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Caminhar com os pobres: “o evidente é tudo menos evidente”

3.5 O CAMINHO TEOLÓGICO: ELEVAR A DOR A CONCEITO TEOLOGAL

3.5.2 Caminhar com os pobres: “o evidente é tudo menos evidente”

Contrariando, os argumentos e as balizas fundacionais do próprio cristianismo, a opção pelos pobres é tudo menos evidente. Por isso, a convicção de Sobrino de que a opção pelos pobres seja assumida como opção de vida. Trata-se de compreendê-la como uma dimensão espiritual, fruto do Espírito Santo na vida cristã. E seu argumento provém de uma opção subjetiva, ou pré-compreensão que significa, segundo o autor: 1) a visão, análise e interpretação da totalidade da realidade a partir dos pobres deste mundo, com a convicção de que a partir deles se conhece, analisa e interpreta a realidade (princípio de parcialidade); 2) a prática em favor da vida dos pobres e contra sua pobreza como resposta à maior exigência ética (princípio de descentramento); 3) a esperança de que essa visão e essa prática ofereçam salvação, histórica e transcendente (princípio de salvação).455

De maneira alguma isso é específico da teologia da libertação, pois todas as teologias necessitam dessa pré-compreensão. Todavia, a teologia da libertação se diferencia, porque a opção pelos pobres recalca que na pré-compreensão deve estar “explicitamente presente também a autocompreensão práxica do ser humano, a necessidade do fazer não só a abertura ao sentido”.456

A pré-compreensão também se faz necessária para interpretar a realidade como

sinal dos tempos e não somente para compreender e interpretar os textos da Escritura.

O autor salvadorenho relaciona algumas características:

a) É algo criatural-pré-teológico e inclusive anterior à fé. Na América Latina, essa opção expressa a escolha mais primigênia diante da qual todo o ser humano precisa assumir entre dois modos de ver a vida: “em favor ou contra os pobres”; “entre fé e idolatria”, anterior a escolha entre “fé e ateísmo”. “Opção pelos pobres

454

Cf. MÁRMOL, Charo. Conversaciones con Jon Sobrino, p. 452 (tradução nossa).

455

SOBRINO, Jon. Como fazer teologia: Proposta metodológica a partir da realidade salvadorenha e latino- americana. Perspectiva Teológica, v. 21, 1989, p. 297-298.

456 SOBRINO, Jon. Como fazer teologia: Proposta metodológica a partir da realidade salvadorenha e latino-

significa então jogar-se na corrente esperançosa da humanidade, que crê que a vida dos pobres é possível e que o sentido da própria vida se decide na defesa ativa da vida dos pobres”;457

b) Opção pelos pobres como verdadeira opção. A rigor, nada obriga esta escolha. Historicamente, nada há que obriga a ela, e no que confere à fé há muitos modos de desviar-se – como mostra a história – inclusive, de trabalhar contra a opção pelos pobres. Todavia, pode-se insistir que não se trata de uma opção arbitrária e menos ainda irracional. Mesmo que tudo ocorra dentro do círculo hermenêutico, a revelação do próprio Deus vê a totalidade deste mundo a partir dos pobres. Para ser salvação plena, os pobres precisam ser salvos primariamente. Em nível histórico, a opção é sumamente razoável. Prova disso, para Sobrino, é o impacto que a teologia da libertação, apesar de todas as limitações, fez ecos sem precedentes entre cristãos e não cristãos, fiéis e infiéis, entre os seres humanos. O motivo foi porque mexeu com a ferida da realidade latino-americana. Alcançou assim algo importante – a convergência sempre difícil – de historiadores, sociólogos, educadores, filósofos, economistas, antropólogos e teólogos;

c) A opção pelos pobres exige conversão na própria tarefa teológica. Essa opção conduz à mudança nos pressupostos do fazer teológico e, consequentemente, exige mudança, conversão. O mundo dos pobres não é somente trágico, injusto, mas feito pecado. Como todo pecado, tende a ocultar-se e encobrir-se, quando não se mostra ao contrário do que é. “Escândalo e encobrimento são correlativos; se o mundo dos pobres é escândalo, a tendência será encobri-lo. E isso é tentação também para a teologia”.458

A teologia precisa de conversão? Os teólogos perceberam desde os primórdios essa necessidade, porque a preocupação primeira não estava com a teologia em si, mas com os apelos e clamores provenientes da realidade. No processo de viver a fé, juntamente com o povo pobre das comunidades – buscando superar as mazelas sociais de todas as formas – dar-se-ão conta de que o fazer teológico precisava de conversão.

457

SOBRINO, Jon. Como fazer teologia: Proposta metodológica a partir da realidade salvadorenha e latino- americana. Perspectiva Teológica, v. 21, 1989, p. 298.

458 SOBRINO, Jon. Como fazer teologia: Proposta metodológica a partir da realidade salvadorenha e latino-

É dentro dessa opção e consciência que a teologia da libertação desponta como caniço agitado pelo vento na realidade banhada de injustiças sociais. Ora, essa realidade potencializa a ser uma teologia profética. Os profetas são pessoas que “incomodam” muito na terra, porque começam “primeirar” o céu na terra, como testemunha a jornalista Tavares, ao conhecer Dom Pedro Casaldáliga. Tavares estava indo entrevistar Casaldáliga e no caminho encontrou um fazendeiro. Ao saber que ela iria conversar com ele, disse: “Arrumo um carro para te levar, mas fique sabendo que aquele bispo não vai para o céu”. “Cheguei e percebi que aí era o próprio céu”, testemunha a jornalista.459

Testemunhos assim desacomodam e ameaçam a consciência tranquila de quem está convicto de continuar no mesmo caminho de ganância e de viver de costas para os irmãos. Esse é motivo suficiente para serem eliminados da terra e forçados a não estarem no “céu”, porque continuaram incomodando os vitimadores. Um dos exemplos bíblicos encontra-se na parábola do pobre Lázaro e o rico Epulão no seio de Abraão. Lázaro desnuda, de uma vez por todas, o caminho condenatório trilhado pelo rico na terra. O pobre evidencia sua autocondenação. O triste é que, mesmo assim, os parentes do rico continuam no mesmo rumo, nem Moisés nem os profetas são ouvidos. Entende-se assim o desânimo de Jesus, ao confessar que dificilmente um rico entrará no reino do céu.

É dessa forma que a fé agindo pela caridade ganha densidade teológica na história e anuncia o evangelho ao mundo na fidelidade a Jesus Cristo. E, consequentemente, assume as exigências e paga o preço no seguimento. Segundo Sobrino, significa encarnar-se e chegar a ser carne real na história real. Significa levar a cabo uma missão, anunciar a boa notícia de reino de Deus, iniciá-lo com sinais de todo tipo e denunciar a espantosa realidade do anti- reino. Significa carregar o pecado do mundo, sem ficar somente olhando-o de fora – pecado, certamente, que continua mostrando sua maior força no fato de causar morte de milhões de seres humanos. Significa, finalmente, ressuscitar, tendo e dando vida, esperança e alegria aos outros.460

3.6 A MODO DE CONCLUSÃO

O objetivo deste capítulo foi percorrer o caminho espiritual do pensamento teológico de Jon Sobrino. A metáfora do caminho espiritual serviu de base para nosso itinerário.

459 Cf. TAVARES, Ana Helena. Um bispo contra todas as cercas: a vida e as causas de Pedro Casaldáliga, p. 22. 460 Cf. SOBRINO, Jon. O princípio Misericórdia, p. 31.

Caminho como uma dimensão teologal da realidade, porque em última instância os cristãos caminham com Deus e em definitivo para seu coração escatológico. Mas é também um caminhar humilde na história, deixando Deus ser Deus – eternamente mistério. Mistério paradoxal e escandaloso, que se revela e se oculta na história. Encarna-se na história na pessoa de Jesus, no entanto, mistério que elege amar, em primeiro lugar, os pobres e marginalizados, revelando-se como escandaloso aos sábios e entendidos.

Designou-se a esse caminhar de espiritual, porque assegura as opções fundamentais, provenientes da fé e da esperança, de trabalhar sem cessar para descer da cruz os pobres crucificados. Sem espírito não se pode trabalhar pela verdade, nem pela justiça, nem pela fraternidade. É o espírito, portanto, que vem de Jesus e não de qualquer espírito, muito menos à margem de Jesus e contra ele. Trata-se do espírito do sermão da montanha e das bem- aventuranças que, na verdade, retratam o próprio Cristo.

O percurso trilhado por Sobrino se mostra cada vez mais direcionado a compreender a relação misteriosa e íntima entre o mistério de Deus e a vida dos pobres e dos mártires da caminhada. O despertar para essa realidade está alicerçado em um duplo despertar: do sono dogmático e do sono da cruel inumanidade. O despertar do sono dogmático recebe menos ênfase na descrição, mas configurou sua primeira conversão, que o levou a profundos questionamentos. Do sono da cruel inumanidade, despertou-se para a realidade do mundo dos pobres, feitos pobres de mil maneiras. Em concreto, esse despertar foi o mais profundo e se constituiu no núcleo permanente da preocupação teológica, qual seja, elevar a realidade dos pobres ao estatuto teológico para que a teologia tenha sabor e honradez aos olhos das vítimas.

4 A SOTERIOLOGIA HISTÓRICA SEGUNDO JON SOBRINO: OS POBRES SÃO A CARNE DE CRISTO

O capítulo anterior buscou adentrar no caminho espiritual de Sobrino, a fim de compreendê-lo em sua vertente histórico-teológica. Este que se segue (4) tem por objetivo reconstruir seu pensamento soteriológico: Cristo morto e ressuscitado é o vivente e tem um corpo na história. Quem é esse corpo que cristifica a presença de Cristo na história, segundo a fé cristã, é a questão por excelência de Sobrino. Considera que responder à pergunta de quem

continua na história a missão salvífica é essencial na perspectiva da Soteriologia histórica.

Sua tese é que o povo crucificado é portador da salvação e, por isso, faz referência a uma Soteriologia histórica. Se é verdade que esse povo porta a salvação em uma linha histórica, será necessário: 1) aprofundar o significado e o conteúdo para clarear o que traz de salvação o povo e como o faz; 2) aprofundar e desenvolver a compreensão de em que sentido o povo crucificado é sacramento histórico de salvação. O que se entende por Soteriologia histórica? São questionamentos fundamentais que precisam ser esclarecidos com o objetivo de poder compreender adequadamente o que de mistério salvífico possui o povo crucificado.

A Soteriologia histórica será, pois, uma perspectiva essencial no momento de dar resposta à pergunta do como Jesus realizou a salvação da humanidade e quem continua na história a missão e a maneira de como realizá-la. Para Sobrino, tanto a salvação que é trazida por Jesus Cristo quanto a continuação na humanidade não passam fora da dimensão histórica. Como se notará mais adiante, a partir da análise realizada desde a cristologia latino- americana, essa consideração não obscurece a dimensão transcendente e escatológica da salvação. Pode-se dizer, ao contrário: ela potencializa e facilita a transcendência.

O capítulo presente é construído a partir de dois objetivos principais:

1) Aprofundar, a partir da centralidade da mediação do reino, a dimensão histórica da salvação cristã, não excluindo seu caráter transcendente. Para Sobrino, a forma como Jesus levou a cabo a salvação da humanidade e quem continua na história esse projeto salvífico inclui essa dimensão. Assim se fixando nos pressupostos cristológicos sobre os quais se estrutura o pensamento sobriniano, optou-se metodologicamente por apresentar o valor e a validez dessa Soteriologia histórica. Salvação histórica, portanto, em continuidade com uma cristologia histórica tem como eixo central o Jesus histórico e o reino de Deus. A centralidade do reino de Deus e a compreensão a

partir da cristologia latino-americana são um dos caminhos privilegiados para descobrir, por que tal cristologia não esqueceu que a salvação cristã também passa pela história da humanidade e a afeta de uma maneira específica. Essa maneira de proceder deixará claro, desde um ponto de vista determinado, a continuidade e a relação de complementariedade existente entre a cristologia e a Soteriologia.

2) Verificar, por um lado, possíveis perigos e ameaças que circundam o caminho aberto por Sobrino e Ellacuría, em relação ao povo crucificado como portador ou princípio de salvação. Por outro lado, os perigos e as ameaças contribuem para o necessário aprofundamento das bases teológicas possibilitando argumentar satisfatoriamente que o povo crucificado não ameaça a fé cristã. Ao contrário, oferece densidade teológica à realidade, ajudam a explicitar melhor a missão da Igreja e é sacramento histórico de salvação, porque faz presente Cristo.

A abordagem contempla: 1) a centralidade da mediação para compreender a Soteriologia histórica e o povo crucificado como tópico fundamental de Soteriologia cristã; 2) os perigos e ameaças de considerar o povo crucificado como princípio de salvação; 3) as bases teológicas para arguir o povo crucificado como sacramento histórico de salvação.

4.1 CENTRALIDADE DA MEDIAÇÃO PARA COMPREENDER A SOTERIOLOGIA