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Conceitos extraíveis da teoria do fato jurídico: plano da existência

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 115-121)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

2 PREMISSAS PARA A COMPREENSÃO DA CLÁUSULA GERAL DE NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO

2.2 PREMISSAS LÓGICO-CONCEITUAIS

2.2.1 Conceitos extraíveis da teoria do fato jurídico: plano da existência

Naturalmente, as noções de fato jurídico, ato jurídico e negócio jurídico devem ser hauridas da Teoria Geral do Direito, servindo elas de base para a estruturação da teoria dos fatos jurídicos processuais e para a conceituação de suas respectivas categorias.

Marcos Bernardes de Mello registra que a concepção tradicional de fato jurídico contempla definições funcionais, que tomam por base o escopo do fato jurídico – a produção de efeitos jurídicos. Não sendo, porém, a eficácia um elemento essencial do ato – mas sim acidental –, não se revela conveniente a utilização de definições desse jaez, tanto mais porque, ao se definir a causa pela consequência, cria-se uma tautologia, já que a definição da consequência pressupõe a causa85.

Assim como o faz Marcos Bernardes de Mello86, este trabalho também adota como referencial teórico para a estruturação da teoria do fato jurídico o posicionamento de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Para este autor, o fato jurídico é o fato da vida (ou o complexo desses fatos) que sofreu a incidência de uma norma jurídica, podendo dele decorrer

84

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 1, p. 76-77.

85 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 105-107.

86 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

ou não efeitos jurídicos87.

A incidência da norma jurídica sobre o suporte fático faz nascer o fato jurídico lato

sensu, com seu ingresso no mundo jurídico, o qual pode se dar sob a forma de: a) fato jurídico stricto sensu; b) ato-fato jurídico; c) ato jurídico stricto sensu; d) negócio jurídico ou; e) ato

ilícito.

2.2.1.1 Fato jurídico em sentido estrito

O fato jurídico stricto sensu é aquele fato conforme ao direito (lícito) cujo suporte fático não contempla qualquer ato humano como elemento essencial. É possível que o ato humano contribua, de modo acidental, para a concreção do suporte fático, mas esse fator é abstraído pelo direito88. Integram a categoria dos fatos jurídicos stricto sensu o nascimento (ainda que se trate de gravidez decorrente, por exemplo, de inseminação artificial), a morte (ainda que provocada intencionalmente por alguém), o transcurso do tempo, o abandono do álveo pelo rio, a produção de frutos, dentre outros.

As normas jurídicas, quando contemplam fatos da natureza em seu suporte fático, fazem-no com o objetivo de lhes atribuir consequências para os seres humanos que a eles se vinculem ou que sejam por eles afetados. Esse é o sentido jurídico possível de ser atribuído aos fatos naturais, que não podem, obviamente, ser regrados sob a lógica do dever-ser, estando sujeitos à lógica do ser89.

2.2.1.2 Ato-fato jurídico

O ato-fato jurídico é, necessariamente, um ato humano. Entretanto, o direito o reconhece como avolitivo, ou seja, despreza-lhe a vontade em sua prática, exista ela ou não.

87 “Fato jurídico é, pois, o fato ou complexo de fatos sôbre o qual incidiu a regra jurídica; portanto, o fato de que

dimana, agora, ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não dimane, eficácia jurídica. Não importa se é singular, ou complexo, desde que, conceptualmente, tenha unidade”. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 1, p. 77.

88 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t.

2, p. 187; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 127.

89 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

Cuida-se de ato humano tratado, pelo ordenamento jurídico, como se fato jurídico fora (e não como ato jurídico)90. A situação fática decorrente da conduta praticada não é passível de desconsideração, integrando o mundo como uma mudança de caráter permanente. Citem-se como exemplos a caça, a pesca e o achado de tesouro91.

Os atos-fatos jurídicos são classificáveis em atos reais (ou materiais), atos-fatos jurídicos indenizativos e atos-fatos jurídicos caducificantes92. Os atos reais são aqueles que dão ensejo a circunstâncias fáticas, sendo a sua materialidade a característica primordialmente enfatizada pelo ordenamento jurídico93. Como em qualquer categoria de ato-fato jurídico, a vontade de produzir o ato e seu resultado é irrelevante para o direito.

Assim, por exemplo, a produção de obra artística (quadro) por um pintor famoso que o deseje produzir é recepcionada pelo direito do mesmo modo que a produção de obra similar por uma pessoa portadora de deficiência mental que sequer tenha consciência de o estar produzindo. É o resultado material (o quadro produzido) o que importa para o mundo jurídico, gerando por efeito a aquisição de sua propriedade por quem o confeccionou. Também são atos reais a caça, a pesca, a invenção, dentre outros.

Os atos-fatos jurídicos indenizativos são atos lícitos praticados pelo homem ou a ele imputáveis e dos quais decorre um prejuízo a terceiro, impondo o ordenamento jurídico ao produtor do ato, haja ou não vontade em praticá-lo, o dever de indenizar o dano causado. Como exemplos há o desforço incontinenti praticado dentro dos limites permitidos em lei (ou seja, não contrário ao direito) e a caça e a pesca lícitas, em todos os casos desde que provoquem dano a terceiros94. Pontes de Miranda os intitula de indenização sem culpa95.

90

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 1, p. 82-83. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 130.

91 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 130.

92

Marcos Bernardes de Mello reconhece a existência de outros atos-fatos que não se enquadram nessa classificação, citando como exemplos a usucapião e o pagamento (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 135). Pontes de Miranda também aponta a grande variedade desses atos, a inviabilizar a descoberta de todas as suas regras gerais (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 1, p. 83). De todo modo, a classificação em apreço, abrangente de número considerável de atos-fatos jurídicos, mantém, por essa razão, a sua utilidade.

93

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 2, p. 372-373; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 130-133.

94 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 131.

95 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t.

Os atos-fatos caducificantes96 são atos não contrários ao direito aos quais se atribui como consequência a extinção de um direito e/ou de uma pretensão, ação ou exceção. O suporte fático de tais atos-fatos compõe-se, normalmente, do decurso do tempo associado à inação do titular do direito e deles são exemplos a decadência e a prescrição. Desconsidera-se a existência ou não de culpa pela inação em tais casos97.

2.2.1.3 Atos jurídicos lato sensu: ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico

O gênero ato jurídico lícito lato sensu subdivide-se em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico. Por ato jurídico lato sensu (ou, simplesmente, ato jurídico) entende-se aquele que tem como elemento nuclear a vontade do agente. Será ato jurídico stricto sensu (ou ato não negocial) se essa vontade dirige-se à prática do ato, mas não à escolha da categoria jurídica ou de seus efeitos, que serão, necessariamente, aqueles previamente estatuídos em lei e impassíveis de modificação pelos interessados98. Como exemplos, podem ser citados a constituição de domicílio e o reconhecimento de filiação não decorrente de casamento99.

Se, ao revés, a vontade externada, além de se configurar como elemento nuclear do suporte fático do ato, está capacitada pelo ordenamento jurídico para escolher a categoria jurídica pretendida e, além disso, para dispor acerca do conteúdo eficacial do ato praticado, dentro de limites estabelecidos pelo sistema, a espécie tratada concerne ao negócio jurídico (ato negocial)100. O contrato é o exemplo por excelência de negócio jurídico.

Os negócios jurídicos podem ser classificados segundo diversos critérios, cabendo trazer à baila os dois mais importantes ao desenvolvimento do tema objeto deste trabalho.

Em primeiro lugar, tomando-se por parâmetro o número de posições emanadoras de

96 Denominados, por Pontes de Miranda, como caducidades sem culpa (MIRANDA, Francisco Cavalcanti

Pontes de. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 2, p. 392).

97 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 134-135. Registre-se que o decurso do tempo não é componente presente em todas as modalidades de atos- fatos caducificantes, A admissão, apontada por Fredie Didier Junior como exemplo de ato-fato processual caducificante, prescinde desse elemento temporal (art. 374, III, do CPC/2015) (DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, v.1, p. 379-380).

98

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 148.

99 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 157.

100 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

vontade para a formação do negócio, pode-se falar em negócios jurídicos unilaterais, bilaterais e plurilaterais. Nos primeiros, há apenas um polo do qual se extrai a manifestação de vontade (ainda que esse polo seja formado por mais de uma pessoa, como no caso de instituição de uma fundação por duas pessoas)101.

Nos negócios bilaterais, dois polos distintos concorrem para a sua formação, sendo as vontades externadas distintas e concordantes sobre um determinado objeto (como é o caso do contrato de compra e venda e dos contratos em sua grande maioria). Os negócios plurilaterais reúnem vontades distintas oriundas de mais de dois polos e convergentes para a mesma finalidade, de que é exemplo o contrato de sociedade, mesmo que celebrado por apenas dois sócios, ante a potencial possibilidade infinita de ingresso de novos sócios102.

Os negócios bilaterais e plurilaterais subdividem-se em contratos e acordos (ou convenções); no primeiro caso, os interesses que compõem as manifestações de vontade formadoras do ato são opostos ou divergentes; no segundo, paralelos e convergentes para um fim comum. Os acordos de acionistas, por exemplo, não são contratos103.

Em segundo lugar, diferenciam-se os negócios jurídicos típicos (ou nominados) dos atípicos (ou inominados), conforme estejam ou não, respectivamente, previstos e regulamentados em tipo legal expresso104.

2.2.1.4 Ato ilícito

Os atos ilícitos105 são os contrários ao direito, para os quais não há norma jurídica que lhes pré-exclua a ilicitude (como ocorre, por exemplo, com a legítima defesa, ainda que

101 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 193-198.

102 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 198-201.

103 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 199.

104 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 212.

105 Este trabalho coaduna-se com o posicionamento doutrinário segundo o qual não são possíveis os fatos

jurídicos stricto sensu ilícitos, já que a característica da ilicitude seria ínsita ao agir humano, não sendo possível sua atribuição a fatos da natureza. Nesse sentido: BRAGA, Paula Sarno. Primeiras reflexões sobre uma teoria do fato jurídico processual: plano de existência. Revista de processo, São Paulo, n. 148, jun./2007, p. 306-307. Admitindo a categoria dos fatos jurídicos stricto sensu ilícitos, sob o argumento de que o fato seria vinculado a alguém por lei, daí decorrendo a atribuição legal de efeitos a serem suportados pela pessoa vinculada ao fato: MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 235-236. O autor faz referência, ainda, ao ato-fato ilícito, que seria a contrariedade ao direito derivada de um ato-fato, citando como exemplo o mau uso da propriedade causando dano a terceiro (idem, p. 236-237).

causadora de dano a terceiro), praticados por agente imputável, ou seja, dotado de capacidade delitual (capacidade para praticar o ilícito)106.

A classificação dos atos ilícitos de maior relevância para o presente trabalho é a que toma por base a eficácia decorrente do ato. Fala-se, nesse sentido, em: a) atos ilícitos indenizativos ou indenizantes, dos quais decorre dever de reparação, in natura ou in pecunia, recompondo-se a esfera jurídica do ofendido. A espécie vem disciplinada no art. 927 do CC; b) atos ilícitos caducificantes, cujo efeito é a perda de um direito (a exemplo do que ocorre com a perda do poder familiar nos termos do art. 1.638 do CC e com a sanção de sonegados); c) atos ilícitos autorizantes, cuja prática confere ao ofendido uma autorização para praticar determinado ato, normalmente em desfavor do ofensor. A ingratidão do donatário é ilícito de que decorre a possibilidade, para o doador, de revogar a doação realizada (art. 557 do CC). Da mesma forma, a turbação e o esbulho são ilícitos dos quais decorre a faculdade, outorgada por lei ao possuidor, de manter-se ou reintegrar-se na posse, respectivamente, valendo-se do desforço incontinenti, modalidade de autodefesa (art. 1.210, §1º, do CC); d) atos ilícitos invalidantes, que dão ensejo à invalidade do ato107, a exemplo do que se sucede com a venda de bem gravado com cláusula de inalienabilidade108.

Os esclarecimentos conceituais hauridos da Teoria Geral do Direito acerca da teoria do fato jurídico – explicitados neste subtópico – conferem o embasamento necessário à formulação, pela doutrina, da teoria do fato jurídico processual. A temática, desenvolvida timidamente sob o pálio da influência publicística, ganha destaque com o advento de um novo diploma processual civil calcado na valorização da autonomia da vontade das partes; em especial, torna-se imperioso o desenvolvimento da figura do negócio jurídico processual, das mais desprezadas e rejeitadas pela doutrina processual clássica.

106 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 219-221.

107 Há divergência doutrinária quanto à inclusão dos atos portadores de defeito passível de decretação de

invalidade no rol dos atos ilícitos. Referindo-se a essa divergência sem, no entanto, deixar de fazer a inclusão dessa categoria de atos no campo da ilicitude: MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 246-248; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 132. Em verdade, o vício que dá causa à imposição da sanção de invalidade é que configura a ilicitude. Assim, por exemplo, um contrato que contemple objeto contrário ao direito é um ato ilícito; ao reconhecer esse defeito e lhe imputar sanção consistente em sua destruição enquanto ato, o magistrado decreta a sua invalidade, daí decorrendo o ato inválido. É possível, ainda, que a ilicitude seja exterior (e anterior) ao ato a ser invalidado. Se um dado contrato que veicule objeto lícito é celebrado mediante coação, esta configura a ilicitude que maculará o ato final, tornando-o defeituoso e, assim, passível de aplicação, a si, de sanção de invalidade. Tratam-se de figuras distintas, embora interligadas (defeito – ato ilícito – e aplicação da sanção – ato inválido). Todo ato inválido decorre da constatação de um defeito, embora nem todo ato defeituoso dê azo à decretação de sua invalidade. Nesse sentido: DIDIER JUNIOR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 74.

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