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Colaboração premiada

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 52-60)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

1.4 MANIFESTAÇÕES DA CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

1.4.2 Colaboração premiada

A colaboração (ou delação) premiada consiste em negócio celebrado entre a autoridade policial ou o Ministério Público, de um lado, e o investigado/acusado, de outro, por intermédio do qual o Poder Público consente em conceder ao investigado/acusado benefícios penais ou processuais penais (perdão judicial, redução de pena privativa de liberdade, substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito, progressão de regime sem observância a requisitos objetivos) em troca de informações capazes de viabilizar a identificação de coautores e partícipes do delito, a prevenção de infrações penais, a localização de vítima com sua integridade física preservada, dentre outras hipóteses. A colaboração premiada objetiva, além de outras finalidades, a obtenção de provas capazes de dar lastro à condenação criminal dos envolvidos na prática do delito.

Abstraindo-se discussões quanto a eventuais questões éticas e morais relacionadas ao instituto78, interessa ao presente trabalho verificar o surgimento e expansão desse campo de consensualidade no âmbito criminal. Consagra-se, com ele, autorização legal no ordenamento jurídico brasileiro para que o Estado negocie o exercício, in concreto, de situações jurídicas criminais punitivas (com a não aplicação de sanção penal ou a sua redução), em troca de informações e provas que permitam a investigação e punição de outros praticantes de condutas delituosas.

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Apontando a desapropriação amigável (e a possibilidade de celebração de transação judicial em ação de desapropriação, conforme art. 22 do Decreto-Lei nº 3.365/1941) como o estágio inicial da abertura normativa do Direito Administrativo brasileiro à utilização de instrumentos consensuais: PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 190-191. A autora destaca, porém, que o Decreto-Lei nº 3.365/1941 limitou-se a conferir à Administração Pública legitimidade para a celebração do acordo, sem, contudo, discipliná-lo de forma detalhada (idem, p. 191).

78 A doutrina penal e processual penal controverte quanto ao caráter ético do instituto, havendo quem defenda

que a colaboração premiada incitaria atos de traição, com transgressão indevida de preceitos morais, conduta que, por essa razão, não deveria ser incentivada pelo Estado. Nesse sentido, por exemplo: MOREIRA, Rômulo de Andrade. A delação no direito brasileiro. Revista Jurídica Consulex, ano XIX, n. 433, fev./2015, p. 44; SARCEDO, Leandro. A delação premiada e a necessária mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, ano 14, n. 27, jan.-jun./2011, p. 195-196. Em sentido contrário, há posicionamento que entende não deva o delator ser tratado como traidor, devendo as preocupações relacionadas ao instituto ser referidas à valoração da prova obtida e à preservação das esferas de privacidade dos delatados, ao menos até que corroborada a prova obtida por intermédio da delação com outras dela diversas, de modo a resguardar minimamente o princípio da presunção de inocência. É o pensamento externado, por exemplo, em COSTA, Fernando José da. Delação premiada: uma prova a ser usada com ressalvas. Revista Jurídica Consulex, ano. XVIII, n. 426, out./2014, p. 19.

Na doutrina brasileira, o instituto ganhou notoriedade sob a rubrica de delação premiada, nomenclatura que não foi adotada pelas legislações que o previram e que carrega, no mais das vezes, um caráter nitidamente pejorativo.

Apesar de a primeira disciplina do instituto no Brasil ter sido veiculada pela Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990)79, quando fora a “delação premiada” estabelecida como causa objetiva de diminuição de pena, apenas em 2013, com o advento da Lei que define organização criminosa e disciplina o seu combate (Lei nº 12.850/2013), foi prevista expressamente em sede legislativa a expressão “colaboração premiada”. À vista de seu novo regramento, o instituto assume, então, feição nitidamente negocial.

A Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990) preconiza, em seu art. 8º, parágrafo único, que o participante ou o associado que denunciar o bando ou quadrilha à autoridade, de modo a viabilizar seu desmantelamento, gozará de uma redução de pena de um a dois terços. Trata-se do embrião do instituto da colaboração premiada, tantas vezes prevista no ordenamento brasileiro.

O art. 7º do mesmo diploma legal acresceu ao art. 159 do Código Penal um parágrafo quarto, disciplinando a colaboração premiada nos delitos de extorsão mediante sequestro praticados por quadrilha ou bando. Em havendo denúncia do crime e facilitação da libertação do sequestrado, o colaborador seria beneficiado por uma redução de um a dois terços da pena80.

Cinco anos mais tarde, soma-se à previsão de delação premiada da Lei de Crimes Hediondos aquela prevista na Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/1995), hoje revogada pela Lei nº 12.850/2013. No aludido texto normativo de 1995, mais especificamente em seu art. 6º, há uma evolução redacional, mencionando-se a “colaboração espontânea” (em verdade, voluntária) do agente. Existindo ela e sendo possível, por seu intermédio, o esclarecimento de infrações penais e de sua autoria, poderia haver redução de pena de um a dois terços, com lastro naquele dispositivo.

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Parte da doutrina formula um retrospecto ainda mais amplo, remontando à época do Brasil-Colônia, em que as Ordenações Filipinas previram Capítulo que conferiu tratamento a hipótese similar à colaboração premiada (perdão ao malfeitor em troca da indicação dos outros praticantes do ato ilícito), normativo que foi utilizado para a condenação de Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes), após delação apresentada por Joaquim Silvério dos Reis, durante a Inconfidência Mineira (COSTA, Fernando José da. Delação premiada: uma prova a ser usada com ressalvas. Revista Jurídica Consulex, ano. XVIII, n. 426, out./2014, p. 19).

80 O art. 159, §4º, do Código Penal foi alterado pela Lei nº 9.269/1996, aperfeiçoando-se a sua redação para

esclarecer que a colaboração premiada seria viável sempre que o delito fosse praticado em concurso de pessoas, ainda que não se tratasse de quadrilha ou bando. Além disso, substituiu-se o termo “coautor” por “concorrente”, tornando claro que a regra também se destina ao partícipe.

Na mesma época, exsurge a Lei nº 9.080/1995, que acrescentou o §2º ao art. 25 da Lei nº 7.492/1986 (Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), regrando o que denominou de “confissão espontânea”. Por meio dela, garantiu-se ao colaborador, em troca de sua “delação” (desde que capaz de revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa), a redução de pena de um a dois terços. Do mesmo modo, a Lei nº 9.080/1995 inseriu um parágrafo único ao art. 16 da Lei nº 8.137/1990 (Lei de Crimes contra a Ordem Tributária), de mesmo teor.

A Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/1998), além de estabelecer regramento próprio para a colaboração premiada em seu art. 1º, §5º, avança ao ampliar o âmbito dos benefícios a serem concedidos em troca das informações e provas a serem apresentadas pelo colaborador. Além da costumeira previsão de redução da pena de um a dois terços, o dispositivo conferiu ao colaborador o benefício de cumprimento inicial da pena em regime aberto, sendo possível que o juiz deixe até mesmo de aplicá-la ou a substitua por pena restritiva de direito. Para tanto, a colaboração deve contribuir para a apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização de bens, direitos ou valores objeto do crime81.

A Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei nº 9.807/1999) regrou a proteção estatal a ser concedida a réus colaboradores, ampliando, ainda mais, o plexo de benefícios decorrentes da colaboração premiada. Desde que se trate de réu primário e que sua colaboração haja sido eficaz (ou seja, que dela tenha resultado identificação de outros coautores ou partícipes da ação criminosa, a localização da vítima com sua integridade física preservada ou a recuperação total ou parcial do produto do crime), torna-se possível a concessão de perdão judicial, com extinção da punibilidade imposta, observados os requisitos legais (art. 13).

Além disso, o art. 14 da referida Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas estabelece regramento geral de colaboração premiada. Em caso de condenação, haverá redução da pena de um a dois terços ao indiciado ou acusado que colabore com a investigação processual ou com o processo criminal, com vistas à identificação de outros coautores ou partícipes do crime, à localização da vítima com vida e à recuperação total ou parcial do produto do crime.

81 O dispositivo teve sua redação alterada pela Lei nº 12.683/2012, estabelecendo-se a possibilidade de a pena ser

cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz substituir a pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, a qualquer tempo e esclarecendo-se que a colaboração será eficaz mesmo que conduza apenas à apuração de infrações penais ou à identificação de autores, coautores e partícipes (na redação anterior, havia a necessidade de cumulação desses dois resultados).

O instituto, outrora previsto em regramentos esparsos e destinado a crimes específicos, ganha preceito normativo genérico, com expressiva ampliação de seu âmbito de aplicabilidade82.

Previsão de colaboração premiada é encontrada, ainda, no art. 41 da Lei nº 11.343/2006 (Lei Antidrogas), também com redução de um a dois terços da pena como benefício a ser ofertado ao colaborador.

Por fim, a Lei nº 12.850/2013 (Lei de Organizações Criminosas) prevê a colaboração premiada (valendo-se dessa específica nomenclatura) como meio de obtenção de prova (art. 3º, I), regrando-a nos seus arts. 4º a 7º. A normatização apresentada pelo referido diploma legal reflete um amadurecimento no trato com o instituto, desde a definição de sua denominação, passando pelos benefícios conferidos ao colaborador (perdão judicial e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, além da redução de pena) e pelos resultados pretendidos com a colaboração (abrangendo resultados preventivos da prática de infrações penais). Estabelece, ainda, aspectos procedimentais antes inexistentes na legislação brasileira, dando lastro a um verdadeiro microssistema de tratamento do instituto da colaboração premiada no Brasil83.

A Lei de Organizações Criminosas confere natureza negocial, antes inexistente, à colaboração premiada, reconhecendo-a, inclusive, no seu art. 4º, §6º84. Outros dispositivos legais corroboram essa conclusão, a exemplo do §10 do mesmo artigo, que permite a retratação da proposta de colaboração premiada, e, especialmente, do art. 6º, que regula o termo de acordo da colaboração premiada.

82 Nesse sentido: SARCEDO, Leandro. A delação premiada e a necessária mitigação do princípio da

obrigatoriedade da ação penal. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, ano 14, n. 27, jan.-jun./2011, p. 195. O autor critica a generalização do uso da colaboração premiada, que, em seu entender, deveria ter caráter excepcional. Também reconhecendo que a Lei nº 9.807/99 generalizou o cabimento da colaboração premiada a toda e qualquer infração praticada em concurso de agentes: TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 363.

83 Defendendo a aplicabilidade do regramento previsto na Lei nº 12.850/2013 a todas as colaborações premiadas

previstas no ordenamento jurídico brasileiro, por sua generalidade: BADARÓ, Gustavo. O valor probatório da delação premiada: sobre o §16 do art. 4º da Lei nº 12.850/13. Revista Jurídica Consulex, ano XIX, n. 433, fev./2015, p. 26-27.

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Por essa razão, discorda-se, por exemplo, do posicionamento sufragado por Tiago Cintra Essado, que atribui à colaboração premiada a natureza jurídica de meio de obtenção de prova, qualificando o instituto com base em apenas uma de suas consequências jurídicas (efeitos) e desprezando outras (redução da pena, por exemplo). O entendimento sufragado pelo autor, com remissão ao então Projeto de Lei nº 6.578/2009 (convertido, posteriormente, na Lei nº 12.850/2013), acha-se externado em: ESSADO, Tiago Cintra. Delação premiada e idoneidade probatória. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 21, n. 101, mar.-abr./2013, p. 224-225.

Cuida-se de negócio jurídico que reverbera nos planos material e processual85, podendo celebrá-lo o delegado de polícia (ouvindo-se o Ministério Público) e o investigado (na fase investigativa) ou o Ministério Público e o investigado ou acusado (nas fases investigativa e judicial). O órgão judicial não é parte no acordo celebrado; sua eficácia, porém, sujeita-se à homologação judicial. Compete ao magistrado realizar o controle de validade do acordo de colaboração86.

O aspecto processual do negócio jurídico de colaboração premiada (negociação de caráter probatório, destinada à instrução de processo criminal, judicial ou administrativo – investigação, nesse segundo caso87) foi disciplinado pela Lei nº 12.850/2013, permitindo-se, por exemplo, a suspensão negociada do prazo para oferecimento de denúncia ou processo, relativamente ao colaborador (art. 4º, §3º), ou, até mesmo, o não oferecimento de denúncia, nos termos do §5º do art. 4º.

A inserção de regramento legal acerca da colaboração premiada no ordenamento jurídico-penal brasileiro em 1990; o advento de leis que ampliaram as hipóteses de sua utilização, os benefícios dela advindos e as finalidades a que se destina; o refinamento de seu regramento processual e a atribuição, finalmente, ao instituto, de caráter negocial, todos esses elementos revelam uma paulatina abertura do ordenamento jurídico-penal à consensualidade.

85 Nesse sentido: DIDIER JUNIOR, Fredie; BOMFIM, Daniela. Colaboração premiada (Lei n. 12.850/2013):

natureza jurídica e controle da validade por demanda autônoma – um diálogo com o direito processual civil.

Civil Procedure Review, v. 07, n. 02, maio.-ago./2016, p. 144. Disponível em

<www.civilprocedurereview.com>. Acesso em 30/05/2016. Afirmam os autores que estão contemplados no âmbito da esfera de autorregramento inerente à colaboração premiada: a) a obrigação assumida pelo acusado/colaborador de renunciar ao seu direito ao silêncio; b) a possibilidade de suspensão do processo investigativo ou do processo penal; c) o benefício a ser definido em favor do colaborador, dentre as hipóteses previstas em lei (idem, p. 148-149). Sustentam que a colaboração premiada possui a natureza específica de contrato (de caráter oneroso e sinalagmático), tendo em vista a contraposição dos interesses nele consignados: para o delegado de polícia ou o membro do Ministério Público interessam as provas colhidas em decorrência da colaboração do acusado; para este, por sua vez, a vantagem esperada consiste na obtenção de decisão judicial que contemple, para si, o perdão judicial, a redução da pena privativa de liberdade ou sua substituição por pena restritiva de direitos (idem, p. 151-153).

86 Questão cerne atinente à validade do acordo de colaboração premiada diz respeito à vontade manifestada pelo

colaborador. A colaboração deve ser voluntária; no entanto, parte da doutrina questiona se há verdadeiramente manifestação de vontade despida de vícios à vista da circunstância de que grande parte das colaborações realizadas é celebrada por pessoas presas cautelarmente. Critica-se eventual uso da liberdade de locomoção como “moeda de troca” para a obtenção do efeito probatório da colaboração, viciando a manifestação de vontade emitida pelo colaborador. Nesse sentido, pondo em debate, inclusive, a constitucionalidade do instituto, GARCIA FILHO, José Carlos Cal. Delação premiada e devido processo legal. Revista Jurídica Consulex, ano XIX, n. 433, fev./2015, p. 24-25. Também questiona a higidez da vontade do colaborador preso: ALONSO, Leonardo; GROCH, Ludmila Leite. A delação premiada e seus requisitos legais. Revista Jurídica Consulex, ano XIX, n. 433, fev./2015, p. 35.

87 Registre-se que a colaboração premiada tem valor probatório atenuado, submetendo-se à chamada regra de

corroboração, segundo a qual o conteúdo da colaboração premiada deve ser confirmado por outros elementos probatórios. Não se admite a corroboração cruzada (mutual corroboration), que seria a possibilidade de uma colaboração sustentar-se apenas em outra (BADARÓ, Gustavo. O valor probatório da delação premiada: sobre o §16 do art. 4º da Lei nº 12.850/13. Revista Jurídica Consulex, ano XIX, n. 433, fev./2015, p. 27-28).

Reconhece-se o caráter relativo do princípio da obrigatoriedade da ação penal88, que poderá ceder espaço em prol da utilização de via consensual capaz de conferir maior eficiência à própria persecução penal e à prevenção de infrações penais.

O instituto da colaboração premiada inspirou a criação de medida similar no âmbito do Direito Administrativo sancionador: o acordo de leniência, que será objeto de exame em item próprio.

1.4.3 Transação penal e suspensão condicional do processo

A Lei nº 9.099/1995 inaugurou, no Brasil, um microssistema penal e processual penal cuja lógica funcional é distinta daquela que rege o sistema tradicional, de caráter punitivo, conflituoso e pautado na premissa da indisponibilidade da ação penal. No âmbito dos Juizados Especiais Criminais (e também fora dele, para a suspensão condicional do processo), estrutura-se um sistema penal e processual penal de cunho consensual e não punitivo89.

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Defendendo essa mitigação da obrigatoriedade da ação penal e reconhecendo, inclusive, com arrimo no princípio da proporcionalidade, outros exemplos em que essa mitigação também se verifica (crimes de bagatela, crimes de menor potencial ofensivo): SARCEDO, Leandro. A delação premiada e a necessária mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, ano 14, n. 27, jan.- jun./2011, p. 200-201. Elio Palombi, examinando o princípio da obrigatoriedade da ação penal à luz do ordenamento jurídico italiano, em que referido princípio tem sede constitucional expressa no art. 112 da Constituição italiana (“Il pubblico ministero ha l’obbligo di esercitare l’azione penale”), esclarece que a referida norma funciona como verdadeiro ponto de convergência de um plexo de princípios basilares do sistema constitucional daquele país, a exemplo dos princípios da legalidade penal, da igualdade e da independência do Ministério Público. Não obstante tal circunstância, preconiza a necessidade de uma adequação do princípio à realidade fática, a fim de equacionar, por exemplo, o excessivo volume de supostos delitos levados ao conhecimento do Ministério Público. Ao lado do posicionamento doutrinário que sustenta a aplicação intransigente daquele princípio, há quem defenda a necessária existência de uma margem de discricionariedade na atuação ministerial. Este pensamento decorre da constatação de que o princípio em questão não é absoluto. O autor cita como exemplos dessa relativização o princípio da irrelevância penal (criminalidade de bagatela) e o princípio da ofensividade, ambos excludentes da incidência do princípio da obrigatoriedade da ação penal (PALOMBI, Elio. La regola dell’obbligatorietà dell’azione penale. Rivista di diritto processuale. Padova: CEDAM, anno LIX, II Série, abr.-jun./2004, p. 583-588). O raciocínio pode ser adaptado à realidade do ordenamento jurídico brasileiro, em que a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal oferece espaço à aplicação daqueles princípios e ao exercício da consensualidade nos âmbitos penal e processual penal.

89 SILVA JUNIOR, Edison Miguel da. Sistema penal consensual não punitivo – Lei 9.099/95. Revista dos

Tribunais, São Paulo, ano 88, v. 762, abr./1999, p. 506-507. O autor qualifica a Lei nº 9.099/1995 como “um novo sistema penal” (idem, p. 510). Na mesma senda, destacando o caráter paradigmático da Lei nº 9.099/1995, calcada no consenso e editada em período no qual a tendência legislativa caminhava justamente em sentido contrário (recrudescimento do Direito Penal, com a aprovação de leis como a de Crimes Hediondos – Lei nº 8.072/1990 – e a de combate ao Crime Organizado – Lei nº 9.034/1995): GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 4. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 43. Aury Lopes Junior tece críticas ao modelo de justiça penal negociada, qualificando-a como utilitarista e antigarantista, por impor “pena” sem “processo penal justo” (LOPES JUNIOR, Aury. Justiça negociada: utilitarismo processual e eficiência antigarantista. In: CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (org.). Diálogos sobre a justiça dialogal:

As razões subjacentes a essa mudança de perspectiva atinem à própria crise do sistema punitivo, constatados o seu alto custo para a sociedade (prisões superlotadas com todas as suas consequências, como tratamento desumano aos presos, rebeliões, dentre outras; alto custo financeiro da prisão; taxa elevada de reincidência), a sua ineficácia na função de prevenir a prática de novos ilícitos penais e a sua injustiça, por reproduzir as desigualdades sociais, funcionando, como regra, de modo seletivo e estigmatizante90.

O microssistema dos Juizados Especiais Criminais objetiva substituir a pena por medidas que se revelem úteis às partes envolvidas no litígio criminal e à sociedade91. Dentre os instrumentos voltados a tal finalidade, destacam-se, em especial, dois: a transação penal e a suspensão condicional do processo92.

A transação penal tem sede constitucional (art. 98, I, da CF/1988) e está também prevista no art. 76 da Lei nº 9.099/1995. Consiste em um negócio jurídico celebrado entre o Ministério Público e o apontado autor da infração93, por intermédio do qual aquele abdica de seu poder-dever de oferecer a denúncia, deflagrando a ação penal, enquanto o autor da infração anui em se submeter a uma sanção de natureza distinta da privativa de liberdade94.

É aplicável a transação penal às infrações de menor potencial ofensivo, assim entendidas as contravenções penais e os crimes cuja pena privativa de liberdade abstratamente cominada não exceda dois anos, cumulada ou não com multa.

Ao requisito objetivo supramencionado, traçado pelo art. 61 da Lei nº 9.099/1995, associam-se os requisitos subjetivos listados no art. 76, §2º (não ter sido o apontado autor da infração condenado por sentença definitiva a pena privativa de liberdade; não ter sido

teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, passim). Importante registrar que o art. 62 da Lei nº 9.099/1995 esclarece que dentre as linhas basilares dos Juizados Especiais Criminais figuram a busca pela reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.

90 SILVA JUNIOR, Edison Miguel da. Sistema penal consensual não punitivo – Lei 9.099/95. Revista dos

Tribunais, São Paulo, ano 88, v. 762, abr./1999, p. 508-509.

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SILVA JUNIOR, Edison Miguel da. Sistema penal consensual não punitivo – Lei 9.099/95. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 88, v. 762, abr./1999, p. 510.

92 Outra medida reside na composição civil dos danos, prevista no art. 74 da Lei nº 9.099/1995, acordo cuja

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