• Nenhum resultado encontrado

O privatismo processual

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 95-97)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

2 PREMISSAS PARA A COMPREENSÃO DA CLÁUSULA GERAL DE NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO

2.1 PREMISSAS HISTÓRICAS E IDEOLÓGICAS

2.1.1 O privatismo processual

A concepção privatista do processo, representada, precipuamente, no modelo processual adversarial clássico, coaduna-se com a ideologia liberal, cujas características principais residem na valorização da liberdade individual e na defesa de uma menor intervenção do Estado na autonomia privada4-5.

Carneiro da Cunha apresenta um panorama do processo romano, destacando o papel da litiscontestatio nos seus dois primeiros momentos históricos, o da legis actiones e o do processo formulário. Em ambos os períodos, a litiscontestatio assumiu papel marcadamente contratual, representando um acordo firmado pelas partes, por intermédio do qual elas assentiam em submeter o litígio a juízo. Referido acordo, na fase da legis actiones, era formulado oralmente; na etapa do processo formulário, passou a ser feita por escrito. Com o advento da terceira fase do processo romano (cognitio extra ordinem), o processo deixou de ser instaurado por força de acordo celebrado entre as partes, passando a decorrer da apresentação, por cada uma delas, de sua pretensão (CUNHA, Leonardo Carneiro da. A atendibilidade dos fatos supervenientes no processo civil: uma análise comparativa entre o sistema português e o brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p.16-21). A natureza contratual da litiscontestatio decorria da própria organização jurídico-social da época, em que não havia um Estado capaz de impor autoritativamente a solução dos conflitos existentes no seio social, fazendo-se imperioso, pois, que as partes assentissem em se submeter à decisão a ser proferida. A litiscontestatio era vista, assim, como um verdadeiro contrato judicial (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. São Paulo: RT, 2015, v. 1, p. 422). Em sentido contrário, refutando o papel da litiscontestatio como antecedente histórico das convenções processuais, por entender que aquela tinha por objetivo primordial a fixação dos pontos litigiosos a serem objeto de decisão por sentença, dela não se extraindo nenhum caráter convencional relativamente à adaptação procedimental às exigências do objeto litigioso: CRUZ E TUCCI, José Rogério. Natureza e objeto das convenções processuais. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Negócios processuais. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 27- 28.

4 Imperioso enfatizar que o modelo adversarial não é criação do liberalismo jurídico clássico, precedendo este

em séculos. A relação apresentada no texto decorre da circunstância de ter o liberalismo apontado o adversarial system como modelo processual ideal, uma vez que concretiza os valores defendidos pela ideologia liberal (TARUFFO, Michele. In processo civile “adversary” nell’esperienza americana. Cedam: Padova, 1979, p. 265- 266).

5 Outro esclarecimento faz-se necessário: o modelo adversarial de processo, embora tipicamente relacionado aos

sistemas processuais integrantes da common law, não é exclusividade destes, também sendo possível a sua identificação em sistemas processuais componentes da tradição romano-germânica, a exemplo do sistema disciplinado no CPC francês de 1806. Nesse sentido: DAMAŠKA, Mirjan. The common law divide: residual

Há, nesse modelo, um predomínio das partes na condução formal do procedimento, cabendo-lhes a definição do objeto do processo, a especificação das questões de fato e (em grande medida) de direito que serão objeto de deliberação judicial, assim como a definição e produção dos meios de prova. O processo é visto como “coisa das partes”, sendo amplo o exercício da autonomia privada em matéria processual6.

O princípio dispositivo é adotado em sua dupla acepção: no sentido material (ou substancial ou próprio), conferindo às partes a iniciativa exclusiva para provocar a prestação jurisdicional e para delimitar o objeto litigioso do processo; e no aspecto formal (ou processual ou impróprio), subordinando a atuação do juiz à iniciativa das partes no que diz respeito à estruturação e ao desenvolvimento do processo7. O princípio dispositivo em sentido processual é também intitulado de princípio do debate8.

A atribuição, às partes, do controle sobre a atividade instrutória e sobre o impulso procedimental, conferindo-lhes a regência do tempo no processo, decorre da ideia de que este serviria à consecução de fins privados, podendo dele os contendores fazer uso como melhor lhes aprouvesse. Essa tônica liberal achava-se presente no CPC francês de 1806 (código napoleônico), sendo identificada, ainda, nas legislações processuais em vigor na Itália e na Alemanha no século XIX9.

De se recordar que o Direito Processual não era visto, até meados do século XIX, como disciplina autônoma10, existindo uma nítida confusão entre os âmbitos substancial e processual, que conduzia o processo à condição de mero apêndice do direito material. Tal fase metodológica do Direito Processual, intitulada de imanentista, praxista ou sincrética (pré-

truth of a misleading distinction. In: CHASE, Oscar et al. (coord.). Common law-civil law: the future of categories of the future. Toronto: International Association of Procedural Law, 2009, p. 03-05; BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual. Salvador: Juspodivm, 2013, p.98-103.

6 Uma abordagem mais detalhada acerca do modelo processual adversarial pode ser encontrada em

BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 65-109.

7 Sobre os sentidos material e formal do princípio dispositivo, ver: DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito

Processual Civil. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, v.1, p. 124; CAPPELLETTI, Mauro. El testimonio de la parte en el sistema de la oralidad: contribución a la teoría de la utilización probatoria del saber de las partes en el proceso civil. Tradução: Tomás A. Banzhaf. La Plata: Platense, 2002, v. 1, p. 344-345; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 3. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 87.

8

CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 140.

9

ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo: das convenções processuais no processo civil. São Paulo: LTr, 2015, p. 65.

10 Em verdade, nesta fase, sequer poder-se-ia falar propriamente em Direito Processual, denominação que

somente ganha sentido e razão de ser quando reconhecida a autonomia científica da citada disciplina, fato que decorre da publicação, no ano de 1868, da obra de Oskar von Bülow sobre a teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais.

científica)11, tendo sofrido a influência de uma ideologia política marcada pela liberdade e pela autonomia privada do indivíduo, com limitação da interferência estatal na esfera privada, culminou por se constituir em solo fecundo à atuação das partes na condução do procedimento12.

O quadro acima explicitado ganha contornos inteiramente novos com o reconhecimento do caráter científico do Direito Processual e sua inserção no âmbito do Direito Público.

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 95-97)

Outline

Documentos relacionados