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Os atos jurídicos processuais lato sensu e o plano da validade

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 159-163)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

2 PREMISSAS PARA A COMPREENSÃO DA CLÁUSULA GERAL DE NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO

2.2 PREMISSAS LÓGICO-CONCEITUAIS

2.2.5 Os atos jurídicos processuais lato sensu e o plano da validade

Para o exame da invalidade processual, reputa-se conveniente regressar à ideia de tipo já referida no subtópico antecedente. Uma vez que o tipo pode cumprir, dentre outras, a função de conferir segurança, resguardando o princípio da legalidade (função esta exercida, sobretudo, na seara do Direito Público), a atipicidade, sob esse viés, há de ser vista como algo negativo, ilícito passível de sanção (que poderá ser a de invalidade).

Tendo em mira a tipicidade sob a perspectiva do processo, Flávio Luiz Yarshell examina a temática sob as óticas da forma e do conteúdo dos atos processuais. Salienta que a forma dos atos processuais submete-se a uma regra de tipicidade segundo a qual a liberdade formal vigoraria apenas quando não regulada a forma expressamente pela lei processual (processo é visto, nessa ordem de ideias, como um “penhor de legalidade”). Por outro lado, complementa, não se pode perder de vista que a forma é meio para o atingimento de um determinado objetivo, não sendo dotada de valor intrínseco absoluto (regra da instrumentalidade das formas)276.

Conjugando as duas regras, tem-se por irrelevante a atipicidade quando, a despeito de não observado o modelo legal, o ato praticado atingiu o resultado almejado pelo sistema277. Significa afirmar que nem toda atipicidade do ato processual – vista em sua acepção negativa, de defeito – acarreta invalidação desse ato (ainda que esta seja a sanção abstratamente prevista para o vício). O processo pode, ao revés, emprestar eficácia ao ato atípico, deixando de aplicar a sanção de invalidade, que acarretaria a destruição do ato e, pois, o afastamento de sua eficácia278. Aliás, o sistema processual brasileiro estrutura seu regime de invalidades com

276

YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 168. Além da instrumentalidade das formas, a tipicidade do ato processual deve estar afinada, ainda, com o exercício do contraditório (idem, p. 169).

277

YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 168-169.

278

PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 110-111. A ineficácia de um ato processual pode guardar conformidade com uma norma jurídica (o que ocorre, por exemplo, quando a eficácia se encontra sujeita a condição ou termo) ou pode decorrer de violação à norma (atipicidade). No primeiro caso, tem-se a “ineficácia em sentido técnico”; no segundo, a ineficácia decorrente da invalidade (SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 186).

o nítido propósito de evitar que invalidades sejam decretadas279.

No que diz respeito ao conteúdo dos atos processuais, Yarshell rememora o pensamento doutrinário que infirma a possibilidade de a vontade determinar os efeitos de um dado ato processual, os quais seriam sempre predefinidos em lei. Essa predefinição legal de efeitos reforça a ideia de tipicidade dos atos processuais, deixando assente que a lei disciplina, por modelos, a forma de exercício do contraditório e os efeitos do ato a ser praticado, “regulamentando” o agir das partes280

.

Justamente em virtude do estabelecimento do dogma da irrelevância da vontade no processo, o exame da validade dos atos processuais desenvolveu-se, primordialmente, tomando por base os aspectos formais daqueles. Elementos como a causa, a vontade (atinentes ao conteúdo do tipo), a capacidade, a legitimidade (que se constituem em exigências subjetivas do tipo), o tempo e o lugar (aspectos circunstanciais do tipo) não gozavam de igual importância ou eram desconsiderados para tal fim281.

A atipicidade é elemento necessário, mas não suficiente, à configuração da invalidade. Além dela, devem, ainda, ser examinados a iniciativa legítima, o não aproveitamento e o decreto judicial282.

A iniciativa legítima está relacionada com os princípios dispositivo e inquisitivo (ou da oficialidade). A este subtópico interessa, particularmente, a acepção formal do princípio dispositivo (princípio do debate), que reflete o poder das partes de ingerência sobre o procedimento.

As premissas históricas já apresentadas dão conta de que o avanço do publicismo processual, com o consequente arrefecimento das ideias privatistas, conduziu à redução da importância do princípio do debate no processo civil, ganhando espaço a oficialidade na

279 DIDIER JUNIOR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos processuais.

Salvador: Juspodivm, 2011, p.76.

280 YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 172. O autor, contudo, não nega a

relevância da vontade das partes no processo e, sob determinadas condições, já apontadas em momento anterior deste capítulo, admite a convenção das partes em matéria processual, até mesmo atípica (idem, p. 173-174).

281

SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 182-183. Observe-se, por exemplo, o posicionamento de Daniel Mitidiero, para quem a invalidade dos atos processuais não levaria em conta o conteúdo de tais atos (MITIDIERO, Daniel Francisco. O problema da invalidade dos atos processuais no direito processual civil brasileiro contemporâneo. Gênesis: revista de direito processual civil, Curitiba, n. 35, jan.-mar./2005, p. 51). No mesmo sentido, não reconhecendo importância à discussão acerca de vícios de vontade de atos processuais, PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 142.

282 SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto

condução formal do feito. A despeito de tal fato, porém, é incorreto afirmar-se, ainda quando sob a égide do CPC/1973, que tenha o princípio dispositivo em seu aspecto formal sido inteiramente afastado do processo civil brasileiro. O ideal democrático pressupõe uma repartição desses poderes de condução do procedimento, buscando-se um equilíbrio entre oficialidade e princípio dispositivo283.

Os poderes de iniciativa legítima, no que respeita ao plano da validade dos atos processuais, relacionam-se à possibilidade ou não de decretação de invalidade de ofício pelo juiz, tratando-se de análise afeta ao direito positivo de cada país, temática que extrapola a proposta deste subtópico (o sistema jurídico-processual de invalidades será examinado, no que for pertinente ao trato do art. 190 do CPC/2015, no capítulo dedicado à construção de sentido dessa cláusula geral).

De se notar que a classificação dos defeitos processuais adotada por Fredie Didier Junior e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira leva em consideração os poderes de iniciativa legítima. Ao lado da categoria das irregularidades (defeitos que não geram invalidades), os autores sugerem três outros tipos de defeito: os que geram invalidade não decretável de ofício, dependendo de requerimento da parte prejudicada ou de terceiro, em tempo hábil a evitar a preclusão; os que ensejam invalidade decretável de ofício e, por fim, os que dão causa à invalidade decretável de ofício, mas apenas até o momento em que caberia à parte suscitá-la; após esse momento, há preclusão284.

A invalidade exige, ainda, para ser decretada, a impossibilidade de aproveitamento do ato, suprindo-o ou fazendo-o irrelevante285. Nessa seara, merece destaque a regra pas de

nullité sans grief, que afasta a possibilidade de decretação de invalidade quando ausente

prejuízo decorrente do ato viciado (prejuízo este que pode se dirigir aos interesses da parte ou ao alcance das finalidades processuais286). Não se concebe, pois, que a invalidade seja decretada apenas por prevalência de formalismo desarrazoado ou tendo em mente o texto normativo somente. Além disso, a noção de ausência de prejuízo relaciona-se intrinsecamente com a análise teleológica do tipo malferido. Dir-se-á ausente o prejuízo quando atingida a

283

SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 189-194.

284 DIDIER JUNIOR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos processuais.

Salvador: Juspodivm, 2011, p.78-80.

285

SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 207.

286 Este entendimento não é adotado por José Joaquim Calmon de Passos, para quem a invalidade sempre estará

atrelada ao não alcance de finalidades relacionadas à justiça do processo – até por esta razão, o autor defende que toda invalidade é decretável de ofício (PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 142).

finalidade propugnada pelo tipo287.

O decreto judicial, por fim, também é elemento necessário à perfectibilização da invalidade, já que as invalidades devem ser decretadas e não declaradas288.

A temática relativa à invalidade ganha especial relevo quando se discute a sua aplicabilidade aos atos processuais das partes. Há quem afirme que tais atos sequer se sujeitariam ao plano da validade289. Admitindo-se, porém, que também os atos das partes submetem-se a esse plano290, ganha relevo a perquirição acerca do regime jurídico aplicável à invalidação de tais atos, inclusive no tocante à aplicabilidade ou não das regras do sistema de invalidades do direito substancial às invalidades de atos processuais lato sensu.

O relevo conferido à autonomia da vontade pelo Código de Processo Civil de 2015 conduz à imperiosidade de se repensar o papel que a essa vontade compete no âmbito processual. Observa-se a tendência à ruptura com o rigor publicista e ao reconhecimento da necessidade de se buscar amparo no direito substancial para resolução de problemas não solvidos pelo processo, especialmente no tocante à avaliação da perfeição do conteúdo do ato processual.

Não por outra razão, o Enunciado nº 403 do Fórum Permanente de Processualistas Civis já sinalizou que os requisitos de validade básicos previstos no direito material (capacidade do agente, licitude, possibilidade e determinabilidade do objeto e forma prescrita ou não defesa em lei) são também exigíveis para os negócios jurídicos processuais291.

Por fim, há de se esclarecer que escapam aos limites do presente subtópico a análise acerca das múltiplas classificações doutrinárias das invalidades292, sendo discutível em

287

SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p.210-212.

288 SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 182; DIDIER JUNIOR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, 2011, p.76.

289

Cite-se, por todos: DINAMARCO. Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, v. 02, p. 606; MITIDIERO, Daniel Francisco. O problema da invalidade dos atos processuais no direito processual civil brasileiro contemporâneo. Gênesis: revista de direito processual civil, Curitiba, n. 35, jan.-mar./2005, p. 51.

290

Trata-se da posição adotada neste trabalho, compartilhando-se o entendimento esposado por SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 187; DIDIER JUNIOR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, 2011, p.91-92. Fredie Didier Junior e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira reconhecem, inclusive, a aplicabilidade das regras concernentes aos vícios de vontade aos atos processuais (idem, p. 109).

291 Enunciado nº 403 do FPPC: “A validade do negócio jurídico processual, requer agente capaz, objeto lícito,

possível determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei”.

292 Apenas para exemplificar: Galeno Lacerda, referindo-se à sistematização haurida de Carnelutti, qualifica as

doutrina até mesmo a utilidade prática de tais classificações, uma vez que se trata de regramento mutável ao sabor do direito positivo293. As regras atinentes ao sistema de invalidades (materiais e processuais) aplicáveis às convenções processuais serão examinadas, no que couber, no próximo capítulo.

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 159-163)

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