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1.3 APARECIMENTO DO AMOR DE DEUS: POBRES E INSIGNIFICANTES

1.3.3 Método ver, julgar e agir como espiritualidade

Na metodologia de trabalho da teologia da libertação, que parte da práxis e retorna à práxis, o círculo hermenêutico das três mediações se tornou determinante. O chamado método ver, julgar e agir.132 Ali estão a mediação socioanalítica, para conhecer a realidade; a mediação hermenêutica teológico-bíblica, para discernir a realidade de forma cristã; a mediação prática, para transformar a realidade. É exigência do processo metodológico sua circulação constante, ou seja, trata-se de uma perspectiva fundamental do método, como enfatiza o teólogo Luiz C. Susin: “como é uma trindade em círculo, cada mediação influencia hermeneuticamente a outra”. Esse círculo de mediações desestabiliza “quem está convicto de que ideias elaboradas em gabinete mudam unilateralmente o mundo, esta metodologia é

129 VATICANO. Carta do Papa Francisco por ocasião do Centenário da Faculdade de Teologia da Pontifícia

Universidade Católica Argentina.

130 VATICANO. Mensagem do Papa Francisco ao congresso de teologia junto da Pontifícia Universidade

Católica argentina.

131 Doutrina existente nos séculos II e III que negava a existência de um corpo material a Jesus Cristo, que seria

apenas espírito. Traduzindo para o contexto Latino-americano Caribenho, seria uma teologia sem corpo, sem o solo dos pobres.

132 O método Ver-Julgar-Agir foi criado por Joseph Cardijn (1882-1967), fundador da Juventude Operária

Católica (JOC), para ser usado nas reuniões de militantes. Cardijn, sacerdote belga, oriundo de uma família pobre, ordenado bispo em 21 de novembro de 1965 e um dia depois nomeado Cardeal por Paulo VI, iniciou no Concílio Vaticano II o debate sobre a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, em que seguiu este método Ver- Julgar-Agir. Na América Latina e especialmente no Brasil a maioria dos documentos episcopais adotou este mesmo esquema. A uma aprimorada análise da realidade (Como é o mundo em que vivemos? Quais as causas da situação em que vivemos?) segue uma reflexão bíblico-teológica (O que Deus nos fala? Qual é o projeto de Deus para nós neste mundo?). Baseado nestes dois pilares chega-se a propostas de compromissos a serem assumidos como ações e iniciativas concretas (O que Deus quer que façamos? Quais as obrigações dos governos e congressos nacionais? Qual é a missão de cada uma, cada um e de todos nós neste mundo?).

julgada não só ingênua, mas perigosa e heterodoxa, até porque quem pensa e quem governa pela doutrina perde a hegemonia do controle da realidade”.133

Esse método foi construído em um longo caminho que teve seu nascedouro na Ação Católica Belga (JOC). Essa, tendo à frente o padre Josef León Cardijn, passou por João XXIII (Mater et magistra) e pelo Vaticano II (Gaudium et spes) e encontrou na América Latina um solo fértil de elaboração pastoral junto às pastorais de base, aos estudos bíblicos, à reflexão teológica e aos textos dos magistérios continentais e nacionais. Na encíclica Mater et

magistra, de João XXIII, fica explicado o método:

Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à luz desses princípios e diretrizes; exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: “ver, julgar e agir”.134

O método ver-julgar-agir se tornou um lugar comum nas Igrejas da América Latina e compõe sua história, sobretudo nas décadas seguintes a Medellín. Segundo João Décio Passos, “teve o mérito de favorecer a articulação concreta entre teoria e prática nos planos pastorais das Igrejas e das diversas pastorais e englobar em sua dinâmica trabalhos intelectuais e pastorais”.135 É um método que permite de forma razoável contemplar o objetivo do fazer teológico. Não é irrevogável e passou por lapidações no caminho histórico. O ponto nodal das críticas recaiu sobre a utilização de instrumentos das ciências sociais na análise da realidade, particularmente, a possibilidade de ferramentas provenientes de fontes marxistas. Dessa forma, muitos desconfiaram ou colocaram em dúvida sobre o perigo de instrumentalização social do Evangelho. Esse método, em determinados momentos, ficou abandonado por alguns documentos do magistério, como no caso de Santo Domingo.136 Esse

133 SUSIN, Luiz Carlos. Teologia da Libertação: de onde viemos, para onde vamos. Teologia da Libertação, 40

anos. Voices. Eatwot, v. 36, ed. 4, Oct/Dec 2013, p. 31.

134 VATICANO. Carta Encíclica Mater et Magistra de Sua Santidade João XXIII aos Veneráveis Irmãos

Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários do Lugar, em Paz e Comunhão com a Sé Apostólica, bem como a todo o Clero e Fiéis do Orbe Católico sobre a recente evolução da questão social à luz da doutrina cristã. 1961.

135 PASSOS, João Décio. Método Teológico, p. 50.

136 Esse método seguiu tranquilamente nas conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo com sérias

dificuldades e retorna com Aparecida. Em Santo Domingo – já dentro de outro contexto eclesial, afasta-se bastante. Segundo Beozzo, “a presidência da Conferência proibiu expressamente que as comissões apresentassem seus relatórios segundo o método Ver, Julgar e agir”. BEOZZO, José Oscar. Medellín: seu contexto em 1968 e sua relevância 50 anos depois. In: GODOY, Manoel; AQUINO JÚNIOR, Francisco de. (org.). 50 anos de Medellín, p. 15. Paradoxalmente, uma das comissões, ao tratar da pastoral da Juventude,

recuo em relação à validade do método esteve intrinsecamente ligado ao processo de involução da Igreja, sobretudo com o pontificado de João Paulo II. Em Aparecida, por exemplo, segundo avaliação de Brighenti, o método deixou a desejar. Entre as modificações e censuras, chega-se à seguinte conclusão, considerando o número 19 do documento137: “ver à luz da Providência, julgar segundo Jesus Cristo e agir a partir da Igreja, ou seja, uma teologia que não se articula a partir da experiência, da história, dos acontecimentos, dos sinais dos tempos e, portanto, a-histórica, dedutiva, é irrelevante para seu contexto”. Significa a dificuldade de “reconhecer a densidade teologal da história, da experiência humana, da vida cotidiana, dos fatos. É aquela mentalidade de que o ‘profano’ não tem nada a dizer para a Igreja e que a secularização, enquanto reconhecimento da autonomia do temporal, atenta contra o espiritual”.138

O método, no entanto, sobreviveu nas catacumbas do fazer teológico, sendo retomado oficialmente com as mudanças de direção da Igreja com Papa Francisco. Esse Pontífice tem adotado o método em suas reflexões, de modo particular em seus textos principais, imprimindo um estilo próprio. O estilo próprio, na avaliação de João Décio Passos, significa a inclusão de dois momentos que completam os três clássicos passos. O primeiro quando expõe os pressupostos teológicos do método (pressupostos eclesiais, na EG, e pressupostos bíblicos, na AL). O segundo na incorporação de um momento final dedicado à espiritualidade, o que tem sido regra de seus documentos. Esquematicamente são emoldurados assim: “pressupostos-ver-julgar-agir-espiritualidade. Há quem veja nesses passos ver-julgar-agir-

celebrar”.139 O fato é que dessa forma previne de qualquer “acusação de instrumentalização

recomenda a utilização do método e esta indicação permaneceu no texto final da Conferência. “Que abra aos adolescentes e jovens espaços da participação na Igreja. Que o processo educativo se realize através de uma pedagogia experiencial, participativa e transformadora. Que promova o protagonismo através da metodologia do ver, julgar, agir, revisar e celebrar (grifo do autor). Tal pedagogia tem de integrar o crescimento da fé no processo de crescimento humano, tendo em conta os diversos elementos, como o esporte, a festa, a música, o teatro” (SD 119).

137

“Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos, a fim de que, na vida cotidiana, vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência e a julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, e atuemos a partir da Igreja, Corpo Místico de Cristo e Sacramento universal de salvação, na propagação do Reino de Deus, que se semeia nesta terra e que frutifica plenamente no Céu” (DAp 19).

138 BRIGHENTI, Agenor. Documento de Aparecida: o ‘texto original’, o ‘texto oficial’ e o Papa Francisco. In:

BRIGHENTI, Agenor (org.). Os ventos sopram do Sul, p. 204.

139

PASSOS, João Décio. Método Teológico, p. 51. Cf. VÉLEZ CARO, Olga Consuelo. La encíclica de la conversión ecológica desde los pobres. Voices, Eatwot, v. 39, ed. 2, Jul/Dec. 2016, p. 52. Segundo Vélez Caro, a Encíclica Laudato Si´ aparece estruturada dentro do método pastoral latino-americano ver-julgar-agir. O primeiro capítulo é dedicado a “ver” a realidade; os segundo e terceiro capítulos estão focados em “julgar” essa realidade do “evangelho da criação” e de uma visão mais científica em “raiz humana da crise ecológica”. Depois

social do evangelho”.140

O próprio Francisco fala em evitar o excesso de diagnósticos, nem sempre acompanhados de propostas resolutivas e da pretensão de abarcar toda a realidade com o olhar sociológico. “O que quero oferecer situa-se mais na linha dum discernimento

evangélico” da realidade. “É o olhar do discípulo missionário que se nutre da luz e da força do

Espírito Santo” (EG 50, grifo do Papa).

Considerando a formulação do método em Francisco, João D. Passos chega à seguinte conclusão: a análise da realidade se constitui “uma função cognitiva no processo de discernimento da realidade não como postura externa à fé, mas, ao contrário, inerente ao seu exercício de discernimento dentro da história”.141 Dessa maneira, percebe-se uma metodologia que pode estar em vigência, porque “produz conhecimento e gera posturas transformadoras dentro da Igreja e, particularmente, na realidade presente”.142

Com essa metodologia teológico pastoral, Francisco recupera o método indutivo da

Gaudium et Spes (GS 4). Seus destaques e interesses pastorais utilizados na análise da

realidade deixam entrever, com facilidade, a influência da tradição teológica pastoral da América Latina. Não parte de uma eclesiologia autorreferenciada, a partir da qual deduz em automaticamente como deve ser a Igreja, o que deve dizer ou fazer no mundo. A percepção é ao inverso: desde uma postura crente, ver a realidade, identificar nela os aspectos desafiantes para a missão da Igreja. Quanto às tensões e às disputas sobre o método posterior a Medellín, na opinião de Legorreta, enriqueceram a fundamentação e importância do método indutivo frente às observações críticas e receios de alguns setores opostos a esse enfoque teológico.143