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O caminho percorrido se propôs a considerar a Igreja dos pobres princípio norteador do discurso de João XXIII. Como essa profecia foi ganhando status teológico no caminho do magistério da Igreja e na teologia da libertação?

Por um lado, a teologia da libertação assumiu decididamente esse apelo, a partir da situação angustiosa de milhões de pobres na América Latina e fez da opção pelos pobres a coluna vertebral da fé cristã. De modo especial, com Medelín ocorre a “recepção criativa” do Concílio Vaticano II, chegando-se a estabelecer a irrupção dos pobres como fato maior para a vida eclesial. Esse caminho da opção pelos pobres seguiu seu percurso com as críticas ora provenientes de fora, porque questionava a estrutura injusta da sociedade, outras vezes se

167 Cf. MANZATTO, Antonio. A situação eclesial atual. In: GODOY, Manoel; AQUINO JÚNIOR, Francisco

acirraram os conflitos no seio da Igreja. Já em Puebla, sob o papado de João Paulo II, sua preparação foi marcada com intenso debate e o discurso manifestou muitas resistências frente à Igreja dos pobres. Não obstante, reafirma a opção pelos pobres, acrescentando, porém, a expressão “preferencial” e afirmando não ser ela nem “exclusiva nem excludente”. Tal afirmação pode reduzir essa opção a uma mera atenção especial para os pobres, transformando novamente em objeto e retirando da opção seu caráter estruturante de toda a Igreja. Na quarta conferência em Santo Domingo, o avanço conservador havia tomado força e a preparação se fez sob forte tensão. A Igreja dos pobres perde força cada vez mais, uma vez que a agenda pastoral proposta dilui a opção e seu caráter estruturante. Não obstante, a opção pelos pobres é reafirmada. Em Aparecida, agora sob o pontificado de Bento XVI, a opção volta a ganhar reconhecimento fundamental: “a opção pelos pobres está implícita na fé cristológica”. Alguns anos depois, com a eleição do Papa Francisco, a questão da “Igreja pobre e dos pobres” irrompe com vigor definitivo no Magistério da Igreja. Trata-se de uma opção teológica e esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os cristãos. Por outro lado, percebe-se como o Magistério da Igreja foi consolidando a opção pela “Igreja dos pobres” a partir do grito de João XXIII. No entanto, o caminho foi muito mais tímido e levou mais tempo para ser assumido como exigência e fator estruturante da vida da Igreja. O itinerário, de certa forma, seguiu o mesmo processo que ocorreu na teologia da libertação, mas visivelmente mais tímido. O Concílio assinalou ângulos importantes sobre a Igreja dos pobres, no entanto não se tornou prioridade, como se houvesse coisas mais importantes para priorizar na missão da Igreja naquela hora histórica. Oficialmente, coube a João Paulo II assumir o conceito da opção pelos pobres na doutrina social da Igreja. A opção pelos pobres, ainda em um sentido mitigado, ganha cidadania no Magistério do Pontifício. E o caminho subsequente se encarregará de afirmar a validade e a importância dos pobres na configuração de uma Igreja que nasce com a missão de continuar a obra de Cristo na história. Com Bento XVI, em Aparecida, a Igreja dos pobres é elevada ao status cristológico; e de modo ainda mais claro e contundente no pontificado de Francisco. A opção pelos pobres é uma opção estruturante para a Igreja, que sendo sacramento do Cristo Pobre, é a Igreja de todos, enviada para a salvação do mundo, todavia ela não pode ser outra, senão a Igreja dos pobres.

Em síntese, o caminho deste capítulo procurou mostrar como o grito de João XXIII “Igreja dos pobres” foi sendo assimilado em tempos diferentes na teologia da libertação e no magistério da Igreja. A teologia da libertação descobriu a centralidade dos pobres na vida da

Igreja, em Medellín (1968), em contrapartida, no magistério da Igreja, o seu reconhecimento definitivo ocorreu em Aparecida (2007).

2 A SALVAÇÃO CRISTÃ: ABORDAGEM EM PERSPECTIVA LATINO- AMERICANA

A salvação humana é tema central para o cristianismo, faz parte da sua identidade e constitui a sua missão. As Escrituras dizem que por meio de Cristo “a terra está habitada por uma glória” (cf. Jo 1,14), isto é, por uma oferta de salvação que conduzirá à sua consumação. João Paulo II, na Evangelium Vitae, afirma: “O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus”.168 O Papa Francisco tem chamado atenção para duas heresias antigas e em vigor no mundo de hoje que são inimigas do cristianismo: o gnosticismo e o pelagianismo (cf. GE 35). Esse retorno ao gnosticismo e ao pelagianismo, além de questionar o núcleo da salvação cristã, levanta perguntas sobre a forma como o cristianismo evangelizou. Pergunta-se pelo conteúdo da salvação cristã. Aqui, muito de acordo com a crítica proferida por Johann B. Metz, o cristianismo deslizou da centralidade do sofrimento à ênfase no pecado. Da justiça para os sofredores a uma passagem rápida à redenção dos culpados. E pergunta: “mas será que no cristianismo, não há um excesso de pensamentos soteriológicos? Não estamos colocando em risco o tema da salvação, com o abafamento da questão do sofrimento?”169

Destarte, nessas questões pertinentes, encontram-se outros gargalos na experiência cristã, como a compreensão de uma salvação dualista corpo x alma, ou mesmo, uma formulação a-histórica, deixando na penumbra o potencial salvífico das realidades terrenas. Dessa forma, a história é vista como lugar do pecado, do maligno, do que é preciso se libertar e não assumir, como fez o Verbo encarnado de Deus. Os próprios conceitos e modelos de salvação, tais como satisfação, expiação, mortificação, sacrifício, resgate e justificação, formulados pela fé e transmitidos pela doutrina cristã, atualmente, tornaram-se estranhos ao ambiente cultural.170 Por isso, a necessidade de aprofundamento, pois, como explicita a Carta da Doutrina da Fé: “o ensinamento sobre a salvação em Cristo exige sempre ser aprofundado novamente”.171

168

JOÃO PAULO II. Evangelium Vitae. Carta encíclica sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana. n. 2.

169

METZ, Johann B. A mística de olhos abertos, p. 161.

170 Cf. HACKMANN, Geraldo L. Borges. Jesus Cristo, nosso Redentor, p. 236.

171 VATICANO. Congregação para a Doutrina da Fé. Carta Placuit Deo aos Bispos da Igreja católica sobre

O capítulo que se segue, em primeiro lugar, busca averiguar a importância da salvação e sua complexidade no mundo atual. Consideram-se alguns de seus perigos nas concepções que lhes dizem respeito, como de uma salvação a-histórica, ou mediante uma concepção gnóstica e pelagiana, fatal à fé cristã, que considera a salvação como vida em abundância aberta a um mais. Em segundo lugar, em perspectiva cristológica latino-americana, examina a salvação trazida por Jesus Cristo enquanto Salvador da humanidade. A revelação do seu mistério Pascal em total disposição às pessoas da margem. “Ele (Jesus) foi sempre misericordioso para com os pobres e humildes, os doentes e os pecadores e aproximou-se dos oprimidos e dos aflitos”.172

Em terceiro lugar, a compreensão da salvação que procede do amor e não dos sacrifícios. É no amor de Cristo à humanidade que se compreende o sacrifício cristão.