• Nenhum resultado encontrado

2.1 SALVAÇÃO: TEMA COMPLEXO E NECESSÁRIO

2.1.4 Salvação: vida aberta ao “mais”

Foi mérito da teologia da libertação perceber a importância do Deus da vida em um contexto social marcado pela morte massiva e antes do tempo, esta ocorrida em razão da pobreza, o que significa, em última instância, morte física de muitas pessoas e morte cultural, por exclusão, de tantas outras. Afirmar que Deus é o “Deus da vida” aparece como uma confissão de fé: o Deus dos vivos e não dos mortos (cf. Lc 20,38). Uma decisão em favor do Deus da vida, do “amigo da vida”, como diz no livro da Sabedoria (cf. Sb 11,25).221

Como fórmula bíblica, “Deus é um Deus da vida”, é partilhada por todos. Para muitos, essa assertiva desponta como inofensiva e sem arestas. Gustavo Gutiérrez escreveu um livro com esse título:

Deus da vida. Ao expressar seus objetivos, diz: “nosso desejo é que este livro ajude a melhor

conhecer ao Deus da revelação bíblica e, consequentemente, a proclamá-lo como Deus da vida”.222

O teólogo Jung Mo Sung faz duas observações pertinentes a respeito dessa afirmação: Uma, conhecer melhor o Deus da revelação significa intuir que existem diversos caminhos para conhecer a Deus e que há várias concepções de Deus que não são compatíveis e podem ser conflitantes. Qual o Deus cristão e quais os outros deuses que são ídolos? Outra, a ligação entre Deus da revelação bíblica com Deus da vida. “Uma das grandes novidades da teologia da libertação é a sua ênfase na expressão ‘Deus da Vida’, na adjetivação do substantivo Deus”. A lógica dessa asserção é a percepção de que existem deuses da morte, ou concepções de deus que justificam sistemas de morte, exigem sacrifícios e mortes de pessoas em nome do seu poder sagrado ou da salvação, o que a Bíblia chama de idolatria.223

221

Cf. GUTIÉRREZ, Gustavo. Onde dormirão os pobres?, p. 60-61.

222 GUTIÉRREZ, Gustavo. O Deus da vida, p. 20.

223 Cf. MO SUNG, Jung. A irracionalidade da modernidade, idolatria e a Teologia da Libertação. In:

Na teologia da libertação a dimensão da vida ganha um caminho próprio, uma vez que que coloca Deus da vida no concreto da história e daí tira as consequências. Porque, se Deus é um Deus da vida, certamente é o Deus da vida humana também. Significa, então, sua vontade é vida com dignidade para todas as pessoas. Passo fundamental para comprovar: Deus é opção pelos pobres também. E dessa relação se desencadeia que a ofensa máxima a Deus está onde a vida é negada e oprimida. A conclusão, nas palavras de Hinkelammert, é: “o ato de fé em Deus é, então, afirmar a opção preferencial pelos pobres e fazer, através dela, a vontade de Deus”224

, vida para todas as pessoas.

Dessa articulação entre Deus e vida, compreende-se que o centro de tudo está no núcleo da afirmação da vida. Vida com seu caráter histórico real e concreto; e começando com as vítimas de um sistema que não dá valor à vida e não permite ao ser humano viver. A teologia tem claro que a linguagem afirmadora da vida é facilmente cooptável pelo sistema opressor. Não somente os termos podem mudar de sentido em razão das forças interpretativas, mas a própria teologia corre o risco de ser cooptada para defender interesses hegemônicos. Essa máxima percorre em toda a história do cristianismo, chegando aos nossos dias.225

Para fugir do fechamento da simples vida, mesmo que para muitas pessoas, no caso os pobres, tem como o máximo, a teologia percebeu a necessidade de abrir o conceito de vida para algo mais. Dessa maneira, sem perder o núcleo essencial da vida humana concreta, buscou-se manter uma articulação dialética – entre horizonte utópico e projetos históricos. Segundo Leonardo Boff, essa é uma relação fecunda e presente no projeto de Jesus, expresso na oração do Pai Nosso. O impulso do ser humano para o Alto. E o Pão Nosso: seu enraizamento no mundo.226 Nas palavras de Assmann, “por isso quando falamos do Deus da

Vida, falamos de uma experiência da transcendência que se relaciona com coisas muito

concretas da nossa vida e da nossa luta, mas falamos ao mesmo tempo, de um horizonte aberto de buscas e esperanças”.227

224

ASSMANN, Hugo; HINKELAMMER, Franz. A idolatria do mercado, p. 436.

225 Pode-se lembrar, nesse sentido, o valor e, ao mesmo tempo, o perigo do círculo hermenêutico. É um método

que interpreta a Palavra de Deus relacionando-a com o passado e o presente. Juan L. Segundo define seu método como a “contínua mudança de nossa interpretação da Bíblia em função das contínuas mudanças de nossa realidade presente, tanto individual quanto social” (Libertação da Teologia, p. 9).

226 BOFF, Leonardo. Desafios e horizontes da ação da Igreja no mundo. In: GODOY, Manoel; AQUINO

JÚNIOR, Francisco de (org.). 50 anos de Medellín, p. 303.

No intuito dessa abertura ao mais, a fé cristã mantém a pertinente unidade histórica do amor ao próximo com o amor a Deus. A fé como práxis efetiva comporta sempre um nexo com a corporeidade. Isto lhe confere uma dimensão social intrínseca e constitutiva. O amor de Deus não é real se desatende o amor ao próximo. Assim, a fé não pode ser reduzida à interioridade meramente subjetiva, pois ela somente existe realmente quando se efetiva na história. Para Assmann, “Cristo não nos veio pregar um reducionismo social da fé quando nos revelou que ela será testada, quanto à sua consistência subjetiva, no plano social do convívio humano”.228

Mesmo porque os verdadeiros problemas subjetivos da fé somente se fazem sentir quando incorporados à dimensão social dessa fé. A partir disso, descobre-se a fé cristã em sua referência histórica à economia, ou seja, um lugar econômico. À luz do Evangelho, denuncia-se “estruturas perversas” e “mecanismos perversos” da economia, porque são “estruturas de pecado”.229

Essa forma de compreender a salvação, a partir da vida concreta aberta a um mais, possibilita incluir na salvação cristã o cuidado das feridas abertas dos que sofrem. Segundo Jean-Guy Nadeau, a salvação bíblica diz respeito à libertação, ao corpo, à saúde, à justiça. Seu lugar não é propriamente o além ou algum lugar metafísico, mas a vida cotidiana. “A salvação entrou nesta casa”, afirma Jesus depois que Zaqueu prometeu dar a metade dos seus bens aos pobres e restituir àqueles que ele havia fraudado (cf. Lc 19,1-10). Não há nada aqui de metafísico!230

A partir da figura de Zaqueu, é ilustrativo fazer duas considerações. A primeira trata- se da importância da historicidade para a salvação cristã. O caminho salvífico, exigido por Jesus, não pode, mas, ao contrário, exige o comprometimento com a justiça. Jesus, de acordo com o evangelho, somente declara que a salvação entrou na casa depois de que Zaqueu afirmou que restituiria o que desviara, praticando, assim, a justiça com os pobres. Salvação como dom/tarefa de justiça, portanto. A mudança de conduta sinaliza a ligação entre salvação e justiça. Como intrínseca a esta aparece uma segunda questão. Ao afirmar que hoje a

salvação entrou nessa casa, não se faz em prejuízo da dimensão transcendente. É justamente

porque existe uma transcendência à frente, aberta com a ressurreição de Jesus, que permite reconhecer que esse mundo, ou ações, como as que Zaqueu fizera, estão em contradição com

228

ASSMANN, Hugo; HINKELAMMER, Franz. A idolatria do mercado, p. 427.

229 Cf. ASSMANN, Hugo; HINKELAMMER, Franz. A idolatria do mercado, p. 428.

230 NADEAU, Jean-Guy. Deus, onde está? Respeitar e cuidar do coração e da alma que sofrem. Concilium, n.

a vontade divina. Em outras palavras, a imanência e a transcendência sempre estão vinculadas, não em contradição na fé cristã.

Na avaliação de Nadeau, no campo teológico há de se reconhecer que certas interpretações reduziram as curas ou sinais de Jesus à categoria da “salvação futura, esquecendo o valor concreto dessas curas para aqueles que delas se beneficiavam. Quando Jesus cura o doente, ele também cuida de sua identidade e de sua relação com Deus”.231

Quando alguém é salvo ou restituído à perfeita saúde, não significa que não vai mais ocorrer outras desgraças, inclusive a morte. O importante é que foi salvo! O perigo maior parece ser o contrário, com a pressa e o desejo de absolutização da salvação, perde-se a realidade da vida.

Essa visão de salvação pode ajudar as pessoas que sofrem, particularmente os pobres e oprimidos, a descobrirem vestígios do divino em suas existências. Segundo Jean-Guy Nadeau, “se a salvação está sempre em ação, nem sempre ela é percebida assim. E esta ausência é desesperadora para muitas pessoas. Páscoa? Sim, nós cremos. Mas é verdadeira para os outros, não para nós”, dizia um grupo de prostitutas.232

Em razão disso, cuidar as feridas, dar pão aos famintos, salvar os oprimidos, é trabalhar para a maior glória de Deus o ser humano vivo (Santo Irineu). O ser humano é vocacionado a fazer coisas maiores, como o Senhor mesmo impele, mas isso não pode afastar de dar um copo de água a quem tem sede, ou um teto ao peregrino. Jesus foi Boa Notícia, em primeiro lugar, aos que estavam ao seu alcance. Agiu com fidelidade e justiça com os pobres e chamou de hipócritas os que amarravam pesados fardos nas costas dos outros, mas não estavam dispostos a mover sequer um dedo (cf. Mt 23,4). Portanto, como na linguagem do profeta Isaías, é preciso ter sensibilidade com a “cana rachada” (cf. Is 42,3) que, segundo Torres Queiruga, significa refazer o rosto de Deus quebrantado pela pregação, para gravar nas consciências e nas culturas o rosto verdadeiro de Deus: sempre ao nosso lado contra o sofrimento. Urge eliminar os fantasmas de uma imagem apequenadora de Deus que determina a morte, manda ou permite enfermidades, ou inclusive as tragédias. “Deus longe de aparecer como um ‘estranho em nossa casa’, é o Goel, o advogado da causa humana num mundo atormentado pelo sofrimento individual e coletivo”.233

231 NADEAU, Jean-Guy. Deus, onde está? Respeitar e cuidar do coração e da alma que sofrem. Concilium, n.

366, ed. 3, 2016, p. 119.

232

NADEAU, Jean-Guy. Deus, onde está? Respeitar e cuidar do coração e da alma que sofrem. Concilium, n. 366, ed. 3, 2016, p. 120.

233 TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a teodiceia: o dilema de Epicuro e o mito do mundo-sem-mal.

A opção da vida aberta ao mais permite contemplar todas as criaturas como imagem e semelhança de Deus, vencendo o perigo de inferiorizar algumas, particularmente, as mais frágeis e oprimidas. A primazia da vida assegura, assim, o grande sonho de Jesus da vida em abundância para todas as pessoas. À medida que mantém conectada à vontade de Deus na terra, permite que se abra sempre mais para o horizonte escatológico, sem descuidar da corporeidade. Realiza-se, dessa maneira, a comum sintonia do Pai Nosso do céu com o Pão Nosso da terra. Realidade que se expressa cabalmente no mistério pascal de Jesus Cristo.