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Uma possível elitização e privatização da salvação

4.1 CENTRALIDADE DA MEDIAÇÃO PARA COMPREENDER A SOTERIOLOGIA

4.2.5 Uma possível elitização e privatização da salvação

A mensagem de Jesus é uma Boa Notícia e produz salvação e libertação. Deus quer que todas as pessoas se salvem e possam chegar ao conhecimento da Verdade. A salvação, pois, é universal, implica a totalidade da história humana e todos os seres humanos. A experiência do encontro de Cristo nos pobres conduziu para a descoberta de um grande potencial humanizador e salvífico dos pobres. A salvação passa também historicamente por esse povo crucificado, que é, ao mesmo tempo, portador de uma boa notícia. Boa notícia de salvação, que é histórica e se traduz em interpelação, conversão, humanização e seguimento. O povo crucificado é aquele escolhido por Deus para continuar a obra salvífica já iniciada por Jesus Cristo. Entre dar continuidade à obra de Cristo na história, e quem melhor completa o que falta à paixão de Cristo na história é o ponto fulcral da fé cristã.

A Igreja é, sem dúvida, lugar da presença salvífica de Cristo, e nela encontra-se tudo o que se precisa para a salvação, como lembra o Papa Francisco: “Na Igreja, santa e formada por pecadores, encontrarás tudo o que precisas para crescer rumo à santidade”. Porque, o Senhor acumulou-a de dons com a “Palavra, os Sacramentos, os santuários, a vida das comunidades, o testemunho dos santos e uma beleza multiforme que deriva do amor do Senhor” (GE 15). Para isso, jamais se pode perder de vista sua razão fundamental que é evangelizar para “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176), com a consciência de que “Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente evangelizar” (EG 174). É imperioso, portanto, deixar-se evangelizar e abertura para acolher as manifestações da graça de Deus, porque “mesmo fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita sinais da sua presença, que ajudam os próprios discípulos de Cristo” (GE 9).

Ora, nesse horizonte continua sendo não somente válido, mas exigência cristã, continuar em cada tempo e contexto descobrindo as mediações históricas pelas quais Deus continua realizando suas obras no plano de salvação. Por isso, a afirmação do povo crucificado como mediação, princípio salvífico, além de auxiliar a Igreja, porque se mostra mais autêntica e profética no cuidado com a vida dos mais fracos e oprimidos, não postula, como pensam alguns, um messianismo popular. Na verdade, enraíza cada vez mais a Igreja de

Cristo em sua essência de evangelizar os pobres, tornando-a mais una, santa, católica e apostólica.

O povo crucificado como Cristo crucificado não postula um messianismo popular. A resposta é proveniente do próprio Jon Sobrino, segundo o testemunho de Eugenio Rivas. Esse teólogo diz: “Eu escrevi a Sobrino e sua resposta foi”:

O povo crucificado implica a realidade do Servo Sofredor, coisa absolutamente real. Ele não implica nenhum messianismo dos oprimidos, mas implica algo central na tradição jesuânica: a salvação está presente na cruz, a de Jesus e na de todos. Não se trata de triunfalismo nem de messianismo, mas da experiência que fazem muitas pessoas no meio dos povos crucificados. Elas recebem a luz para ver a verdade, recebem a força para a conversão, recebem frequentemente a fé, e no cúmulo do paradoxo recebem a esperança.553

Nessa descrição de Sobrino ganha destaque: a) a realidade de um povo sofredor – algo real; b) não a um messianismo dos oprimidos, mas tem algo de salvífico, porque se refere à cruz de Jesus, conforme a tradição cristã; c) é fruto da experiência testemunhal de pessoas que receberam dos crucificados: luz para ver a verdade, força para conversão, fé e, no paradoxo, esperança.

Às vezes, em certos contextos, como da América Latina, devido à indiferença e ao baixo senso de participação nas esferas políticas e sociais, surge a falta de reconhecimento da força e do poder do povo na transformação da sociedade. Assim, o povo crucificado está mais à deriva dos mecanismos de poderes hegemônicos, do que a luta messiânica, em vista do reino de Deus anunciado por Jesus. Esse domínio, no entanto, permite reconhecer uma questão teológica importante, segundo Alberto da Silva Moreira. Por que as pessoas não se rebelam contra a injustiça e o mal que as golpeiam, pois teriam Deus do seu lado? Ora, se não fazem é “porque continuam vendo no mal um bem e no sofrimento um preço a pagar – geralmente identificado com a vontade de um deus”.554

Os aspectos considerados são importantes, mas nem por isso estão isentos de manipulações, desvios e incompreensões. Isso é sempre possível, porque existe o perigo de tudo o que é tocado pela hybris humana. Hybris atuando às vezes na capacidade do ser humano vender o justo por dinheiro e o necessitado por um par de sandálias (cf. Am 2,6); ou de fazer orações, cultos e jejum contrários à vontade de Deus (cf. Is 58,7-8).

553 RIVAS, Eugenio. Do Deus Crucificado ao Povo crucificado: A “Theologia Crucis” na Cristologia de Jon

Sobrino. Anais do 30º Congresso Internacional da Soter. Religião em reforma: 500 anos depois, p. 38.

No entanto, esses problemas apontados e suas implicações teológicas não invalidam a perspectiva fundamental: povo crucificado-princípio ou povo como continuador-sacramento de salvação. Assinalar os limites é fundamental para poder compreender adequadamente a essência de uma Soteriologia histórica que pode emergir do povo crucificado. Esse perigo não anula a convicção de fundo que segue sustentada: esse povo crucificado é eleito por Deus para continuar sua obra salvífica e ser portador de uma Soteriologia histórica.