo”, “neoprivatismo”, “neocontratualismo” ou “visão liberal do processo” qualquer manifestação intelectual que defenda a admissão dos negócios jurídicos processuais. Esse movimento é visto como um retrocesso, uma nostalgia dos tempos do direito romano antigo35.

32 GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – primeiras reflexões. In: MEDINA, José Miguel Garcia

et al. (coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo, RT, 2008, p. 291. Também defendendo a compatibilidade entre a autonomia das partes e o publicismo: GODINHO, Robson Renault. Negócios processuais sobre o ônus da prova no novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 41.

33 GODINHO, Robson Renault. A autonomia das partes no projeto de Código de Processo Civil: a atribuição

convencional do ônus da prova In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2014, v. 03, p. 560-561.

34 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 33-34. 35

Tais dados foram retirados da obra de CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 180-181. De se recordar que o autor faz alusão a tais nomenclaturas no contexto de demonstrar como o publicismo recepcionava qualquer tentativa de ampliação do papel das partes no processo, em especial no âmbito negocial. Não é demais salientar, entretanto, que o autor não se enquadra quer como publicista, quer como neoprivatista; ao revés, a proposta central de seu trabalho reside, justamente, na superação da dicotomia entre publicismo e privatismo, superação esta que lastreia no processo cooperativo, no princípio do respeito ao autorregramento da vontade das partes no processo e na conjugação entre os princípios do debate e

Inúmeros fatores, no entanto, têm contribuído para demonstrar a insubsistência desse pensamento, reforçando a necessidade de se estudar, repensar e valorizar a autonomia privada no processo, conferindo-se às partes maior espaço para autorregularem suas situações jurídicas processuais e para definirem os contornos do procedimento a ser seguido.

O constante problema da necessidade de se buscar um fundamento que confira legitimação a posteriori à atuação jurisdicional põe-se, aqui, como um desses fatores. A substituição do comando pelo consenso36, incentivando-se a participação das partes não apenas no desenvolvimento do debate, mas na própria construção do instrumento que o veiculará, robustece a importância de se atribuir espaço à negociação em matéria processual em prol de se garantir a vindicada legitimação da atividade jurisdicional prestada37.

De outro lado, já se apontou a incapacidade do Estado em regular a vida social em toda a sua complexidade e em todo o seu dinamismo, sempre existindo um delay quantitativo e qualitativo na previsão legislativa das condutas humanas relevantes para o direito. O legicentrismo em que se assenta o publicismo acha-se, pois, em franca decadência, assim como a centralização estatal de um modo geral38. A contratualização das relações sociais39 exsurge como uma das propostas de solução a esse problema, valorizando-se o negócio jurídico como fonte normativa40.

dispositivo. Com base em tais premissas, assevera que o espaço conferido à autonomia das partes para disciplinar o procedimento vai ao encontro dos objetivos de reforço do acesso à justiça e de tutela dos direitos (idem, p. 37-38). Ainda como sinônimos das expressões citadas no texto, há referência aos termos “neoliberalismo jurisdicional” e “revisionismo” (ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo: das convenções processuais no processo civil. São Paulo: LTR, 2015, p. 112).

36 COSTA, Eduardo José da Fonseca. Calendarização processual. In: CABRAL, Antonio do Passo;

NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 358.

37

Nesse sentido: CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 169- 170.

38 Afirma-se que o legicentrismo, sobre o qual se assentou o publicismo, encontra-se em franca decadência uma

vez que três fatores, pelo menos, contribuíram para afastar o primado da lei nos sistemas jurídicos atuais. O primeiro deles consiste na atribuição de força normativa à Constituição, deslocando-se o eixo do ordenamento jurídico, que antes centrava-se na lei, para as normas constitucionais. O segundo fator relaciona-se à tendência do legislador de ofertar à sociedade textos normativos abertos (cláusulas gerais e textos que contemplem conceitos jurídicos indeterminados), transferindo ao julgador a tarefa de concretizar o comando normativo, conferindo-lhe, para tanto, maior poder de criação do direito, o que também infirma, de certo modo, a primazia da lei propugnada pelo legicentrismo. Por fim, a valorização dos precedentes judiciais como fonte do direito igualmente tem conduzido à desvinculação da ideia de que a norma jurídica somente tem origem em texto normativo emanado do legislador (ou, excepcionalmente, do Executivo).

39

A tendência de “contratualização contemporânea das relações sociais” é pontuada por: CADIET, Loïc. Los acuerdos procesales em derecho francés: situación actual de la contractualización del processo y de la justicia en Francia. Civil Procedure Review, v. 03, n. 03, ago.-dez./2012, p. 04-05. Disponível em <www.civilprocedurereview.com>. Acesso em 10/07/2015.

40

Segundo registro de Antonio do Passo Cabral, a inadequação dos procedimentos criados em lei para atender às necessidades do direito material das partes, por um lado, e, por outro, a inviabilidade de se promover a solução extrajudicial de conflitos em vários casos (por questões de descabimento da medida ou de custo, por exemplo)

Somem-se a esses fatores a crise que vem sendo enfrentada pelo Poder Judiciário (excesso de demandas, déficit de estrutura, de pessoal e de legitimação), servindo a técnica negocial em matéria processual como ferramenta de seu combate (ou seja, como mais um instrumento de gestão processual)41.

Do ponto de vista lógico, há se de reconhecer que atende à coerência sistemática a aceitação dos negócios jurídicos em matéria processual. Uma vez que a autonomia privada é a principal fonte de regulamentação dos interesses materiais deduzidos em juízo, não haveria razão para não se admitir que ela pudesse disciplinar aspectos da relação processual, seguindo-se a lógica de que “quem pode o mais, pode o menos”42.

A tendência que hoje se verifica converge para o abrandamento das grandes dicotomias existentes (Direito Público x Direito Privado; publicismo x privatismo). Nesse sentido, Remo Caponi defende a superação da primeira e a construção de um direito intermediário e intersticial. Invoca, como modelo para essa reflexão, o Direito Administrativo, cuja autonomia disciplinar foi obtida após a do Direito Processual e nela inspirada, mas que se abriu para o novo à vista das necessidades constatadas pelo seu contato com a realidade econômica e social43.

Antonio do Passo Cabral, por sua vez, dedicou a sua tese de livre-docência à superação da problemática dicotomia entre publicismo e privatismo no processo, demonstrando a compatibilidade entre o publicismo e as convenções processuais, estruturada à vista do modelo cooperativo de processo44. Este modelo infirma a premissa de que a valorização do autorregramento da vontade em matéria processual conduziria, inexoravelmente, à adoção do modelo adversarial exaltado pelo privatismo, revelando a possibilidade de alcance do almejado equilíbrio entre as duas opostas ideologias.

A autonomia das partes não deve, assim, ser vista nos moldes em que talhada pela

reforçaram essa reação no sentido da valorização dos acordos processuais (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 35).

41 CADIET, Loïc. Los acuerdos procesales em derecho francés: situación actual de la contractualización del

processo y de la justicia en Francia. Civil Procedure Review, v. 03, n. 03, ago.-dez./2012, p. 06. Disponível em <www.civilprocedurereview.com>. Acesso em 10/07/2015.

42

CAPONI, Remo. Autonomia privata e processo civile: gli accordi processuali. In: Accordi di parte e processo. Supplemento della Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, ano LXII, nº 03, 2008, p. 108. Em sentido semelhante: ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo: das convenções processuais no processo civil. São Paulo: LTR, 2015, p. 105-106.

43

CAPONI, Remo. Autonomia privata e processo civile: gli accordi processuali. In: Accordi di parte e processo. Supplemento della Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, ano LXII, nº 03, 2008, p. 117.

44 CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 36-38. No mesmo

sentido, Robson Godinho defende a superação da dicotomia entre privatismo e publicismo (GODINHO, Robson Renault. Negócios processuais sobre o ônus da prova no novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 27).

concepção privatista clássica do processo; impõe-se-lhe um viés constitucional, que a um só tempo cede espaço a essa autonomia e a ela confere limites45. O ponto de equilíbrio entre ativismo judicial (publicismo) e autonomia das partes (privatismo) reside no diálogo participativo entre partes e juiz, à luz de um modelo cooperativo de processo46-47.

A atribuição de maior relevo à autonomia da vontade das partes não é característica exclusiva do modelo adversarial de processo, sendo igualmente consentânea com o modelo cooperativo. Este busca estruturar o feito ao modo de uma verdadeira comunidade de trabalho, em que os sujeitos processuais (especialmente partes e juiz) atuam de modo coordenado com vistas ao alcance da justa resolução do litígio em tempo razoável.

Nesse panorama, apenas se verificando a posição de superioridade do órgão judicial no momento de proferir o julgamento e assumindo o julgador o papel de sujeito do contraditório, revela-se de todo razoável o reconhecimento, às partes, de certa autonomia para adequar as regras procedimentais àquele escopo perseguido pelo processo no modelo cooperativo. Promove-se um verdadeiro empoderamento das partes e de seus advogados no conflito, afastando-se a visão “infantilizada” dos cidadãos, sempre dependentes do Estado48.

Conclui-se, pois, em resposta à pergunta que inaugurou este subtópico, que a redescoberta da vontade privada no processo não implica forçosamente o regresso ao privatismo processual, opinião já externada por parte da doutrina pátria e à qual se adere49.

45 GODINHO, Robson Renault. A autonomia das partes no projeto de Código de Processo Civil: a atribuição

convencional do ônus da prova In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2014, v. 03, p. 558. Em sentido semelhante, Marcelo Lima Guerra sustenta que o art. 190 do CPC/2015 explicita norma que já poderia ser diretamente extraída, de modo implícito, do modelo constitucional de processo construído a partir da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, o autor concebe o regramento do art. 190 do CPC/2015 como reflexo não de uma privatização do processo, mas, sim, de sua mais evidente publicização, advinda do fenômeno da constitucionalização. Por consequência lógica, os limites impostos à negociação processual pelas partes também hão de ser hauridos dos valores que integram esse modelo constitucional de processo (GUERRA, Marcelo Lima. Negócios jurídicos processuais e direitos fundamentais: premissas para a construção de um modelo constitucionalmente adequado de controle jurisdicional dos negócios jurídicos processuais. Disponível em: <https://cpc2015blog.wordpress.com/2016/06/14/negocios-juridicos-processuais-e-direitos-fundamentais- premissas-para-a-construcao-de-um-modelo-constitucionalmente-adequado-de-controle-jurisdicional-dos- negocio-juridicos-processuais>. Acesso em: 14/06/2016).

46 CÂMARA, Marcela Regina Pereira. A contratualização do processo civil? Revista de processo, São Paulo, n.

194, abr./2011, p. 406.

47 Um exame mais aprofundado das características inerentes ao modelo cooperativo de processo pode ser

encontrado em: BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 167-228.

48

CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 171.

49 Nesse sentido, por todos: NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. A cláusula geral do acordo de procedimento

no Projeto do Novo CPC (PL 8.046/2010). In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 21; GODINHO, Robson Renault. A autonomia das partes no projeto de Código de Processo Civil: a atribuição convencional do ônus da prova In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 102-107)

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