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Juizados Especiais Federais e Juizados Especiais da Fazenda Pública

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 60-84)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

1.4 MANIFESTAÇÕES DA CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

1.4.4 Juizados Especiais Federais e Juizados Especiais da Fazenda Pública

A instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, regidos pela Lei nº 9.099/1995, em substituição aos Juizados de Pequenas Causas, conferiu concretude ao art. 98, I, da CF/1988, atendendo à reivindicação social por maiores celeridade e eficácia processuais. O procedimento então criado pautou-se pela simplificação, redução dos custos processuais impingidos à parte (ausência de pagamento de custas em primeira instância, desnecessidade de assistência por advogado até o limite de alçada de vinte salários mínimos) e, sobretudo, valorização da busca do consenso99.

Com o advento da Lei nº 10.259/2001 (que regulamentou o atual art. 98, §1º, da CF/1988), foram criados os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal (Juizados Especiais Federais). O diploma legislativo em referência também conferiu relevo à utilização de instrumentos consensuais pelos entes públicos100, facultando aos representantes judiciais da União, autarquias, fundações e empresas públicas federais conciliar, transigir ou desistir nos processos de competência dos Juizados Especiais Federais (art. 10, parágrafo único, da Lei nº 10.259/2001).

RT, 2000, p. 701.

98

GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 4. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 44.

99

PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 192-193.

100 ALVIM, J. E. Carreira. Juizados Especiais Federais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 33; SOUZA, Marcia

Cristina Xavier de. Juizados Especiais Fazendários. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 02; FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009. 2. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 34. Joel Figueira Junior afirma que a autocomposição é o eixo central, nuclear dos Juizados Especiais.

A despeito de tal circunstância e do espaço de consensualidade aberto pela Lei nº 10.259/2001, os anos que se seguiram à entrada em vigor dessa Lei não registraram quantidade expressiva de acordos celebrados com os entes públicos federais. Tal circunstância ultimou por compelir parcela dos juízes federais a promover adaptação do rito dos Juizados Especiais Federais, suprimindo a audiência de conciliação e, em alguns casos, também a de instrução e julgamento, em busca de conferir maior agilidade aos feitos101-102. A autorização normativa conferida pelo ordenamento jurídico não se fez acompanhar da necessária mudança cultural viabilizadora de sua efetivação, frustrando o intento legal de ampliação do campo de consensualidade administrativa.

De se registrar que, à época da entrada em vigor da Lei nº 10.259/2001, vigia, no âmbito da Administração Pública Federal, a Lei nº 9.469/1997, cujo art. 1º conferia ao Advogado Geral da União e aos dirigentes máximos das autarquias, fundações e empresas públicas federais autorização para a realização de acordos judiciais nas causas cujo valor não extrapolasse R$50.000,00 (cinquenta mil reais), dentre outras condutas dispositivas de direitos103.

Existia, assim, de um lado, uma autorização genérica de celebração de acordo pela União e pelas autarquias, fundações e empresas públicas federais, apenas por intermédio de seus dirigentes máximos, para causas de valor até cinquenta mil reais (montante que extrapolava, quando da edição da Lei dos Juizados Especiais Federais, o limite de sessenta salários mínimos). E outra, também genérica – e especial –, destinada a todos os representantes judiciais da União e das autarquias, fundações e empresas públicas federais, para demandas em curso nos Juizados Especiais Federais.

101 A constatação fática acima apontada (verificável, por exemplo, no âmbito dos Juizados Especiais Federais da

Seção Judiciária do Estado da Bahia) é relatada (embora sem referência à Seção Judiciária antes referida) por CHIMENTI, Ricardo Cunha. Teoria e prática dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais e Federais. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 23-24. O autor faz menção a Enunciados de Turmas Recursais do Distrito Federal e do Rio de Janeiro que registram a viabilidade de dispensa da audiência de conciliação sem que tal circunstância enseje, por si só, a decretação de invalidade do processo.

102

Reputando tal prática incompatível com o sistema dos Juizados, que objetiva, primordialmente, a autocomposição: CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública: uma abordagem crítica. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 232.

103

Antes do surgimento da Lei nº 10.259/2001, a conciliação envolvendo a Fazenda Pública era, na prática e a despeito da existência da Lei nº 9.469/1997, obstada, sobretudo, por dois fatores. O primeiro consistia na necessidade de que cada caso concreto submetido a Juízo contasse com autorização legal específica para a conciliação. O segundo residia no receio de que as conciliações realizadas fossem posteriormente questionadas em auditorias administrativas, com a possibilidade de responsabilização dos servidores que as realizaram (ALVES, Francisco Glauber Pessoa. A conciliação e a Fazenda Pública no direito brasileiro. Revista de processo, São Paulo, ano 35, n. 187, set./2010, p. 90-91).

Objetivando regulamentar a atuação da Advocacia Pública Federal nos Juizados Especiais Federais, inclusive quanto ao exercício das atribuições decorrentes do art. 10, parágrafo único, da Lei nº 10.259/2001, a Advocacia-Geral da União expediu a Portaria nº 109 de 30.01.2007. Nela, foram explicitadas as hipóteses em que os Advogados da União e os Procuradores da Fazenda Nacional estariam previamente autorizados a transigir e a praticar outros atos de disposição (não interposição de recurso, desistência de recursos interpostos, concordância com a desistência do pedido).

No ano seguinte, em 2008, a Medida Provisória nº 449 alterou a redação do art. 1º da Lei nº 9.469/1997, prevendo a possibilidade de delegação, pelo Advogado-Geral da União, do poder de celebrar acordos judiciais que encerrassem litígios. Tal Medida Provisória foi convertida na Lei nº 11.941/2009, que modificou novamente a redação do dispositivo, desta feita para ampliar o limite pecuniário para realização de acordo, passando a prever o valor de R$500.000,00 (quinhentos mil reais)104. Por fim, a Lei nº 13.140/2015 novamente alterou a redação do dispositivo, excluindo referência expressa a qualquer limite pecuniário.

Após a edição da Lei nº 10.259/2001, houve a configuração de uma situação de injustificada desigualdade de tratamento entre os jurisdicionados. Aqueles que dirigissem pretensão em juízo contra entes públicos federais disporiam, nas causas cujo valor não ultrapassasse sessenta salários mínimos (excetuadas as hipóteses do art. 3º, §1º, da referida Lei), de procedimento mais célere, simplificado e efetivo (além de menos custoso). No entanto, se pretensão similar fosse dirigida em face de entes públicos estaduais, distritais e municipais, haveria o jurisdicionado de fazer uso do procedimento comum, menos célere e mais custoso. A superação dessa diversidade de tratamento principiou-se com a edição da Lei nº 12.153/2009105.

De se notar que o intuito de fomentar a consensualidade no âmbito da Administração Pública também é explicitado pela Lei nº 12.153/2009, cujo art. 8º reconhece aos representantes judiciais dos entes públicos réus a possibilidade de, nos termos e hipóteses previstas na lei do respectivo ente da Federação, conciliar, transigir ou desistir nos processos de competência dos Juizados Fazendários.

A inserção dos entes públicos no contexto dos Juizados Especiais reforça a constatação de busca de adoção, por eles, de soluções consensuais, despindo-se de suas prerrogativas

104 A Portaria AGU nº 990, de 16 de julho de 2009, cuidou da delegação de competência prevista no art. 1º da

Lei nº 9.469/1997.

105 SOUZA, Marcia Cristina Xavier de. Juizados Especiais Fazendários. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 03-

processuais em prol da eficiência na solução dos conflitos e de soluções negociais aos litígios judiciais.

Caberá a cada ente público, na sua esfera de competência, indicar o(s) representante(s) com atribuição para praticar os atos dispositivos aludidos no art. 8º da Lei nº 12.153/2009, eventual possibilidade de delegação dessa atribuição, as hipóteses em que a solução consensual estará previamente autorizada e eventual procedimento administrativo prévio que se repute necessário para avaliação/autorização da realização do acordo106.

1.4.5 Acordo de leniência

O ferramental decorrente do movimento de consensualização da Administração Pública é essencial ao entendimento do instituto do acordo de leniência.

Sob a percepção do Direito Administrativo sancionador tradicional, seria difícil compreender a atividade administrativa que se despe de sua posição de verticalidade e unilateralidade para adotar uma postura horizontal, cooperativa diante do administrado. Tanto mais quando se trate de um infrator confesso e dessa conduta puder decorrer a abdicação, no todo ou em parte, da atividade punitiva do Estado em relação ao beneficiário da leniência estatal107.

Esse movimento de abertura do processo administrativo à consensualidade, verificado, com relação ao acordo de leniência, nos últimos 16 (dezesseis) anos, reflete a influência de fenômenos similares já ocorridos na seara processual (civil e penal) do país e em experiências administrativas hauridas de outros países108.

Infrações praticadas no âmbito do Direito concorrencial e licitatório, bem como aquelas que implicam corrupção de agentes públicos, nacionais e estrangeiros, afiguram-se como condutas complexas e cuja obtenção de prova é extremamente difícil para a Administração

106

GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Comentário ao art. 8º. In: GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; CERQUEIRA, Luís Otávio Sequeira de. Comentários à Lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública: Lei 12.153/2009. 2. ed. São Paulo: RT,2011, p. 125.

107

MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. Revista digital de direito administrativo, v. 2, n. 2, 2015, p. 510-511. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/99195/98582>. Acesso em 26/03/2016.

108

MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. Revista digital de direito administrativo, v. 2, n. 2, 2015, p. 525. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/99195/98582>. Acesso em 26/03/2016.

Pública. Por outro lado, tais infrações ensejam desvios por vezes bilionários de recursos financeiros e ocasionam graves prejuízos à coletividade. Ao lado de tais circunstâncias, pode ser acrescido, ainda, o custo processual para investigar e – quando possível – punir os infratores, custo este associado a uma chance ínfima de êxito do procedimento investigatório109.

A conjugação da complexidade do ilícito, do volume do prejuízo por ele ocasionado e da dificuldade de sua punição compeliu o Estado a pensar em novas alternativas para exercício de sua atividade sancionatória. A via negocial revelou-se como a mais eficiente ao alcance das finalidades pretendidas: conter a atividade ilícita, buscar o ressarcimento aos danos ocasionados pela prática infracional e punir os infratores. Ainda que, para tanto, houvesse o Estado de abrir mão, total ou parcialmente, de sua atividade sancionatória em relação a um – ou alguns – dos envolvidos na prática contrária ao ordenamento jurídico110.

O acordo de leniência é um negócio jurídico integrativo, vinculando-se a processo administrativo (atual ou futuro, conforme se trate de leniência concomitante ou prévia, respectivamente) e destinando-se a facilitar a sua atividade instrutória. Essa atividade estatal consensual convive com a atividade imperativa, ou seja, não afasta a prática, ao final do processo, de atos de natureza punitiva, se provada a infração. Há o estabelecimento negocial de obrigações recíprocas: para o colaborador, a principal é o dever de cooperar com a instrução processual; para o Estado, o dever de reduzir as sanções a serem aplicadas ao signatário do acordo111.

1.4.5.1 Acordo de leniência e defesa da concorrência

O incremento da produção seriada e em larga escala e o surgimento do mercado nacional (em substituição ao local, próprio do período anterior à Revolução Industrial),

109 MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime

jurídico e problemas emergentes. Revista digital de direito administrativo, v. 2, n. 2, 2015, p. 511. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/99195/98582>. Acesso em 26/03/2016.

110

MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. Revista digital de direito administrativo, v. 2, n. 2, 2015, p. 511. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/99195/98582>. Acesso em 26/03/2016.

111

MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. Revista digital de direito administrativo, v. 2, n. 2, 2015, p. 513-514. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/99195/98582>. Acesso em 26/03/2016.

conduziram a um movimento de concentração empresarial, surgido, em fins do século XIX, nos Estados Unidos da América112.

A tentativa de conter os efeitos danosos desse fenômeno aglutinador de empresas (especialmente a cartelização do mercado) deu ensejo à criação, nesse período, de regras de defesa da livre concorrência, advindas de precedentes norte-americanos. A expansão das empresas norte-americanas para mercados de outros países determinou o surgimento, em meados do século XX, de leis de defesa da livre concorrência na Alemanha, espraiando-se por outros países europeus e alcançando, na década de 80 do século XX, Portugal e Itália113.

No Brasil, a notícia histórico-legislativa de edição de normativo em defesa da livre concorrência remete ao Decreto-Lei nº 869/1938, no qual são definidos os crimes contra a economia popular, sua guarda e seu emprego. Os delitos nele previstos eram apenados com privação de liberdade e multa, havendo a possibilidade, ainda, de paralisação das atividades (“interdição”, no termo utilizado pelo referido Decreto-Lei 869/1938) de pessoa jurídica, quando praticados os crimes em nome dessa.

Posteriormente e fora do âmbito criminal, a Lei nº 4.137/1962 objetivou regular e reprimir o abuso ao poder econômico, criando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e atribuindo-lhe competência para instaurar processo administrativo destinado à apuração de conduta passível de se configurar como abusiva do poder econômico. Sendo reconhecida a prática do ato abusivo, referida legislação previa a imposição de sanção administrativa (multa), devendo o responsável por sua prática cessá-la, sob pena de intervenção na empresa.

A Lei nº 8.884/1994 (Lei Antitruste), além de transformar o CADE em autarquia federal, disciplinava, material e procedimentalmente, a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, prevendo, inclusive, novas punições ao infrator (publicação de extrato da decisão condenatória em jornal, às suas expensas, proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e de participar de determinadas licitações, inscrição em Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor, dentre outras).

No entanto, foi somente com o advento da Medida Provisória nº 2.055/2000 que à Lei nº 8.884/1994 acresceu-se o art. 35-B, prevendo a possibilidade de celebração, pela União,

112 FIORATI, Jete Jane. A defesa da concorrência no Brasil e o projeto de lei que cria a ANCC: aspectos

polêmicos. Revista de informação legislativa, ano 38, n. 151, jul.-set./2001, p. 68.

113 FIORATI, Jete Jane. A defesa da concorrência no Brasil e o projeto de lei que cria a ANCC: aspectos

com a pessoa física ou jurídica infratora, de acordo de leniência, promovendo-se a abertura à consensualidade no âmbito da atuação administrativa em defesa da ordem econômica114.

O abrandamento da postura verticalizada da Administração Pública e a adoção de postura consensual é evidente na disciplina apresentada pela MP nº 2.055/2000. Busca-se uma maior eficiência na atividade investigativa e na prevenção/repressão das condutas infracionais, substituindo-se a atividade sancionatória pela concertação. A Administração Pública abdica, no todo ou em parte, da imposição da penalidade cabível em troca de informações e provas capazes de auxiliar na identificação de outros coautores da infração, na comprovação da infração noticiada ou sob investigação.

Trata-se de negócio jurídico previsto em lei e cujo objeto diz respeito, diretamente, a bens jurídicos titularizados pela coletividade (liberdade de iniciativa e de concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e vedação ao abuso do poder econômico), nos termos do art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.884/1994.

O texto normativo sob análise ainda contemplava inúmeros entraves à celebração do acordo de leniência (este somente seria celebrado com a primeira empresa ou pessoa natural a se qualificar com respeito à infração noticiada ou sob investigação – sistema first come, first

serve –, desde que houvesse a confissão da sua participação no ilícito e a Administração

Pública não dispusesse ainda de provas suficientes à sua condenação).

A quarta reedição da Medida Provisória nº 2.055/2000 foi convertida na Lei nº 10.149/2000, que inseriu na Lei nº 8.884/1994, além do art. 35-B, o art. 35-C. Referido dispositivo previu a suspensão do curso do prazo prescricional dos crimes contra a ordem econômica (Lei nº 8.137/1990) em decorrência da celebração do acordo de leniência e a extinção da punibilidade desses delitos, uma vez cumprido o acordo. Trata-se de reconhecimento, pela legislação brasileira, da importância da busca de soluções consensuais capazes de tornar mais eficiente – e efetivo – o combate a atos de prevenção e repressão às infrações à ordem econômica.

Mais recentemente, a Lei nº 12.529/2011, estruturadora do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, revogou a quase totalidade da Lei nº 8.884/1994, inclusive os arts. 35-B e 35-C supracitados. Em seu lugar, instituiu, nos seus arts. 86 e 87, um programa de leniência,

114 Trata-se da utilização da lógica “da cenoura e do porrete” (stick-and-carrot-approach). A quem colabora com

o Poder Público no escopo de por fim à atividade infracional, garante-se a cenoura (tratamento mais brando), em lugar do porrete (tratamento mais severo) que lhe estaria reservado caso não colaborasse e fosse comprovada, ao final, a conduta infracional (MARTINEZ, Ana Paula. Acordo de leniência e a lógica da cenoura e do porrete. Valor econômico, São Paulo, p. A-14, 03 out. 2013).

cujo regime geral sofreu alguns aperfeiçoamentos em relação ao regramento anterior, denotando, por um lado, o estímulo à celebração do acordo e, por outro, a preocupação com seu efetivo cumprimento115-116.

A explicitação legal de que o acordo de leniência é apenas uma etapa de um programa de leniência (que abarca desde as tratativas – apresentação da proposta de acordo e suas consequências –, passando pelo regramento da celebração do acordo e pelo seu cumprimento e sanções pelo descumprimento) corrobora a tendência de se transmudar a visão estática de se observar a atuação administrativa pelo seu resultado (o ato) para a visão dinâmica de compreendê-la como processo, âmbito no qual há de se permitir a máxima participação possível do administrado, tanto mais em se tratando de atuação consensual117.

1.4.5.2 Acordo de leniência e combate à corrupção

Em 17 de dezembro de 1997, em Paris, foi concluída a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais,vigente no país a partir de 23/10/2000. Referida Convenção é reflexo de uma preocupação mundial com o tema, manifestada, sobretudo, a partir da década de 90 do século XX.

De se registrar que, desde o ano de 1977, há norma específica nos Estados Unidos da América (US Foreign Corrupt Practices Act - FCPA), tida como precursora dessa legislação internacional118. O citado diploma normativo torna ilegal, por exemplo, o pagamento feito por

115 A Lei nº 12.529/2011 não mais exige da pessoa natural que ela seja a primeira a se qualificar com respeito à

infração noticiada ou sob investigação para que esteja habilitada a celebrar o acordo de leniência; além disso, ampliou o rol de infrações penais cuja extinção de punibilidade é alcançada com o cumprimento do acordo de leniência, medidas que estimulam a celebração do referido acordo. Por outro lado, inseriu regra obstativa da celebração, por três anos, de novo acordo de leniência por quem tenha descumprido um acordo precedente, a contar da data do julgamento (arts. 86, §§2º e 12 e 87).

116

Segundo dados apresentados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, entre os anos de 2003 e 2015 foram celebrados 50 acordos de leniência embasados na legislação antitruste, assim como 14 aditivos a acordos já celebrados, a demonstrar que o instituto tem sido efetivamente utilizado (Fonte: http://www.cade.gov.br/Default.aspx?ab8b8d939978b892a6a7bc. Acesso em: 24/03/2016).

117

Juliana Bonacorsi de Palma registra que o enfoque conferido ao ato no Direito Administrativo denota uma visão autoritária do referido Direito, eis que confere relevo, apenas, ao momento de incidência da decisão administrativa na esfera do administrado, desprezando a participação deste na formulação da decisão administrativa (PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 73-74).

118 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. O acordo de leniência na lei anticorrupção. Revista dos Tribunais, ano

103, v. 947, set./2014, p. 166. O histórico de surgimento desse diploma normativo norte-americano e da posterior política internacional adotada pelos Estados Unidos da América para que outros países previssem em seus ordenamentos internos mecanismos de combate ao suborno transnacional, evitando-se um desequilíbrio no mercado internacional pode ser encontrado em BIJOS, Leila; NÓBREGA, Antonio Carlos Vasconcellos.

determinadas categorias de pessoas ou entidades a funcionários de governos estrangeiros com a finalidade de celebrar ou manter negócios119.

No Brasil, além do Decreto nº 3.678/2000, que promulgou a referida Convenção de Combate da Corrupção e buscando conferir efetividade a esta, o Código Penal foi alterado pela Lei nº 10.467/2002, nele sendo inserido capítulo específico para disciplinar os crimes praticados por particular contra a Administração Pública estrangeira (arts. 337-B a 337-D do CP). A mesma Lei nº 10.467/2002 também alterou a Lei nº 9.613/1998 (Lei dos Crimes de Lavagem de Capitais). Ditas modificações no sistema jurídico-penal não se revelaram, no entanto, instrumento hábil à apenação de pessoas jurídicas praticantes de atos de corrupção, uma vez que tais regras apenas se dirigiam a pessoas naturais.

Sob a influência de normas internacionais, a exemplo do supramencionado regramento norte-americano, assim como da Lei Antitruste brasileira (Lei nº 8.884/1994) e da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011), foi editada a Lei nº 12.846/2013. Referido texto normativo, apelidado de Lei Anticorrupção ou Lei da Empresa Limpa, disciplina a

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