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Fundamentos da cláusula de atipicidade da negociação processual

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 186-194)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

2 PREMISSAS PARA A COMPREENSÃO DA CLÁUSULA GERAL DE NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO

2.2 PREMISSAS LÓGICO-CONCEITUAIS

2.3.2 Fundamentos da cláusula de atipicidade da negociação processual

Quanto aos fundamentos que lastreiam a adoção, no processo civil brasileiro, da cláusula geral de negociação processual, destaca-se, além do princípio democrático386, já enfatizado, o princípio da liberdade. Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988, já em seu preâmbulo, faz menção à liberdade como valor social supremo. Também a caracteriza como um direito fundamental, ao inscrevê-la, genericamente, no caput do art. 5º da Carta Magna, sem prejuízo de delimitar diversas liberdades individuais como as de manifestação e a de associação.

A previsão dessas liberdades específicas não esgota o arcabouço que desse direito fundamental se deve extrair, razão pela qual a referência à liberdade no caput do art. 5º da CF/1988 funciona como uma cláusula de abertura material, um verdadeiro parâmetro para a identificação de outras liberdades específicas atípicas. A existência dessas liberdades implícitas é corroborada pela análise conjunta do caput do art. 5º da CF/1988 com o §2º do mesmo dispositivo. É plenamente possível, portanto, imaginar outras formas de expressão da autonomia pessoal, tendo por limite ao preenchimento de conteúdo dessa cláusula o direito à

385

Na expressão sufragada por GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental: um novo enfoque para o estudo do procedimento em matéria processual, de acordo com as recentes reformas do CPC. São Paulo: Atlas, 2008, p. 215-222. O autor cita como espécies de flexibilização procedimental voluntária a eleição do procedimento pela parte (ex.: monitória ou procedimento ordinário), a prorrogação convencional de prazos e a eleição do ato processual na série (ex.: escolha entre adjudicação do bem, alienação por iniciativa particular ou alienação em hasta pública).

386 Estribando a constitucionalidade da chamada “contratualização do processo” (prefere-se aludir à abertura

sistemática à convencionalidade em matéria processual) no princípio democrático e na ideia de participação do interessado na gestão da coisa pública: ANDRADE, Erico. As novas perspectivas do gerenciamento e da “contratualização” do processo. Revista de processo, São Paulo, n. 193, mar./2011, p. 194.

igual consideração e respeito (respeito ao espaço de liberdade alheio)387.

Vista a liberdade em seus aspectos negativo (direito à não interferência na esfera pessoal do indivíduo) e positivo (autodeterminação, orientação da vontade dirigida a certa finalidade) e partindo-se da premissa de que o valor liberdade é dinâmico, ganhando contornos variados ao longo do tempo, pode-se extrair do princípio de liberdade (que veicula o valor supramencionado) o subprincípio do respeito ao autorregramento da vontade, que mais de perto e já na esfera infraconstitucional confere lastro à cláusula de atipicidade da negociação processual estudada.

Antonio do Passo Cabral identifica no princípio dispositivo a representação processual da liberdade das partes, sendo ele dotado de base constitucional, uma vez que é decorrência dos princípios da liberdade, da inafastabilidade do controle jurisdicional e dos direitos de ação e de defesa. O princípio dispositivo exige do órgão jurisdicional o respeito ao exercício, pelas partes, de seus poderes de renúncia e disposição, âmbito de atuação dos interesses privados dos litigantes no processo que deve ser harmonizado com os interesses públicos subjacentes à relação jurídica processual. Essa disponibilidade abrange não apenas o direito material, mas, também, a condução e a adequação do procedimento388.

Quanto ao aspecto concernente à adequação do procedimento, fala-se em princípio do debate ou princípio dispositivo em sentido processual. Tal princípio, de cunho técnico e sem fundamento constitucional rígido (o princípio dispositivo tem cunho político e base constitucional, já apresentada), apresenta uma opção legislativa entre conferir ao juiz a exclusividade na condução do processo ou estimular o empoderamento das partes nesse mister. Se as partes detêm autorização legal para escolhas procedimentais, não se lhes pode ser obstada a possibilidade de sobre elas convencionar. Essa tendência de ampliação da autonomia das partes no campo processual é mundial389.

Além do princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo, merece exame, ainda, a relação da cláusula geral da atipicidade da negociação processual com o princípio da cooperação, visto como um segundo fundamento infraconstitucional da

387 SARLET, Ingo Wolfgang; VALE, André Rufino do. Direito geral de liberdade. In: CANOTILHO, J.J.

Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 218-219.

388 CABRAL, Antônio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 138-139. 389 CABRAL, Antônio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 140-141.

mencionada cláusula aberta390.

2.3.2.1 Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo

Por autorregramento da vontade ou autonomia da vontade ou autonomia privada há de se entender a possibilidade de se conferir à vontade o status de elemento nuclear do suporte

390

Apontando a cláusula geral de negociação processual prevista no CPC/2015 como expressão do princípio da cooperação, norma fundamental processual prevista no art. 6º do diploma processual civil: VIANA, Salomão. O projeto do novo CPC e o modelo de organização processual escolhido pelo legislador: considerações sobre as normas fundamentais enunciadas nos arts. 2º, 4º, 5º, 7º, 8º e 9º. In: FREIRE, Alexandre et al. (org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Salvador: Juspodivm, 2014, v. 3, p. 660. Marcela Câmara afirma que o ponto de equilíbrio entre ativismo judicial e autonomia das partes reside no diálogo participativo entre partes e juiz, à luz de um modelo cooperativo de processo (CÂMARA, Marcela Regina Pereira. A contratualização do processo civil? Revista de processo, São Paulo, n. 194, abr./2011, p. 406). Cuidando especificamente do calendário processual (art. 191 do CPC/2015) e indicando que tal instituto enfatiza a cooperação processual: ANDRADE, Erico. As novas perspectivas do gerenciamento e da “contratualização” do processo. Revista de processo, São Paulo, n. 193, mar./2011, p. 186; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Reflexo das convenções em matéria processual nos atos judiciais. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 231. Quanto à execução negociada de políticas públicas e sua intrínseca relação com o princípio da cooperação (a ponto de ser considerada verdadeira “execução complexa cooperativa”), conferir: COSTA, Eduardo José da Fonseca. A “execução negociada” de políticas públicas em juízo. Revista de processo, São Paulo, n. 212, p. 25-56, out./2012, p. 41-42. Também promovem associação entre a negociação processual, de um modo geral, e a cooperação processual, por todos: CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 47-49; CADIET, Loïc. La qualification juridique des accords processuels. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 103; CADIET, Loïc. Los acuerdos procesales em derecho francés: situación actual de la contractualización del processo y de la justicia en Francia. Civil Procedure Review, v. 03, n. 03, ago.-dez./2012, p. 18. Disponível em <www.civilprocedurereview.com>. Acesso em 10/07/2015 (o autor chega a afirmar que os acordos relativos a processo existente seriam “a expressão mais perfeita do modelo de processo cooperativo”); CABRAL, Antônio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 166, 171 e 193, por exemplo; DIDIER JUNIOR, Fredie. Princípio do autorregramento da vontade no processo civil. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 25; SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER NETTO, Theobaldo. A boa-fé e a cooperação previstas no PL 8.046/2010 (novo CPC) como princípios viabilizadores de um tratamento adequado dos conflitos judiciais. Revista de processo, São Paulo, n. 230, abr./2014, p. 26-27; YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 80; CAMBI, Eduardo; NEVES, Aline Regina das. Flexibilização procedimental no novo Código de Processo Civil. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (coord.); MACEDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.). Novo CPC doutrina selecionada. Salvador, Juspodivm, 2015, v. 1, p. 509; MÜLLER, Julio Guilherme. A negociação no Novo Código de Processo Civil: novas perspectivas para a conciliação, para a mediação e para as convenções processuais. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (coord.); MACEDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.). Novo CPC doutrina selecionada. Salvador, Juspodivm, 2015, v. 1, p. 1103; AVELINO, Murilo Teixeira. Sobre a atipicidade dos negócios processuais e a hipótese típica de calendarização. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (coord.); MACEDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.). Novo CPC doutrina selecionada. Salvador, Juspodivm, 2015, v. 1, p. 1114-1115; THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 289 e 300; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Sobre os acordos de procedimento no processo civil brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p 91-92 (conclui-se que o autor faz tal relação porquanto explicita que os acordos procedimentais “valorizam o diálogo entre o juiz e as partes”).

fático de regras jurídicas, operando-se, pela incidência, a conversão, em jurídicos, de atos humanos voluntários. Consectário da liberdade, o autorregramento da vontade pode ser evidenciado em todo e qualquer ramo do Direito, seja ele público ou privado, variando, apenas, o grau dos limites estabelecidos pelo ordenamento, dentro dos quais reside o espaço conferido à vontade para atuar391.

Fala-se, pois, na seara processual, em princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo, integrante do conteúdo eficacial do direito fundamental à liberdade e relacionado, ainda, ao princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo objetiva assegurar às partes que o direito fundamental de autorregular-se (disciplinando suas condutas processuais) seja por elas exercido sem a imposição de restrições irrazoáveis ou injustificadas, resguardando-se, em última análise, o direito fundamental à liberdade392.

Embora não previsto expressamente no Código de Processo Civil de 2015393, deve ser inserido no rol de normas fundamentais do processo civil, tratando-se de princípio implicitamente previsto no aludido diploma processual394 e que demonstra, de modo irretorquível, a superação do dogma da irrelevância da vontade no processo. Mesmo nos ramos do Direito tradicionalmente vinculados ao Direito Público, a liberdade há de ser a regra e os limites impostos pelo Poder Público, a exceção.

O autorregramento da vontade constitui-se de poderes, cujo exercício dá concretude aos chamados atos negociais. A incidência da norma jurídica sobre eles dá ensejo às situações jurídicas. Vislumbra-se o poder de autorregramento nas liberdades de negociação, de criação de modelos negociais atípicos, de estipulação do conteúdo do negócio e de vinculação

391 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954,

t. 3, p. 55-56.

392 DIDIER JUNIOR, Fredie. Princípio do autorregramento da vontade no processo civil. In: CABRAL, Antonio

do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 20-23. No mesmo sentido, admitindo a existência, no Direito Processual Civil brasileiro, do propalado princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo: CABRAL, Antônio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 142-143; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p.49; LIPIANI, Julia; SIQUEIRA, Marília. O saneamento consensual. In: DIDIER JUNIOR, Fredie (coord.); MACEDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (org.). Novo CPC doutrina selecionada. Salvador, Juspodivm, 2015, v. 2, p. 214.

393

Extraindo tal princípio da análise conjunta dos arts. 190 e 200 do CPC: REDONDO, Bruno Garcia. Negócios processuais: necessidade de rompimento radical com o sistema do CPC/1973 para a adequada compreensão da inovação do CPC/2015 In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 274.

394 DIDIER JUNIOR, Fredie. Princípio do autorregramento da vontade no processo civil. In: CABRAL, Antonio

(celebrar ou não o negócio)395.

Naturalmente, o autorregramento da vontade no processo submete-se a restrições e limites maiores do que o subprincípio consectário no Direito Privado, limites estes fixados, sobretudo, legislativamente396. E no campo das convenções em matéria de processo, há, ainda, uma gradação desses limites, que serão maiores nos acordos processuais que versem sobre o procedimento (uma vez que afetam a atuação estatal), se comparados com os limites impostos às convenções que têm por objeto situações jurídicas processuais. Mas, em todos os casos, a regra é a liberdade e a exceção, o limite, que há de ser proporcional e razoável.

O art. 190 do CPC/2015 integra o microssistema de proteção do princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo, ao lado de outros dispositivos, a exemplo dos que estabelecem o estímulo à autocomposição como forma de solução do litígio (arts. 165 a 175, 334, 515, III e§2º, 695 e 725, VIII); a primazia da vontade da parte na delimitação do objeto litigioso do processo e no objeto do recurso (arts. 141, 490, 1002 e 1013); a previsão de inúmeros negócios processuais típicos (ex.: arts. 63, 65, 191, 225, 313, II, 337, §6º, 357, §2º, 362, I, 373, §§3º e 4º, 471, 775, 998, 999 e 1000); e a consagração do princípio da cooperação (art. 6º). Fora do âmbito do CPC, cabe menção à arbitragem, que também claramente valoriza um modelo de processo negociado397.

2.3.2.2 Princípio da cooperação

O princípio da cooperação foi previsto no art. 6º do CPC/2015398 como uma das normas fundamentais do processo civil brasileiro. Referido dispositivo, em verdade, exerce duas funções relevantes no ordenamento jurídico-processual pátrio: a primeira delas é a de estruturar o processo civil brasileiro sob o modelo cooperativo e a segunda, a de firmar o

395 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, v.2, p. 80-81; DIDIER

JUNIOR, Fredie. Princípio do autorregramento da vontade no processo civil. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 20. Leonardo Carneiro da Cunha intitula tais liberdades, respectivamente, como autodeterminação, autarquia, autorregulação e autovinculação (CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 29).

396

DIDIER JUNIOR, Fredie. Princípio do autorregramento da vontade no processo civil. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 22.

397 DIDIER JUNIOR, Fredie. Princípio do autorregramento da vontade no processo civil. In: CABRAL, Antonio

do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 23-25.

398 “Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável,

funcionamento do sistema processual a partir do princípio da cooperação399.

O modelo cooperativo apresenta-se como uma tentativa de equilibrar as tendências opostas traduzidas pelos modelos adversarial e inquisitivo, conduzindo partes e juiz a um debate paritário em derredor do litígio, sem protagonismos entre os sujeitos processuais, salvo no momento de o magistrado proferir a decisão judicial. Traduz-se em nova visão, policêntrica400, acerca das relações entre partes e juiz, uma nova forma de divisão de trabalho entre os citados sujeitos processuais, propícia ao desenvolvimento de uma teoria dos negócios processuais401, por enfatizar o diálogo e a participação democrática.

Sob o influxo do modelo cooperativo de processo, o ordenamento processual passou a emprestar maior valor ao consenso, democratizando a função jurisdicional ao redimensionar o papel do Judiciário, que passa a ser uma esfera de resolução de conflitos e não apenas de julgamento402. Nesse sentido, o gerenciamento processual levado a efeito pelas partes é também medida de democratização do processo, já que pressupõe cooperação entre partes e juiz na delimitação da forma de condução do feito403.

O modelo processual cooperativo lastreia-se no princípio da cooperação. Como princípio, a cooperação impõe um estado de coisas a ser alcançado404. Dentre os fins

399 MITIDIERO, Daniel Francisco. A colaboração como norma fundamental do novo processo civil brasileiro.

Revista do Advogado, São Paulo, n. 126, maio/2015, p. 48.

400 O policentristmo processual como decorrência da cooperação processual é destacado por THEODORO

JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 74. Os autores esclarecem que o Estado Democrático de Direito não se coaduna com a existência de um sistema processual centrado quer nas partes, quer em seus advogados, quer nos juízes (idem, p. 77), de modo que a adoção do policentrismo processual tem por objetivo afastar todo tipo de protagonismo judicial (idem, p. 79).

401 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: CABRAL,

Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 47.

402

CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 49.

403 ANDRADE, Erico. As novas perspectivas do gerenciamento e da “contratualização” do processo. Revista de

processo, São Paulo, n. 193, mar./2011, p. 188.

404 O enquadramento da cooperação (ou colaboração) processual como princípio não é tema pacífico. Na

Alemanha, Reinhard Greger defende a sua inserção nessa categoria, destacando, embora, tratar-se de posição doutrinariamente minoritária (GREGER, Reinhard. Cooperação como princípio processual. Tradução: Ronaldo Kochem. Revista de Processo, São Paulo, n. 206, abr./2012, p. 124-125). No Brasil, a temática rendeu ensejo a debate doutrinário travado entre Daniel Mitidiero e Lênio Luiz Streck, surgido a partir de posicionamento defendido pelo segundo em sua obra “Verdade e consenso”. Ao criticar o fenômeno da “positivação dos valores”, Streck afirma que ele dá azo ao surgimento de figuras indevidamente qualificadas de “princípios”, dentre as quais aponta o princípio da cooperação processual, questionando, de relação ao mesmo, acerca das condições de sua efetiva aplicabilidade e das sanções decorrentes de sua não observância, de modo a demonstrar a ausência de caráter deontológico desse “princípio” (STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 518-528). A essas perguntas Daniel Mitidiero, em sua resposta, registra que a cooperação processual é um modelo de processo civil e um princípio, volvendo-se, sob esta segunda formatação, a garantir uma conformação processual idônea ao alcance da decisão

preconizados pelo princípio da cooperação estão o combate ao desperdício, a primazia das decisões de mérito em desfavor das processuais, a busca da verdade e o emprego de técnicas executivas adequadas à efetivação dos direitos405.

Uma vez que o modelo cooperativo – e o princípio da cooperação, que lhe serve de embasamento – enfatiza o diálogo judicial e a participação democrática das partes, constata-se a umbilical relação entre ele e o autorregramento da vontade no processo. A cooperação estrutura o sistema processual de modo a que este se torne mais receptivo aos negócios jurídicos processuais, propugnando pelo respeito à atuação das partes no processo,

justa, organizando a divisão de tarefas entre as partes e o juiz. E o faz, sobretudo (mas não exclusivamente), instituindo, para o magistrado, regras de conduta. Aduz, ainda, que do desatendimento aos deveres de cooperação pode decorrer inconstitucionalidade do ato praticado, responsabilização judicial e imposição de multa à parte que se nega à colaboração (MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil como prêt-à-porter? Um convite ao diálogo para Lênio Streck. Revista de Processo, São Paulo, n. 194, abr./2011, p. 57-64). Em resposta, Streck, valendo-se da noção de panprincipiologismo (utilização desregrada do vocábulo princípio para qualificar standards interpretativos), faz extensa crítica ao posicionamento de Mitidiero (e, reflexamente, ao de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira), qualificando-o de subjetivista, ao tempo em que novamente nega o caráter deontológico ao “princípio” da cooperação, de modo que ele não seria dissociável de “um álibi teórico, de um argumento retórico ou de um enunciado performativo”. Afirma que Mitidiero, ao tentar defender a cooperação processual como princípio na acepção em que Streck adota este termo (o autor segue a linha de entendimento dworkiana, segundo a qual o princípio é uma proposta interpretativa, um padrão de julgamento, condutor da resposta correta ao caso, afastando-se, portanto, qualquer zona de discricionariedade legada ao julgador), deveria ter contextualizado o princípio historicamente e explicado seu caráter deontológico, não se limitando, segundo se infere de sua crítica, a um simples argumento de autoridade (STRECK, Lênio Luiz. Um debate com (e sobre) o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero, ou “Colaboração no processo civil” é um princípio? Revista de Processo, São Paulo, n. 213, nov./2012, p. 14-29). Para um exame do princípio da cooperação à luz da teoria dos princípios desenvolvida por Humberto Ávila (mesmo referencial teórico adotado por Daniel Mitidiero), consultar: DIDIER JUNIOR, Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra: Coimbra, 2010, p. 50-56 e BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 179-202. Também fazendo menção à cooperação (ou colaboração) processual como princípio jurídico e, pois, dotado de eficácia normativa no Brasil, por todos; SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO,

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 186-194)

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