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A constitucionalidade da cláusula geral de atipicidade da negociação processual prevista no art 190 do CPC/

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 181-186)

1 A CONSENSUALIDADE ADMINISTRATIVA NO DIREITO BRASILEIRO

2 PREMISSAS PARA A COMPREENSÃO DA CLÁUSULA GERAL DE NEGOCIAÇÃO PROCESSUAL NO CPC BRASILEIRO

2.2 PREMISSAS LÓGICO-CONCEITUAIS

2.3.1 A constitucionalidade da cláusula geral de atipicidade da negociação processual prevista no art 190 do CPC/

O questionamento referente à constitucionalidade do art. 190 do CPC/2015 apresenta-se inteiramente razoável no bojo de um sistema processual que até há muito pouco tempo lidava com a firme negativa, por boa parte da doutrina e da jurisprudência, quanto à relevância da autonomia da vontade em matéria processual.

A visão do processo tomada por paradigma no Brasil relacionava, necessariamente, a segurança jurídica à existência de normas legisladas, não dialogando de modo confortável com a participação popular, postulado do ideal democrático368. O ordenamento jurídico brasileiro construído até o advento do CPC/2015 ainda estava pautado, em grande medida, na ideia de que o preestabelecimento da forma do ato e do procedimento garantiria a contenção de arbítrios, o respeito à ordem, à segurança e à previsibilidade e a isonomia de tratamento entre as partes. Essa premissa, de difícil afastamento, condicionou a cultura processual, conferindo pouca margem de liberdade aos sujeitos processuais para que dispusessem sobre o procedimento369.

O primeiro passo para demonstrar a constitucionalidade do dispositivo em debate consiste em evidenciar a sua compatibilidade com a segurança jurídica. Humberto Ávila, ao construir o seu conceito analítico de segurança jurídica, qualifica-a como uma norma- princípio cujo aspecto material denota um estado de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade, atrelados à palavra segurança370.

A cognoscibilidade contrapõe-se à determinação, não se exigindo, para que se tenha como alcançado o estado de coisas a ser promovido pela segurança jurídica, que o cidadão tenha a capacidade de entender exatamente o conteúdo das normas gerais e individuais (determinação). Basta que lhe seja possível apreender os sentidos possíveis do texto normativo, sendo-lhe concedidos núcleos de significação a partir dos quais o sentido possa ser

368

SANTOS, Marina França. Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, São Paulo, n. 241, mar./2015, p. 95-96.

369 CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Convenções em matéria processual. Revista de Processo, São Paulo, n.

241, mar./2015, p. 494-495.

370 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed.

reconstruído, por intermédio da argumentação371.

A confiabilidade protege situações subjetivas já garantidas pelo ordenamento, resguardando as expectativas, sem, todavia, deixar de possibilitar mudanças estáveis (graduais). A noção contrapõe-se à de imutabilidade. Por fim, a calculabilidade consiste na capacidade de antever as consequências jurídicas de atos ou fatos, capacidade esta que deve ser alcançada pela maioria das pessoas. Ávila nega, portanto, que a segurança jurídica demande a previsibilidade, que corresponderia, no seu entender, à capacidade total de antever tais consequências decorrentes de condutas próprias ou alheias372.

Examinando, ainda, o termo “jurídica” da expressão “segurança jurídica”, Ávila destaca que ele representa diversas concepções, intituladas como segurança do Direito, pelo Direito, frente ao Direito, de direitos, como um direito e no Direito. A segurança do Direito resulta da construção de enunciados claros e da previsão normativa antecipada em relação ao fato a ser juridicizado; a segurança pelo Direito decorre da circunstância de ser a segurança garantida enquanto valor (direito volta-se à proteção da segurança)373.

A segurança frente ao Direito impede que a atuação estatal atinja direitos já adquiridos pelo indivíduo; a segurança de direitos protege o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido, garantindo o exercício dos direitos daí decorrentes; a segurança como um direito relaciona-se à exigência de um comportamento estatal apto a garantir a concretização adequada dos estados de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade. Finalmente, a segurança no Direito significa que a segurança jurídica não consiste em que sejam conhecidos antecipadamente os efeitos jurídicos de um ato, mas, sim, que sejam controláveis os processos de argumentação utilizados para reconstruir o alcance e o sentido dos enunciados

371 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed.

São Paulo: Malheiros, 2012, p. 128-129.

372

ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p 130-131. Mais adiante, às p. 272-273, Ávila esclarece que a calculabilidade não se circunscreve à previsão das consequências normativas de uma determinada conduta, senão que tais consequências devem ser em número reduzido e não podem ser muito discrepantes. Se a variedade de consequências for muito grande ou se, embora reduzidas, elas forem muito diversas, em verdade não há calculabilidade, mas imprevisibilidade. Esclarece-se, por oportuno, que o presente trabalho adotará o termo previsibilidade, de uso mais corrente em doutrina, sem que por ele se deva entender, como proposto por Humberto Ávila, a necessidade de antecipação total das consequências jurídicas da conduta, própria ou alheia. O termo previsibilidade será utilizado tal como Ávila entende o termo calculabilidade. A opção metodológica objetiva resguardar o uso de termo consagrado pela doutrina, conferindo-lhe significado técnico que lhe garanta utilidade prática, esta que restará esvaziada se for emprestado ao termo examinado o utópico sentido que Ávila lhe confere.

373 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed.

normativos374.

Claudio Pereira de Souza Neto afirma que a ideia de que o procedimento jurisdicional deveria ser integralmente previsto em lei decorre da necessidade de se conferir previsibilidade àquele, previsibilidade esta que se configura como uma das dimensões da segurança, ao lado da estabilidade e da redução dos riscos. Tal previsibilidade é garantida, por exemplo, pela legalidade (art. 5º, II, da CF/1988) e objetiva impedir a atuação estatal arbitrária375. Sucede que a própria noção de legalidade não pode mais ser compreendida, pura e simplesmente, como império da lei em sentido formal, concepção esta ínsita ao Estado de Direito moderno, que vislumbrava na legalidade a garantia de liberdade. O Estado Constitucional, que adveio em substituição ao Estado Legislativo, deslocou o eixo de centralidade do ordenamento jurídico da lei para a Constituição, da qual derivariam as demais fontes normativas, em relação de necessária subordinação à Carta Magna376.

A compreensão de legalidade que deve ser levada em consideração, à luz do Estado Constitucional, é a que não toma em consideração apenas um tipo normativo específico (a lei em sentido formal), mas, sim, todo o ordenamento jurídico em seu viés material. Por “lei” há de se entender “norma jurídica”, qualquer que seja a sua forma, desde que consentânea com a Constituição. A acepção de lei no dispositivo constitucional é equivalente à totalidade do ordenamento jurídico em sentido material377, aí incluídas, portanto, a norma do precedente judicial e a de origem negocial.

Remo Caponi propugna o abandono da visão autorreferenciada do sistema processual civil, viabilizando-se a sua abertura ao mundo circundante, à moda de um “pulmão aberto à experiência”. Há de se reconhecer que o princípio da legalidade sofre uma releitura no processo civil, à vista do novo contexto cultural a que se submete, distinto daquele traçado no período oitocentista. O intérprete e o aplicador do Direito Processual abandonam o papel exegeta e passam a figurar como verdadeiros coprodutores e intermediadores do sentido das

374 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed.

São Paulo: Malheiros, 2012, p. 262-263.

375 SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Segurança. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira;

SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 231.

376

MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. Comentário ao art. 5º, II. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 244.

377

MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. Comentário ao art. 5º, II. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 244-245.

normas processuais378.

Ou seja: enquadrada a norma negocial no conceito de legalidade e uma vez que a legalidade, neste sentido amplo, é capaz de conferir previsibilidade ao procedimento, a convenção das partes em matéria processual respeita o núcleo essencial do princípio da segurança jurídica. Não se admite que, sob o fundamento de ausência de previsibilidade, seja vedada a negociação em matéria processual; a imprevisibilidade porventura decorrente de um determinado acordo celebrado deve ser verificada no caso concreto, no âmbito do controle de validade da convenção realizado pelo juiz.

Por outro lado, sendo o negócio jurídico válido um ato jurídico perfeito, a segurança jurídica, representando uma segurança de direitos, deve garantir a sua concretização. E por também ser uma segurança frente ao Direito, deve obstar qualquer atuação estatal capaz de impedir, indevidamente, a aplicação de uma convenção válida. Conclui-se, de tal análise, que os negócios processuais não apenas não ferem o núcleo essencial do princípio da segurança jurídica como este se preordena a garantir a efetividade de tais negócios.

Estando o princípio da segurança jurídica relacionado, ainda, ao devido processo legal, há de se esclarecer que a ideia de que essa cláusula geral pressuporia um procedimento inteiramente disciplinado em lei não se coaduna com a atual concepção que dessa cláusula se extrai. O devido processo legal não pode ser examinado de forma desvinculada do princípio democrático, que necessariamente lhe confere uma formatação peculiar. À luz da democracia participativa, nenhum processo será “devido”, justo, sem que a ele se integre o componente da participação, sem que, enfim, represente ele um espaço de exercício democrático do poder e da autonomia da vontade, em harmonia.

Do direito de cidadania se extrai o status civilis processualis, este que reconhece o direito fundamental do cidadão de participar dos procedimentos de produção normativa, em todos os seus níveis379. A criação e a aplicação do Direito são fruto de uma atividade processual, pressupondo, para que se faça de modo correto, a participação cidadã nessas etapas. Fala-se, para além de um devido processo legal, expressão consagrada, em um devido processo constitucional de produção do Direito, para dar uma mais precisa noção dos atuais

378CAPONI, Remo. Autonomia privata e processo civile: gli accordi processuali. In: Accordi di parte e processo.

Supplemento della Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, ano LXII, nº 03, 2008, p. 118-119.

379 PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de processo, São

contornos que a garantia deve abranger380.

Diante desse contexto, a tendência à ampliação da autonomia privada em matéria de processo vai ao encontro do escopo democrático de permitir uma maior participação dos particulares na atuação estatal, legando-lhes a possibilidade de construção do procedimento ao qual se submeterão, desde que, em tal tarefa, sejam respeitados os direitos fundamentais processuais. As garantias constitucionais do processo, se respeitados os seus conteúdos mínimos, não excluem a autonomia das partes em conformar o procedimento381.

A constitucionalidade do acordo em matéria processual é, pois, consentânea com o princípio do devido processo legal, desde que a convenção seja celebrada de forma livre pelas partes e que não exista disposição cogente em sentido contrário ou incompatibilidade sistemática ou pragmática, estando o pacto nos limites do escopo da atividade jurisdicional de solução de controvérsias e de concretização do ordenamento jurídico382.

Ainda em arrimo à constitucionalidade do art. 190 do CPC/2015, há de se realçar a tendência verificada, na sociedade atual, de expansão do consenso social (ordem jurídica negociada) em detrimento da autoridade (ordem jurídica imposta). No Brasil, corrobora essa tendência a adoção, no CPC/2015, de regras de contraditório participativo, de boa-fé e de cooperação, todas elas normas que advogam a primazia do diálogo em lugar da adoção de soluções unilaterais383.

Acresça-se, ainda, que os negócios jurídicos processuais democratizam o processo, uma vez que o transformam em ambiente de diálogo efetivo e de cooperação384. A se levar em consideração que o ordenamento jurídico pátrio admite a flexibilização procedimental judicial, como forma de o magistrado adequar o rito às peculiaridades do caso concreto,

380

PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de processo, São Paulo, ano 26, n. 102, abr.-jun./2001, p. 58-59.

381 Defendendo, com tal fundamento, a constitucionalidade do art. 190 do CPC/2015: SANTOS, Marina França.

Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, São Paulo, n. 241, mar./2015, p. 104. Essa negociação acerca do procedimento é vista pela autora como decorrência dos princípios constitucionais do acesso à justiça e do devido processo legal, na medida em que concretiza o princípio da adequação do procedimento, adaptando o rito à realidade – e às necessidades – do direito material (idem, p. 105). De igual modo, Bruno Garcia Redondo afirma que, diante da ineficiência, inefetividade ou inadequação do rito previsto em lei, o princípio do devido processo legal passaria ele mesmo a demandar, para a sua correta concretização, a flexibilização procedimental no caso concreto, com vistas a garantir um meio efetivo (procedimento) ao alcance do fim perseguido (tutela jurisdicional) (REDONDO, Bruno Garcia. Devido processo “legal” e flexibilização do procedimento pelo juiz e pelas partes. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 130, jan./2014, p. 15-16).

382 MACEDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi de Medeiros. Negócio processual acerca da distribuição do ônus

da prova. Revista de Processo, São Paulo, n. 241, mar./2015, p. 472.

383

CABRAL, Antônio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 165-166.

384 DUARTE, Antonio Aurélio Abi Ramia. Negócios processuais e seus novos desafios. Revista dos Tribunais,

garantindo, assim, uma duração razoável do processo e maior efetividade na prestação jurisdicional, maior razão para que se reconheça a autonomia da vontade das partes nesse âmbito. A flexibilização procedimental voluntária385 mais bem concretiza o ideal democrático, se comparada com a flexibilização procedimental levada a efeito pelo juiz.

Há, portanto, compatibilidade entre a liberdade de conformação negocial do procedimento prevista pelo art. 190 do CPC/2015 e a Constituição Federal de 1988, seja por se coadunar com os princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, seja por realizar o ideal de participação popular na gestão da coisa pública, ínsito ao princípio democrático.

No documento Convenções processuais e poder público (páginas 181-186)

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