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Desapropriação amigável

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 48-52)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

1.4 MANIFESTAÇÕES DA CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

1.4.1 Desapropriação amigável

A desapropriação é uma forma de aquisição da propriedade, por intermédio da qual o Poder Público retira um determinado bem da esfera jurídica de seu titular, mediante pagamento de indenização justa e, em regra, prévia. Trata-se de ato tradicionalmente

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O sistema multiportas de solução de controvérsias pressupõe que se busque resolver cada conflito pelo meio que se revele mais adequado a tal finalidade, Os meios consensuais de resolução de disputas adquirem preeminência em relação à solução adjudicada judicialmente, deixando, portanto, de ser considerados como simples “meios alternativos” à decisão judicial. Há um redimensionamento, ainda, da atividade afeta ao Poder Judiciário, a quem se atribui a função de promover o tratamento adequado de conflitos, que extrapola a simples função de julgar. Trata-se, em suma, de modelo de cunho democrático e participativo, calcado no empoderamento do indivíduo, que passa a ter papel mais ativo na solução da controvérsia. Seu adequado incremento pressupõe mudanças estruturais e culturais ainda em curso na sociedade brasileira (LESSA NETO, João Luiz. O novo CPC adotou o modelo multiportas!!! E agora? Revista de Processo, São Paulo, ano 40, n. 244, jun./2015, p. 428-431).

69 Há o modelo de previsão normativa difusa, em que as hipóteses de atuação consensual estão restritas àquelas

estabelecidas em prescrições específicas. Há, por outro lado, o modelo de previsão normativa estabelecida em permissivo genérico, no qual se confere à Administração uma autorização geral à concertação, sem prejuízo da existência de normas especiais dispondo sobre hipóteses específicas e regulando-as (PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 235). A autora defende (em trabalho redigido anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 13.140/2015 – Lei de Mediação) que o sistema jurídico federal brasileiro estaria vinculado ao primeiro modelo, embora houvesse caso, no Brasil, de sistema jurídico atrelado ao modelo de previsão normativa genérica, como ocorre no Estado de São Paulo (idem, p. 236).

relacionado à prerrogativa imperativa do Estado, fulcrado no princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.

Costuma a desapropriação ser examinada à luz de duas distintas fases: a primeira, dita “declaratória”70

, em que o Poder Público expropriante “declara” o bem a ser expropriado como de utilidade pública ou interesse social, e a segunda, intitulada de executória, que pode ser efetivada no âmbito administrativo (ou extrajudicial) ou em sede judicial71.

A fase declaratória é comumente realizada pelo Poder Público sem a participação do proprietário do bem; define-se o bem a ser expropriado e indica-se a finalidade do ato expropriatório (atendimento a fim de interesse social, utilidade pública ou necessidade pública).

Na fase seguinte, a executória, competirá, como regra, ao expropriado discutir, apenas, o valor da indenização (preço) e, além disso, na esfera judicial, eventuais defeitos do processo. A ação de desapropriação é reconhecida como processo de cognição limitada; eventuais outras questões passíveis de controvérsia deverão ser discutidas em outro processo, sujeito ao procedimento comum72.

A releitura de paradigmas do Direito Administrativo brasileiro em decorrência do advento da Constituição Federal de 1988 pôs em xeque a abstrata regra de prevalência do interesse público sobre o particular. Ao mesmo tempo, o valor da participação foi erigido pela Constituição como pedra de toque do Estado Democrático de Direito, informativo da atuação administrativa em sua inteireza. Nenhum instituto deve estar a ela indiferente; todos hão de ser reformulados à vista dessa nova perspectiva.

À luz dessa premissa, questiona-se, por exemplo, se o caráter unilateral e não contraditório da fase declaratória da desapropriação conformar-se-ia com o Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, se seria lícito ao Poder Público expedir o decreto

70 A despeito de intitulada como “declaratória” (e assim será tratada no texto, em respeito à nomenclatura

usualmente utilizada no âmbito do Direito Administrativo), a primeira fase da desapropriação tem, em verdade, natureza constitutiva, uma vez que, por intermédio dela, o Poder Público expropriante altera a situação jurídica do bem objeto da medida expropriatória. Não por outra razão, apenas após a “declaração” de utilidade pública: a) as autoridades administrativas ficam autorizadas a penetrar nos prédios nela compreendidos, inclusive, se necessário, com o auxílio de força policial; b) pode ser efetivada a desapropriação amigável ou ajuizada a ação de desapropriação. Além disso, a caducidade do decreto expropriatório não se coadunaria com eventual natureza declaratória daquele.

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CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de direito administrativo. 14. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 427-431.

72 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 732-

expropriatório sem que o particular tivesse participado do processo que o precede e sem que pudesse impugnar administrativamente o seu teor.

Não há óbice no Decreto-Lei nº 3.365/1941 a essa participação do particular na formação da decisão administrativa, tampouco vedação à impugnação administrativa do decreto expropriatório. O texto normativo nada diz a respeito; a norma que dele se extraía é que foi nesse sentido construída, segundo a ideologia vigente ao tempo do surgimento do citado Decreto-Lei (era da ditadura Vargas).

O Estado Democrático de Direito não se coaduna com essa conclusão e não confere sustentáculo a tal norma. Repugna-a, ao revés, porque contrária aos princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório (art. 5º, LIV e LV, da CF/1988, ambos aplicáveis ao processo administrativo) e ao modelo de democracia participativa que se extrai da Constituição Federal de 1988.

A norma em debate deve ser, portanto, reconstruída, em atenção, inclusive, à Lei nº 9.784/1999 (que regula o processo administrativo na Administração Pública Federal e que é subsidiariamente aplicável a outros processos administrativos). Referida Lei confere ao administrado, por exemplo, o direito de se pronunciar e de participar da instrução do processo administrativo antes da tomada da decisão administrativa, que deverá levar em consideração os elementos adunados ao processo pelo interessado (art. 3º, III, da Lei nº 9.784/1999)73.

A participação do expropriado na fase declaratória da desapropriação pode conduzir, inclusive, a uma maior efetividade do regramento estabelecido pelo art. 10 do Decreto-Lei nº 3.365/1941, que particularmente interessa ao presente capítulo. O texto normativo em evidência consagra (e o faz desde a década de 40 do século XX) espaço de consensualidade no qual expropriante e expropriado podem efetivar a desapropriação mediante acordo, sem acorrer ao Poder Judiciário. Trata-se do que se convencionou chamar de “desapropriação amigável”, ultimada na esfera administrativa.

No particular, a releitura do texto normativo constante do art. 10 do Decreto-Lei nº 3.365/1941 acarreta a discussão quanto aos limites objetivos da concertação a ser realizada entre expropriante e expropriado. É comum afirmar-se que a esfera de discussão prévia à celebração de acordo de desapropriação cinge-se ao preço do bem. Tal conclusão é fruto da

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PORTELA, Felipe Mêmolo. Desapropriação amigável: revisitação do tema à luz do direito administrativo contemporâneo. Argumenta: Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, Jacarezinho, n. 21, jul.-dez./2014, p. 112-113.

interpretação tradicionalmente conferida a esse texto normativo, não constando do dispositivo expressamente tal limitação.

Em verdade, porém, outros aspectos poderão ser objeto de negociação na desapropriação amigável, desde que não afetado o interesse público que determinou a expropriação do bem. Há a possibilidade de inserção, no acordo, de obrigação de fazer assumida pelo Poder Público, como, por exemplo, a construção de via de acesso para a parte do imóvel não desapropriado. Outras possibilidades seriam as de estabelecimento de prazo para a desocupação do imóvel ou de restrição da área a ser desapropriada (uma espécie de renúncia parcial à desapropriação pelo ente público)74.

Há quem afirme, inclusive, que a fase executória administrativa seria obrigatória, devendo o Poder Público promover a tentativa de celebração da desapropriação amigável antes da judicialização da pretensão expropriatória75. O pensamento harmoniza-se com o princípio da eficiência (art. 37 da CF/1988) e contribui para a redução da litigiosidade no âmbito da Administração Pública.

De todo modo, celebrado o acordo, não poderá o Poder Público valer-se de atuação verticalizada para alterá-lo unilateralmente, estando a ele vinculado, conclusão que se coaduna com a aplicação do princípio da boa-fé às condutas administrativas. Além disso, em respeito ao princípio da isonomia, as condições encartadas no acordo expropriatório poderão ser invocadas por outros administrados como precedentes em futuras contratações, desde que haja similitude fática entre ambas76.

A desapropriação amigável, como exemplo de acordo administrativo, demonstra que a consensualidade no Direito Público, embora tenha sido incrementada especialmente a partir da década de 90 do século XX, como adiante se demonstrará, já se encontrava em certa

74 PORTELA, Felipe Mêmolo. Desapropriação amigável: revisitação do tema à luz do direito administrativo

contemporâneo. Argumenta: Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, Jacarezinho, n. 21, jul.-dez./2014, p. 116-119.

75 Nesse sentido, entendendo que a via judicial somente deve ser utilizada após esgotamento das tentativas de

celebração de acordo administrativo com o particular para ultimação da desapropriação: SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 3. ed. São Paulo: RT, 1995, p. 222-223. O autor esclarece que o acordo celebrado entre o expropriante e o expropriado versará apenas sobre o valor do bem objeto da desapropriação, jamais sobre esta ou sobre seus pressupostos. Afirma que a desapropriação é, por natureza, uma transferência compulsória da propriedade do particular para o Poder Público e critica, por consequência, o uso da expressão “desapropriação amigável”. Em sentido semelhante, reputando, embora, que tal fase de tentativa de celebração de acordo administrativo deveria ser reputada obrigatória em solução a ser adotada de lege ferenda: MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 7. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 383.

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PORTELA, Felipe Mêmolo. Desapropriação amigável: revisitação do tema à luz do direito administrativo contemporâneo. Argumenta: Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, Jacarezinho, n. 21, jul.-dez./2014, p. 120.

medida introduzida no cenário jurídico-positivo brasileiro quando menos há cerca de 70 (setenta) anos77.

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 48-52)

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