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Conceito de procedimento

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 175-181)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

2 PREMISSAS PARA A COMPREENSÃO DA CLÁUSULA GERAL DE NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO

2.2 PREMISSAS LÓGICO-CONCEITUAIS

2.2.9 Conceito de procedimento

O delineamento do conceito de procedimento é premissa lógica imprescindível à compreensão da cláusula geral de negociação processual encartada no art. 190 do CPC/2015, que o tem por objeto. Trata-se, porém, de temática que enseja dissenso doutrinário. Há quem considere o procedimento como uma modalidade de ato complexo de formação sucessiva, ou seja, um conjunto de atos interligados, ordenados em sequência de observância necessária, destinados à consecução de um ato final. Este posicionamento é sufragado por Giovanni Conso348, para quem o procedimento é ato complexo que se estrutura por uma sucessiva cadeia de surgimento e adimplemento de deveres jurídicos. Um ato praticado adimple um dever e dá nascimento a outro, em um jogo de causas e efeitos que conduz ao ato final349. A mesma linha de intelecção é seguida por Calmon de Passos350.

Marcos Bernardes de Mello também enquadra o procedimento como ato complexo. Todo ato complexo, no entendimento do autor, é ato de Direito Público. Se os atos integrantes

347 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São

Paulo: RT, 1999, p. 326.

348 O autor diferencia a fattispecie simples, no qual há a previsão de um único fato jurídico, da complexa, que

abrange um conjunto de fatos jurídicos tidos por necessários para o alcance do ato final almejado. A fattispecie complexa pode contemplar diferentes conformações entre os atos que a compõem. Diz-se que a fattispecie complexa é de formação sucessiva (ou necessariamente sucessiva) quando os atos e fatos dela componentes devem ter lugar segundo uma ordem lógica necessária e previamente fixada. Não existindo a necessidade de se observar essa ordem lógica de fatos, ter-se-á ou a fattispecie complexa de formação concomitante (quando os fatos ocorrem a um só tempo) ou a fattispecie complexa de formação cronologicamente indiferente, também denominada de eventualmente sucessiva (quando os fatos ocorrem em sequência, mas sem necessidade de observância de uma ordem previamente estabelecida) (CONSO, Giovanni. I fatti giuridici processuali penale: perfezione ed efficacia. Milano: Dott. A. Giufreé, 1955, p.115-116). Mais adiante, à p. 121, Conso refere-se aos procedimentos como espécies de fattispecie complexa de formação sucessiva.

349 CONSO, Giovanni. I fatti giuridici processuali penale: perfezione ed efficacia. Milano: Dott. A. Giufreé,

1955, p. 132.

350 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais.

do ato complexo lato sensu forem praticados por órgãos integrantes do mesmo poder do Estado ou da mesma entidade administrativa autônoma, será designado ato complexo stricto

sensu; do contrário, quando os atos formadores do conjunto forem praticados por órgãos de

diferentes poderes ou entidades, ter-se-á hipótese de ato composto351.

Elio Fazzalari qualifica o processo como a espécie de procedimento que sofre o influxo do contraditório. Ou seja, há processo quando os sujeitos destinatários dos efeitos do ato final do procedimento possuem oportunidade de participar da formação desse ato, pelo exercício do contraditório. O autor vislumbra o contraditório como verdadeiro pressuposto de existência do processo352.

Cândido Rangel Dinamarco segue a mesma linha teórica sufragada por Fazzalari, também destacando que o processo é o procedimento animado pelo contraditório, enquanto que o procedimento é por ele compreendido com um conjunto sistemático de atos atrelados por vínculo de dependência sucessiva e pelo escopo de preparar o ato final ao qual é vocacionado (a exemplo da sentença de mérito ou, na execução, da entrega do bem ao exequente)353.

Para Antônio Carlos Marcato, o processo seria a união da substância (relação jurídica processual animada pelo contraditório) com a forma (procedimento). Procedimento seria, assim, um aspecto formal e exterior do processo, composto de uma série de atos concatenados

351 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 154-156. Como exemplos de atos complexos, o autor cita a nomeação de servidor público, que é antecedida de concurso público, realizado, em regra, pela entidade contratante, bem como a contratação de empresa para prestação de serviços, normalmente antecedida de licitação. Os exemplos de atos compostos apresentados pelo autor são a nomeação de desembargador de Tribunal de Justiça em vaga destinada a advogado (que pressupõe indicação de lista sêxtupla pela OAB, formação de lista tríplice pelo Tribunal e escolha e nomeação pelo Governador do Estado) e a nomeação de Ministro do STF (que depende de aprovação de seu nome pelo Senado Federal, sendo a nomeação realizada pelo Presidente da República). Paula Sarno Braga segue a mesma linha de entendimento quanto ao enquadramento do procedimento como ato complexo, divergindo de Marcos Bernardes de Mello, embora, no tocante à qualificação do ato complexo como ato estatal. A autora defende a possibilidade de utilização de procedimentos também na esfera privada (processo como instrumento de exercício de poder negocial, por exemplo) (BRAGA, Paula Sarno. Norma de processo e norma de procedimento: o problema da repartição de competência legislativa no direito constitucional brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 115). Na obra em comento, Paula Sarno apresenta, às p. 106-117, uma confrontação de diversos posicionamentos doutrinários em derredor do conceito de procedimento. Em sentido contrário, diferenciando ato-complexo de ato-procedimento, por entender que, no primeiro caso, há um único efeito derivado do conjunto de atos, enquanto que no ato-procedimento (categoria que abrange processo ou procedimento) cada ato condicionante do final tem seu efeito próprio, preliminar, preparatório do ato final: SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 100-101 e 122-123.

352

FAZZALARI, Elio. Instituzioni di diritto processuale. 8. ed. Padova: CEDAM, 1996, p. 82-84.

353 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p.

preparatórios do provimento final e do próprio ato final354.

Rogério Ives Braghittoni define o processo como o resultado da conjugação do procedimento e da relação jurídica processual, enquanto que o procedimento consistiria na configuração formal e cronológica do processo, seu “exoesqueleto”355

. Na acepção de Adroaldo Furtado Fabrício, o direito legislado brasileiro emprega o termo procedimento como sinônimo de forma de proceder. À significação do vocábulo processo reservar-se-ia o conjunto ordenado de atos destinados à solução do conflito, enquanto que o procedimento identificaria a forma de tais atos e a ordem sob a qual se estruturam, circunstâncias variáveis a depender do direito material a ser tutelado ou por conveniência legislativa356.

Carlos Alberto Alvaro de Oliveira sustenta não poder ser o procedimento entendido apenas como um aspecto formal do processo ou, ainda, tão-somente como uma sequência legal de atos processuais. Deve-se ter em conta o seu papel de regulador da atividade do juiz e das partes, sob o prisma do contraditório e submetendo-se a um critério temporal, sem olvidar, outrossim, a sua função de conectar normas, atos e posições subjetivas em uma série temporal e articulada de forma dependente357.

Paula Sarno Braga adere ao entendimento de que o procedimento é ato complexo de formação sucessiva, podendo ser deflagrado nos âmbitos público e privado. Recusa, em parte, o posicionamento sufragado por Fazzalari, no sentido de ser o processo um procedimento animado pelo contraditório, na medida em que o autor insere o contraditório como pressuposto de existência do processo, enquanto que a autora pondera tratar-se de requisito de validade positivado em sistemas democráticos. Conclui asseverando que processo e procedimento são conceitos indissociáveis358.

Fredie Didier Junior, examinando o processo sob o ponto de vista da teoria do fato jurídico, mais precisamente a partir do plano da existência, enquadra-o, igualmente, como ato jurídico complexo de formação sucessiva, identificando o processo com o procedimento359.

354 MARCATO, Antônio Carlos. Procedimentos especiais. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 71-73. Em sentido

semelhante: YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 166.

355

BRAGHITTONI, Rogério Ives. Devido processo legal e direito ao procedimento adequado. Revista de processo. São Paulo: RT, n. 89, jan.-mar./1998, p. 221.

356 FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Justificação teórica dos procedimentos especiais. Ensaios de direito

processual. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 34-36.

357

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 129- 130.

358 BRAGA, Paula Sarno. Norma de processo e norma de procedimento: o problema da repartição de

competência legislativa no direito constitucional brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 115 e 160-161.

359 DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, v.1, p. 33.

Do cotejo das conceituações doutrinárias acima referidas, pode-se inferir que o procedimento consiste em uma série ou um conjunto de atos ligados por vínculo de dependência, concatenados com o escopo de possibilitar a atuação de uma ou mais vontades, ou seja, o exercício do poder360.

As normas procedimentais não apenas estabelecem o rol de atos integrantes de cada procedimento (em cada um dos diversos tipos disponíveis), mas, também, a ordem segundo a qual tais atos hão de ser praticados e a forma que cada um deles deve observar, em seus requisitos de tempo, espaço e modo361.

O ordenamento jurídico brasileiro consigna um direito fundamental ao procedimento, conclusão que pode ser alcançada a partir da reunião das seguintes premissas: a) a configuração do Estado brasileiro como sendo um Estado Democrático de Direito, que se firma, pois, em dois alicerces: a democracia participativa, isto é, a participação popular no exercício do poder estatal, em todas as suas vertentes (funções) e a submissão das funções estatais ao ordenamento jurídico, o que impõe que o exercício do poder não possa se dar de forma ilimitada e arbitrária; b) a cláusula geral do devido processo legal, que fundamenta a necessidade, sob o ponto de vista formal, de encadeamento lógico da atividade estatal segundo um rito próprio, capaz de garantir aos cidadãos segurança jurídica e previsibilidade do agir do Estado362.

Em visão mais conformada aos valores do Estado Constitucional, Luiz Guilherme Marinoni reconhece às partes envolvidas em uma demanda judicial não apenas o direito à

processo é método de produção de normas jurídicas; b) visto sob a perspectiva da teoria do fato jurídico – plano da existência, o processo é sinônimo de procedimento (ato jurídico complexo); c) considerado ainda sob o viés da teoria do fato jurídico, mas desta feita sob o ponto de vista do plano da eficácia, o processo é efeito jurídico, caracterizando-se como um plexo de relações jurídicas. Ao presente trabalho, interessam, particularmente, as duas últimas acepções da palavra, sendo que a perspectiva do processo como relação jurídica foi tratada no tópico relativo à teoria do fato jurídico processual – plano da eficácia.

360 A vontade será estatal quando o procedimento relacionar-se ao exercício de uma função pública; a(s)

vontade(s) será(ão) privada(s) quando o procedimento concernir às relações entre particulares.

361

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, v. 1, p. 69.

362 Em artigo de sua autoria, Miguel Calmon Dantas defende a existência de um direito fundamental à

processualização, que seria corolário da estrutura do Estado Democrático de Direito e do princípio da dignidade da pessoa humana, ou, mais especificamente, da associação entre a dimensão processual dos direitos fundamentais e o devido processo legal. Reconhecendo embora uma diferença entre processo e procedimento, por entender que o primeiro é uma espécie do segundo ao qual se acresce o contraditório, indica como escopo de seu estudo o de que deva ser convertido em processual qualquer procedimento por intermédio do qual o Poder Público atue, desde que relacionado à pessoa humana e aos direitos fundamentais. Conclui Miguel Calmon que o direito fundamental a ser considerado seria o direito à processualização e não à procedimentalização, muito embora não negue que exista um direito fundamental ao procedimento, uma vez que entende, como dito, o processo como uma espécie de procedimento (DANTAS, Miguel Calmon. Direito fundamental à processualização. In: DIDIER JUNIOR, Fredie; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel (coord.). Salvador: Juspodivm, 2007, p. 368-411).

participação, como, sobretudo, o direito ao procedimento adequado à tutela do direito material363, reforçando, pois, a ideia de direito fundamental ao procedimento como ínsita à tutela de direitos fundamentais.

Sendo assegurado às partes esse direito fundamental ao procedimento adequado, curial que se lhes garanta o direito de celebrar negócios processuais tendentes a ajustar o procedimento abstratamente previsto em lei quando este não se coadunar com as concretas peculiaridades do direito a ser tutelado, solução veiculada precisamente no art. 190 do Código de Processo Civil de 2015, a cláusula geral de negociação processual.

Examinadas as premissas lógico-conceituais que lastreiam a construção da cláusula geral de atipicidade da negociação processual no processo civil brasileiro, impende sejam analisados os fundamentos que igualmente conferem suporte à previsão legal desta cláusula no ordenamento jurídico pátrio, tema que será abordado no tópico seguinte.

2.3 PREMISSAS NORMATIVAS: CONSTITUCIONALIDADE E

FUNDAMENTOS DO ART. 190 DO CPC/2015

Já se afirmou, em tópico antecedente, que a segurança jurídica e o devido processo legal foram apresentados, pela doutrina publicista tradicional, como óbices ao reconhecimento da existência da figura dos negócios jurídicos processuais, uma vez que a segurança jurídica pressuporia um processo regulamentado exclusivamente na norma legislada. A vontade das partes não seria apta a produzir, por si, efeitos processuais, que sempre decorreriam da lei.

Também já se demonstrou que esse pensamento foi sendo paulatinamente mitigado e que a dinamicidade das relações sociais, em contraste com a incapacidade legislativa de acompanhar esse complexo dinamismo, abriu portas à consensualidade e à aceitação da via negocial como fonte normativa. No âmbito processual, essa tendência, aliada às preocupações concernentes à busca da razoável duração do processo, conduziu diversas reformas processuais no sentido de promover uma simplificação procedimental, afastando-se formalidades supérfluas364.

363 MARINONI, Luiz Guilherme. Da teoria da relação jurídica processual ao processo civil do estado

constitucional. Revista Jurídica. Sapucaia do Sul, RS: Notadez, n. 347, set./2006, p. 14.

364 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Notas sobre as recentes reformas do processo civil francês. Revista de

No Brasil, tais inquietações também se fizeram sentir e, ao longo dos anos, inúmeras iniciativas legislativas marcaram o compasso em prol da simplificação do procedimento e da busca da duração razoável do processo. Nesse sentido, inclusive, a reforma constitucional veiculada pela Emenda nº 45/2004 acrescentou ao art. 5º da Constituição Federal de 1988 o inciso LXXVIII, que assegura a todos, nas esferas judicial e administrativa, a duração razoável do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

No âmbito infraconstitucional, registram-se medidas de simplificação procedimental que incluem a criação dos Juizados Especiais Estaduais (Lei nº 9.099/1995) e Federal (Lei nº 10.259/2001), a transformação da liquidação e do cumprimento de sentença em fases processuais pela Lei nº 11.232/2005 (com a inclusão dos arts. 475-A a 475-R no texto do CPC/1973), dentre outras.

O avanço apresentado pelo Código de Processo Civil de 2015 vai muito além das anteriores reformas legislativas que tiveram por escopo garantir uma simplificação procedimental. Ao contemplar a cláusula geral de atipicidade da negociação processual no seu art. 190365, o CPC/2015 permitiu a derrogação consensual de normas legais por vontade das partes, conferindo a esta vontade caráter normativo. Trata-se de “norma atributiva de competência”, “norma de competência” ou “norma de habilitação das partes”, de modo que a norma legal passa a ter função subsidiária, sendo aplicada à míngua de convenção das partes ou se tiver sido reconhecida judicialmente a sua invalidade366.

Essa mudança de perspectiva conduz, naturalmente, a questionamentos acerca da constitucionalidade do dispositivo introduzido pela nova legislação processual367. A norma atributiva de competência às partes para produção de regras processuais derrogativas do direito legislado seria, afinal, consentânea com a segurança jurídica e com o devido processo legal? Que fundamentos constitucionais dariam lastro à sua implementação no direito brasileiro? O enfrentamento de tais questões é imperioso, revelando-se como matéria prejudicial à própria construção de sentido da cláusula em apreço.

365

“Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”.

366 CABRAL, Antônio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 146-147. 367

Rodolfo Kronemberg Hartmann reputa inconstitucional o dispositivo inserto no art. 190 do CPC/2015, sob o fundamento de que o procedimento seria matéria de reserva legal (HARTMANN, Rodolfo Kronemberg. Curso completo de processo civil. Niterói, RJ: Impetus, 2015, p. 809).

2.3.1 A constitucionalidade da cláusula geral de atipicidade da negociação processual

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 175-181)

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