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4.1 CENTRALIDADE DA MEDIAÇÃO PARA COMPREENDER A SOTERIOLOGIA

4.2.4 O povo crucificado como o objeto de fé

O deslocamento direto ou indireto do mediador e da mediação pode conduzir outro em seu lugar. Quer dizer: o povo crucificado toma o lugar daquele que é sacramento e palavra de Deus. Se assim fosse, esse povo se tornaria o objeto da fé. Ora, o objeto da fé segue sendo Jesus Cristo e não o povo crucificado. O povo em sua realidade primária de pobreza interpela a humanidade chamando à conversão. E em sua forma de viver a pobreza com espírito, esse povo também comunica valores evangélicos humanizadores. Essas duas funções: conversão e

vivência dos valores evangélicos, não permitem, porém, considerá-los como critério absoluto de verdade nas coisas que dizem respeito à fé e à salvação.

Se o povo crucificado passou de um simples destinatário do reino, isto é, de objeto passivo de salvação, a construtor do reino e deste, a ser salvador e sujeito ativo do reino, isso não confere as credenciais para colocá-lo como um novo messias, ou como um novo objeto de fé.

Nesse aspecto é possível trazer presente a crítica severa de Clodovis Boff em relação a esse núcleo da teologia da libertação. Segundo Silvestrini Adão, o centro do debate se encontra na pergunta: “Qual o lugar de Jesus Cristo no plano salvífico, no conhecimento de Deus e, consequentemente, no método teológico?”543 A questão levantada por Clodovis fez voz estridente no cenário teológico. Não poucos teólogos544 tomaram posição para refletir e contrapor suas críticas. Duas são as questões de fundo levantadas por Boff, o método e o lugar de Jesus na salvação cristã. Ambas dizem respeito não somente à teologia de Sobrino, mas atingem o núcleo da teologia da libertação e, por isso, compreende-se a reação de diferentes teólogos.

Clodovis Boff alega que o problema central relacionado aos princípios da teologia da libertação é o fato de os teólogos terem colocado os pobres no lugar de Cristo.545 Para ele, esta ambiguidade gera equívocos e reduções, tanto teóricos quanto práticos. Isso ocorre em razão de uma “inversão do primado epistemológico”: a fé no Deus revelado seria substituída pelo pobre como “primeiro princípio operativo da teologia”.546

A teologia da libertação, no entanto, considera injusta essa acusação por parte de Clodovis Boff. Essa posição, rebatem Susin e Hammes:

pode-se partir de Cristo para chegar ao pobre, mas pode-se partir do pobre para chegar a Cristo – e à compreensão realmente cristã de Deus. Há riscos: não nos parece ser verdadeira a afirmação de Clodovis de que de Cristo sempre se chega ao pobre, mas do pobre nem sempre se chega a Cristo.547

543 SILVESTRINI ADÃO, Francys. Nossa parte da herança: os frutos de um debate teológico no Brasil. REB,

ano 74, n. 294, 2014, p. 282.

544

Para quem deseja acompanhar o debate a revista REB trouxe todas as reflexões. Como uma síntese do debate indica-se o texto de Francys Silvestrini Adão. Nesse artigo, ele analisa a questão em jogo e busca fazer um discernimento, realçando os frutos, como sugere o próprio título. (Nossa parte da herança: os frutos de um debate teológico no Brasil. REB, ano 74, n. 294, 2014, p. 264-299).

545

Cf. BOFF, Clodovis. Teologia da libertação e volta ao fundamento. REB, v. 67, n. 268, 2007, p. 1001.

546 Cf. BOFF, Clodovis. Teologia da libertação e volta ao fundamento. REB, v. 67, n. 268, 2007, p. 1004. 547 SUSIN, Luis C.; HAMMES, Érico J. A teologia da libertação e a questão de seus fundamentos: Em debate

O teólogo Leonardo Boff ressalta o cuidado para que a teologia preserve sua qualidade evangélica. “O que significa, por um lado, resgatar a dignidade dos pobres e, por outro, reconhecer a posição central que eles ocupam na vida de Jesus e seu Evangelho: pela Encarnação, Jesus e Deus não podem mais ser separados dos pobres”.548

Essa perspectiva também está de acordo com o magistério da Igreja. Segundo o Papa Francisco, Jesus revela dois rostos: “o do Pai e o do irmão. Não nos dá mais duas fórmulas ou dois preceitos; entrega- nos dois rostos, ou melhor, um só: o de Deus que se reflete em muitos, porque em cada irmão, especialmente no mais pequeno [...] e necessitado, está presente a própria imagem de Deus” (GE 61). Eis a expressão, talvez a mais forte e mais característica, do pontífice: “os pobres são a carne de Cristo”.549

“A relação absoluta com Jesus nos pobres consiste em servi-lo ao servi- los. De fazer isso ou não depende nossa sorte eterna”.550

Por isso, para Francisco, é um grave pecado instrumentalizar os pobres, que são a carne de Cristo, a fim de adquirir prestígio pessoal ou institucional.551

O que foi assinalado deixa transparecer a seriedade da questão. Mais do que uma disputa de ideias, está em jogo o núcleo da fé cristã. Fé incômoda sempre preocupada com o irmão, o pobre e oprimido. Por isso, chama à conversão e questiona os processos de alienações nas configurações históricas. As primeiras comunidades, como assinala São Paulo, decidiram não se esquecer dos pobres, e não foram por causa disso acusadas de pobrelogia, mas de fazer cristologia porque estavam centradas em Cristo Jesus. Porque, como lembra José Comblin, “os pobres não tomam o lugar de Cristo, mas eles têm um lugar especial, fundamental, central em Cristo”.552

548 BOFF, Leonardo. Pelos pobres, contra a estreiteza do método. 549

TRIGO, Pedro. Papa Francisco: expressão atualizada do Concílio Vaticano II, p. 192. Pedro Trigo recolhe diferentes discursos de Francisco, no qual explicita a relação entre a carne de Cristo, ou o rosto de Cristo com os pobres. “A vós doentes digo-vos que se não conseguis compreender o Senhor, peço ao Senhor que vos faça compreender no coração que sois a carne de Cristo, que sois Cristo Crucificado entre nós, que sois os irmãos muito próximos de Cristo. Uma coisa é olhar para um Crucifixo, outra é olhar para um homem, para uma mulher, para uma criança doentes, ou seja, crucificados ali na sua doença: são a carne viva de Cristo. / A vós voluntários, muito obrigado! Muito obrigado por empregardes o vosso tempo acariciando a carne de Cristo, servindo Cristo Crucificado, vivo. Obrigado! E também a vós médicos e enfermeiros digo obrigado”.

550

TRIGO, Pedro. Papa Francisco: expressão atualizada do Concílio Vaticano II, p. 194.

551 “Alguns apresentam-se bons, da sua boca só saem palavras sobre os pobres; outros instrumentalizam os

pobres para interesses pessoais ou do próprio grupo. Eu sei, isto é humano, mas não está bem! Não é de Jesus. E digo mais: isto é pecado! É pecado grave, porque é usar os necessitados, os que estão em dificuldades, que são a carne de Jesus, para a minha vaidade. Uso Jesus para a minha vaidade, e isto é pecado grave! Seria melhor que estas pessoas ficassem em casa!” (VATICANO. Papa Francisco. Encontro com os Pobres e os Presos. 22 de setembro de outubro de 2013).

Então, o objeto de fé continua sendo Cristo Jesus, e isso não é impedimento para o povo crucificado ser portador ou princípio de salvação, porque foi Deus que os constituiu juízes escatológicos na história.