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1.3 APARECIMENTO DO AMOR DE DEUS: POBRES E INSIGNIFICANTES

1.3.2 Inserção das comunidades cristãs (CEBs)

Colocar a cátedra teológica entre e com os pobres é algo originário da teologia da libertação. Por conseguinte, a experiência das inserções nas comunidades, no meio dos pobres, a presença dos teólogos nas comunidades e o surgimento das CEBs têm sintonia intrínseca com a teologia da libertação. A teologia da libertação precisa manter-se vinculada com as CEBs, porque, por um lado, as CEBs “são a expressão do povo pobre e oprimido no caminho de libertação. São em grande parte a matriz dessa reflexão de fé”.120

Por outro lado, é de natureza fecunda dessa teologia estar banhado na realidade das comunidades cristãs. Manter esse vínculo contribui para a experiência de fé dos cristãos e para os teólogos é pertinência testemunhal.

É na prática das CEBs que o discurso teológico ganha em envergadura. Sua origem se fixa com a Conferência de Medellín, como um novo modo de ser Igreja. As CEBs, na definição dada por Medellín, significam:

A vivência da comunhão a que foi chamado, o cristão deve encontrá-la na “comunidade de base”: ou seja, em uma comunidade local ou ambiental, que corresponda à realidade de um grupo homogêneo e que tenha uma dimensão tal que permita a convivência pessoal fraterna entre seus membros. [...]. A comunidade cristã de base é, assim, o primeiro e fundamental núcleo eclesial, que deve em seu próprio nível responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também do culto que é sua expressão. Ela é, pois, célula inicial da estrutura eclesial e foco de

119 Cf. MÜLLER, Gerhard Ludwig; GUTIÉRREZ, Gustavo. Ao lado dos pobres, p. 69.

120 MARTINEZ MAQUEO, Socorro; SÁNCHEZ, José. Interpelações das jornadas teológicas regionais. In:

evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção humana e do desenvolvimento.121

Essa passagem oferece uma definição teológica do que deve ser as CEBs, segundo o sociólogo Pedro A. Ribeiro de Oliveira. “Esta é, evidentemente, uma definição teológica do que deve ser as CEBs com seus elementos constitutivos: a relação de comunidade, a vivência da fé, a responsabilidade acerca do culto, a evangelização e a promoção humana”.122 A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1982, retoma a perspectiva aberta por Medellín:

Isso não quer dizer, porém, que as CEBs sejam um novo movimento de leigos. A CEB não é um movimento, é nova forma de ser Igreja. É a primeira célula do grande organismo eclesial ou, como diz Medellín, “a célula inicial de estruturação eclesial”. Como Igreja, a CEBs guarda as características fundamentais que Cristo quis dar à comunidade eclesial. A CEBs é uma maneira nova de realizar a mesma comunidade eclesial que é o Corpo de Cristo. Por isso mesmo, o ministério pastoral ou hierárquico faz parte das CEBs.123

Na verdade, é bom reconhecer que as CEBs não foram uma criação da Igreja da América Latina. Segundo o teólogo Agenor Brighenti, enquanto eclesiogênese se alicerçam na “experiência paradigmática da Igreja primitiva, organizada em domus eclesiae, toda ela ministerial, inserida no seio da sociedade secular, em perspectiva profética. O martírio é a mais contundente prova de sua proposta transformadora”.124 Na América Latina as CEBs ganharam fôlego, sobretudo em países, como Brasil, Panamá, Chile e outros. Foram verdadeiras sementeiras de novas comunidades cristãs, assumidas e recomendadas pelos Bispos. A exemplo das primeiras comunidades primitivas, o centro está na Palavra de Deus e, nas CEBs, em forma de leitura popular da Bíblia,125 como também na inserção profética diante de uma sociedade marcada pela injustiça institucionalizada e grandes tensões, tanto no seio da Igreja quanto dos Estados sob os regimes das ditaduras militares. No entanto, muito

121 Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano Conclusões de Medellín. III. Orientações pastorais.

Comunidades cristãs de base. Letra A.

122 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Comunidades eclesiales de base: red de comunidades. In: PRADA, Óscar

Elizalde; HERMANO, Rosario; GARCÍA, Deysi Moreno (org.). Iglesia que camina con espíritu y desde los pobres, p. 176.

123 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. As Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do

Brasil, n. 79.

124

BRIGHENTI, Agenor. Documento de Aparecida: o ‘texto original’, o ‘texto oficial’ e o Papa Francisco. In: BRIGHENTI, Agenor (org.). Os ventos sopram do Sul: o Papa Francisco e a nova conjuntura eclesial, p. 206.

125 Esse tipo de leitura bíblica foi popularizado e amplamente divulgado pelos roteiros dos círculos bíblicos,

cedo sobrevieram as desconfianças. Com Puebla, os setores mais conservadores da Igreja se contrapuseram a esse novo modo de ser Igreja, acusando as CEBs de construírem uma Igreja popular contraposta à hierarquia, bem como de politizar a fé. Na conferência de Santo Domingo propagam-se os movimentos de apostolado de classe média como a nova primavera da Igreja, respaldado por uma determinada nova evangelização, em perspectiva de neocristandade.126

Essa constatação de freamento, mudança de perspectiva, também é reconhecida pelo sociólogo Pedro de Oliveira. Para Oliveira, a partir dos anos 1980, quando ocorreu uma mudança, com o pontificado de João Paulo II e Bento XVI, esses reforçam a centralidade romana em detrimento das conferências episcopais, revigoram as paróquias em detrimento das CEBs e darão todo o apoio aos movimentos eclesiais em detrimento das pastorais sociais. Com esse modelo de Igreja, em que as decisões se encontram centralizadas no clero, as CEBs perderam espaço. Para sobreviver, tornaram-se uma espécie de movimento eclesial que se assemelha a outros movimentos, congregam as pessoas a partir de um mesmo caminho espiritual, nesse caso, a espiritualidade ligada aos pobres e sua libertação.127

A grata surpresa na Conferência de Aparecida “foi o resgate das CEBs, reconhecendo seu valor e recomendando seu reimpulso em todo o Continente”. Entretanto, segundo Brighenti, “os censores fizeram mudanças substanciais no ‘texto original’ a respeito”. Esse autor mostra as alterações comparando os textos e assinalando seu enfraquecimento por causa das mudanças realizadas. Da mesma forma, retoma as contribuições de Papa Francisco no resgate da riqueza que as CEBs suscitam. Se, para os censores, as CEBs pervertem o magistério, não estão em comunhão com a paróquia e os movimentos devem ter mais destaque, para Francisco, as CEBs combatem o clericalismo e renovam a paróquia e são uma riqueza que o Espírito suscita. Pela primeira vez na já longa história dos intereclesiais das Comunidades Eclesiais de Base no Brasil, o evento tem recebido a palavra de apoio de um papa. Na Evangelii Gaudium frisa ser necessário:

reconhecer que, se uma parte do nosso povo batizado não sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas com clima pouco acolhedor nalgumas das nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos povos. Em

126

Cf. BRIGHENTI, Agenor. Documento de Aparecida: o ‘texto original’, o ‘texto oficial’ e o Papa Francisco. In. BRIGHENTI, Agenor (org.). Os ventos sopram do Sul, p. 206-207.

127 Cf. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Comunidades eclesiales de base: red de comunidades. In: PRADA,

Óscar Elizalde; HERMANO, Rosario; GARCÍA, Deysi Moreno (org.). Iglesia que camina con espíritu y desde los pobres, p. 178.

muitas partes, predomina o aspecto administrativo sobre o pastoral, bem como uma sacramentalização sem outras formas de evangelização (EG 63).

Essas afirmações de Francisco, na compreensão de Brighenti, são descritas na direção da validade das CEBs. Diante de suas preocupações com a falta de pertença, estruturas pouco acolhedoras, burocracias, o administrativo sobrepondo o pastoral e sacramental, a evangelização estaria no caminho das CEBs? Constituem-se comunidades cristãs mais leves, que possibilitam um clima mais familiar e acolhedor, com menos burocracias, mais fraternas, menos sacramentalista e mais evangelizadoras? Ao falar de uma pastoral em conversão, Francisco se reporta às CEBs como “uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e setores [...] trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja” (EG 29).

Dessa forma, Francisco dá impulso renovador para a força vital das CEBs: um modo de ser Igreja. Esse modo encontra-se muito bem descrito pelo teólogo Ronaldo Muñoz. Descreve com autenticidade algumas notas desta experiência popular de Deus e das Igrejas que se cristalizam nas CEBs: diante das necessidades básicas do povo que sofre e luta pela vida e das exigências de solidariedade, as CEBs oferecem a imagem de uma Igreja samaritana que se compadece, compartilha e cura. Diante da necessidade tão humana de afeto e festa, as CEBs são uma Igreja lar, acolhedora, que se reconcilia e celebra, na qual cada um é responsável pelos outros. Diante da busca de Deus e do sacramento, as CEBs são uma Igreja santuário, espaço para Deus, escola de oração, que faz crescer na fé. Diante do anseio de sentido e de esperança, as CEBs são uma Igreja missionária que se faz presente, dialoga, convida a participar, lê o evangelho com a vida, anima o povo que vive na insegurança de cada dia. Diante dos direitos negados e da luta pela vida, as CEBs são uma Igreja profética que analisa atos e situações, anuncia esperança, exige conversão e vive o conflito e a perseguição.128

Mas esse recuo, também, trouxe limitações teológicas, o distanciamento dos teólogos da realidade. Não seria essa uma das causas que forçou a certo academicismo dentro do mundo teológico? O Papa Francisco tem exortado para essa realidade: não vos contenteis com uma teologia de escritório. O vosso lugar de reflexão sejam as fronteiras. Isso para que teólogos e pastores sintam o odor do povo e da rua, derramem azeite e vinho sobre as feridas

128 Cf. MUÑOZ, Ronaldo. Experiência popular de Dios y de la Iglesia. In: COMBLIN, J.; GONZÁLEZ FAUS,

das pessoas.129 Por isso, é importante questionar-se: “em quem pensamos quando fazemos teologia? Que pessoas temos diante de nós? Sem este encontro com a família, com o Povo de Deus, a teologia corre o grande risco de se tornar ideologia”.130

Esse chamamento do Papa Francisco parece ser novamente um reenvio para reavivar a atuação e inserção junto às CEBs. Para Francisco, o risco maior de ideologia está em construir uma teologia de escritório, das sacadas, ou uma Igreja de sacristia, fechada com medo do mundo. Ambas as coisas levam ao perigo histórico de sempre: o docetismo teológico e eclesial.131