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2.2 JESUS CRISTO ENQUANTO SALVADOR

2.2.3 A salvação: reino universal

O processo da encarnação vislumbra os primeiros toques de um Deus que salva pelas margens da história. Pede ingresso de entrada pelas portas dos fundos da sociedade, fora dos comandos de poderes imperiais. A novidade da revelação anunciada por Jesus aparecerá no anúncio do reinado de Deus. Atualmente, existe um consenso, entre exegetas e teólogos, de que o Reino de Deus se constitui no mais central da vida de Jesus.259 Antonio Manzatto, entre outros, afirma: “Jesus viveu pregando o Reino e por causa dele foi preso, torturado, julgado e morto; a razão histórica de sua morte se encontra na sua referência ao Reino de Deus, e é exatamente nessa mesma perspectiva que a comunidade crente compreende sua ressurreição”.260

O consenso em relação à centralidade do reino de Deus diverge, no entanto, em seu significado. Até porque não existe uma definição nas Sagradas Escrituras, o que acarreta a necessidade de um método de averiguação. Jon Sobrino percorre três vias de averiguação: a via nocional, a via do destinatário e a via da prática de Jesus.261 A pergunta pelos destinatários

257

Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 115-116.

258 Monofisismo (do grego: monos – “único, singular” e physis – “natureza”). Trata-se de um dos problemas dos

primeiros séculos da Igreja sobre a compreensão da união do divino e do humano na encarnação histórica. Segundo este entendimento herético, Jesus Cristo, como encarnação do Filho ou Verbo (Logos) de Deus, teria apenas uma única “natureza”, a divina, e não as duas naturezas: humana e divina.

259 Os teólogos podem divergir em relação à quantidade de vezes em que a expressão Reino de Deus aparece nos

Evangelhos, mas são unânimes em atestar sua absoluta centralidade. Julio Lois diz que a expressão aparece 104 vezes nos Evangelhos. Cristologia en la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 1, p. 234; José I. Gonzálvez Faus fala de 134 vezes no NT e, destas, 104 nos Evangelhos. Acesso a Jesus, p. 35; José A. Pagola 120 vezes nos sinóticos. Jesus: aproximação histórica, p. 115, nota 12; Leonardo Boff diz existirem 120 ocorrências no Evangelho, sendo 90 na boca de Jesus. Jesus Cristo Libertador, p. 40; e Joseph Ratzinger constata a existência de 122 e, destas, 99 estão nos sinóticos e 90 pertencem às palavras de Jesus. Jesus de Nazaré, p. 58.

260 MANZATTO, Antonio. Jesus Cristo, p. 54.

261 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 109. Jon Sobrino diz que estas são três vias metodológicas possíveis

do anúncio do Reino de Deus realizado por Jesus se sustenta em três compreensões, segundo Manzatto. Uma que aparece como válida para todos: o reino de Deus é um anúncio para todos. Que o convite é aberto a todos, mostra-se verdadeiro no anúncio do reino de Deus, mas, que nem todos acolheram da mesma maneira também é uma sentença bíblica: Jesus veio para os seus, mas os seus não o receberam (cf. Jo 1,11). Referindo-se ao reino para todos, afirma ser uma resposta já trabalhada teológica-pastoralmente, mas não se mostra o “critério fundamental que determina os destinatários do Reino, podendo até mesmo ocultá-lo”. Outra resposta dirá: o reino é para os bons, os que cumprem as obrigações e estão em dia com as normas, sobretudo as religiosas. Essa compreensão que satisfaz às elites e detentores dos poderes estabelecidos, mas é um caminho que foi condenado pelos evangelhos, pois “não basta dizer Senhor, Senhor ou ser filhos de Abraão” (cf. Mt 3,9), e que foi criticado pelo Papa como neopelagianismo (cf. GE 35). A terceira resposta vem diretamente do evangelista São Lucas, quando narra: o Espírito Santo veio sobre Jesus e o consagrou pela unção para evangelizar os pobres (cf. Lc 4,16). Na compreensão de Manzatto, por ser destinado aos pobres, o anúncio é dirigido às periferias do mundo e se faz entre os esquecidos da sociedade, mostrando que os últimos deste mundo são os preferidos de Deus (cf. Mt 20,16).262

Essa compreensão do reino de Deus incorporando, em primeiro lugar, os pobres e esquecidos da sociedade, enfumaça a sua própria aceitação. Na avaliação de Jon Sobrino, a dificuldade principal para aceitar a centralidade do Reino consiste em que este não apenas remete a Jesus de Nazaré, mas inclui, central e preferencialmente, os pobres deste mundo e com características específicas: 1) Estes pobres são a maioria, o que faz dos outros grupos a exceção; 2) Os pobres são produzidos historicamente pelos sucessivos regimes mundiais; 3) Existe uma dialética em relação aos pobres, ou seja, há pobres porque há ricos e opressores; 4) Os pobres são marginalizados e excluídos porque não preenchem os requisitos humanos dos critérios das culturas dominantes; 5) Porque os pobres questionam como nenhuma outra coisa a missão da Igreja.263

A relação dos pobres com o Deus do reino é ponto nevrálgico na cristologia e na teologia da libertação. Segundo Codina, constitui um ponto focal básico para a teologia, pois a

progressista, utiliza-se mais da via nocional; algumas utilizam também a via da prática. Mas, costuma-se ignorar a via do destinatário, fortemente atuante na teologia da libertação; daí seguirem conclusões bem diferentes (Cf. Jesus, o libertador, p. 110).

262 MANZATTO, Antonio. Jesus Cristo, p. 56. 263 SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo, p. 495.

eles foram revelados de forma especial os mistérios do Reino, ocultos aos sábios e inteligentes desse mundo (cf. Lc 10,21). Por isso, como o Servo de Javé, emitem uma luz especial para compreender o projeto de Deus, ainda que seja pelo reverso da história. “Os pobres não são somente objeto da ética social, senão lugar hermenêutico e teológico da fé, ponto focal para a estruturação de toda a teologia”.264

É significativamente alicerçado nesta base teológica que se encontra a grande novidade de Puebla, na continuação de Medellín. Os Bispos reconhecem clara e profeticamente o “potencial evangelizador dos pobres”.

O compromisso com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres, enquanto estes a interpelam constantemente, chamando-a à conversão e porque muitos deles realizam em sua vida os valores evangélicos de solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus (Pueb 1147).

O Reino, que é vida, começa já nesta vida, principalmente nos pobres, e culmina na vida eterna. Pertinente será perguntar-se pelo que os pobres e marginalizados comportam de salvação, uma vez que são também marcados pelo mistério da iniquidade. Em que sentido os pobres são ou podem ser portadores salvíficos para a humanidade? É missão da Igreja evangelizá-los, certamente, mas compreendê-los em sua dimensão salvífica é escandaloso para a fé cristã. Não obstante, é a tese que permeia esta pesquisa.