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2.1 SALVAÇÃO: TEMA COMPLEXO E NECESSÁRIO

2.1.2 Salvação na e da história

Tomando como base a reflexão de Ellacuría, pode-se perceber que o próprio Jesus compreende a história unificada. “Não há uma história sagrada e uma história profana, porque o Jesus histórico, recolhendo toda a riqueza da revelação veterotestamentária, veio mostrar

194 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 203.

195 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 204, nota 10. 196 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 205.

que não existe dois mundos incomunicáveis (um mundo de Deus e um mundo dos homens)”.197

O que existe, e mesmo Jesus histórico apresenta, é a distinção fundamental de graça e pecado, de história da salvação e de história da perdição. Isso dentro de uma mesma história. Mais adiante, seguindo o mesmo raciocínio, o referido autor volta a dizer: “um desses campos é, sem dúvida, o que se dá na relação contraposta de opressores e oprimidos; só o que está positivamente com os oprimidos está com Jesus, porque o que não está com os oprimidos está, por comissão ou omissão, com os opressores”.198

Segundo Ellacuría, assim, será comum na teologia da libertação perceber que a história não se divide em sagrada e profana. Ela se apresenta concebida de forma unitária, uma única história que marca a realidade, na qual Jesus é a referência qualificativa das opções assumidas. Embora a opção de Jesus seja critério de identificação das opções, o fato é que os pobres aparecem como síntese daquele que é oprimido e, portanto, torna-se o critério último. Afinal, somente está com Jesus quem está efetivamente com os pobres.199

A dimensão unitária da história é um processo que foi se aclarando cada vez mais no conjunto teológico. Seguindo a evolução bíblica, é possível perceber o avanço na hermenêutica teológica. Exemplo é a oração de Jesus para que o Pai não o tirasse do mundo, mas para que o mundo fosse um como o são o Pai e Ele (cf. Jo 17). Essa oração parte do princípio de que a graça é mais forte do que o pecado. Não nega que o pecado esteja presente no mundo, mas crê que o amor é mais forte e vencerá. Esse exemplo serve para o conjunto das narrativas bíblicas, porque não se trata de um fato isolado e sim um fio dourado presente em toda a literatura bíblica. Segundo Gutiérrez: “a fé bíblica é, antes de tudo, uma fé em um Deus que se revela em acontecimentos históricos. Um Deus que salva na história. A criação é apresentada na Bíblia não como etapa prévia para a salvação, mas inserida no processo salvífico”.200

Portanto, a ação de Deus na história e sua ação no fim da história são inseparáveis. Por isso, a ideia de um Deus criador e libertador não pode se separar dos meios históricos, porque, fora de um fato histórico, não se conhece nenhum Deus criador e libertador, como provam as narrativas bíblicas.

197 ELLACURÍA, Ignacio. La Iglesia de los pobres, sacramento historico de liberación. In: ELLACURÍA,

Ignacio; SOBRINO, Jon (org.). Mysterium Liberationis. v. 2, p. 139 (tradução nossa).

198

ELLACURÍA, Ignacio. La Iglesia de los pobres, sacramento historico de liberación. In: ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 2, p. 139 (tradução nossa).

199 Cf. ELLACURÍA, Ignacio. La Iglesia de los pobres, sacramento historico de liberación. In: ELLACURÍA, I.;

SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 2, p. 139 (tradução nossa). 200 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 206.

É dessa maneira que se chega a uma descoberta extraordinária pertencente ao próprio coração do cristianismo: o encontro com Deus na história. Conforme esclarece o teólogo Gonzalez Faus:

O encontro com Deus na história aparece como uma contribuição específica do cristianismo, quando a comparamos com outras experiências de Deus: na própria privacidade (Oriente Asiático) e na natureza (religiões ameríndias com a Pachamama e outras). O cristianismo, é claro, não nega nenhuma dessas duas maneiras de ver, mas acrescenta a presença de Deus na história, que também atua como um critério de validação para os outros dois.201

As promessas escatológicas, portanto, vão se cumprindo ao longo da história. Isso, em absoluto, não quer dizer uma identificação pura e simples com realidades sociais determinadas. Sua obra libertadora vai além do previsto e atinge novas e insuspeitadas possibilidades. A presença da ação de Deus na história traz sempre a marca das surpresas, da permanente desinstalação, coisas que o olho não viu e o ouvido não escutou, como assegura o Apóstolo São Paulo (cf. 1Cor 2,6-9). No entanto, essa constante abertura para algo mais,202 não diverge da constatação dos Bispos peruanos: “Lutar por estabelecer a justiça entre os homens é começar a ser justo diante do Senhor”.203

Este princípio, certamente, está em comunhão com o anúncio do Reino de Deus, coração da mensagem de Jesus, dom de Deus e exigência de quem acolhe. Conforme Gutiérrez: “o reinado de Deus conhece desde já realizações, mas elas não são ‘a chegada do Reino, nem toda a salvação’; são antecipações – com todas as ambivalências do caso de uma plenitude que só se dará para-além da história”.204 É fundamental, entretanto, perceber que nada fica fora da ação do Cristo e do dom do Espírito. Configura a história humana em sua unidade profunda sem qualquer escapismo. As consequências são profundas: a) Não se pode reduzir a obra da salvação ao puramente religioso; b) Nem pensar que Cristo atinge somente tangencialmente a vida cristã, não pela raiz, incorporando a ordem social; c) Não se afastar da história, na qual as pessoas e classes sociais lutam por libertar-se; d) Estar cientes de que a salvação de Cristo é uma libertação radical de toda a miséria, de toda alienação.205 Do

201 GONZÁLEZ FAUS, José I. ¿Qué queda de la Teología de la Liberación?

202 Por isso quando olhamos para Jesus esta é uma perspectiva em aberta em seu ministério. Ele faz de sua vida o

anúncio do Reino de Deus – mas não define onde e quando – segredo de Deus e fruto de sua livre decisão. Por isso, Jesus não coloca a tônica na doutrina, mas no apelo e na exortação.

203 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 206.

204 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 238, letra b (grifo do autor). 205 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 238.

contrário, aqueles que buscando salvar a obra de Cristo, eximem-se de assumir esse processo a perderão definitivamente. São, na verdade, os que professam “Senhor, Senhor [...] mas não fazem sua Vontade [...]” (cf. Mt 7,21).

Ora, o fundamental na perspectiva cristã é conceber visão integral da história (com a graça e o pecado, justiça e injustiças) e, por isso, com a convicção de que fora da história não

há salvação. É o caminho teológico aberto para fincar raízes na construção de uma

espiritualidade de libertação/salvação, que “deve ser integral, isto é, promover todos os homens e o homem todo” (GS 76). Perspectiva muito importante, mas que o cristianismo de matriz filosófica aristotélica e cartesiana eclipsou. Ao menos no Ocidente, não conseguiu livrar-se por inteiro dessa carga histórica, permanecendo como um dos desafios do fazer teológico atual. Referindo-se a essa lacuna, José M. Castillo lembra seu sério perigo para a espiritualidade. Pela sua íntima relação com a palavra espírito, muitos cristãos, ainda hoje, entendem-na como algo “que se opõe à matéria, ao corpo, àquilo que imediatamente é captado pelos olhos e que nós apalpamos, isto é, o mais sensível, o mais próximo, poderíamos inclusive dizer àquilo que é mais nosso”.206

Para detectar na prática da vida dos crentes essa lacuna, é suficiente contemplar a linguagem das orações, com fortes cores de escatologia sem história. Cristãos que marcham como peregrinos à Jerusalém celeste, sem banhar-se na concretude da história. É salutar destacar que esse problema é fruto de uma evangelização descolada das preocupações reais das pessoas de “carne e osso”. Exemplo disso é uma oração de bênção das famílias, que certamente foi usada, e continua sendo, para a bênção de milhões de lares brasileiros.

Deus eterno, que com bondade paterna não deixais de atender às nossas necessidades, derramai a abundância da vossa bênção sobre esta família e esta casa, e santificai os seus moradores, com o dom de vossa graça, para que, cumprindo os vossos mandamentos e desincumbindo-se dos encargos do tempo presente, cheguem um dia à mansão celeste para eles preparada. Por Cristo Nosso Senhor.207

Essa oração expressa a dificuldade de reconhecer a positividade da inserção e do amor de Deus presente no mundo. É importante observar os mandamentos para enfrentar o poder do mal, que são tantos e não para desincumbir-se dos empenhos no mundo. Jesus, ao contrário, historiciza o amor de Deus por meio de sua prática e direciona o juízo escatológico na relação de amor com os outros, em primeiro lugar aos pobres e doentes. Assim, testemunha que o

206 CASTILLO, José M. Espiritualidade para insatisfeitos, p. 11. 207 RITUAL de bênçãos simplificado, p. 24 (grifo nosso).

reino escatológico não se desvincula da realidade imanente, mas a incorpora na justiça do reino de Deus. Irá a Deus por intermédio do mundo, como expressou belamente Teilhard de Chardin:

Deus, naquilo que Ele tem de mais vivo e de mais encarnado, não está distante de nós, fora da esfera tangível, mas Ele nos espera a cada instante na ação, na obra do momento. Ele está, de alguma maneira, na ponta de minha caneta, de minha picareta, de meu pincel, de minha agulha, de meu coração, de meu pensamento. É fazendo progredir, até a sua última perfeição natural, o traço, o golpe, o ponto com o qual estou ocupado, que eu me apoderarei da meta última, à qual tende meu querer profundo.208

Por isso, a salvação na e da história não acontece em contradição com a dimensão escatológica da fé cristã. São dimensões que se coadunam em perspectiva diversa, mas não contraposta. A transcendência, para ser cristã, exige e remete à imanência e esta para aquela, como revela o mistério do Verbo encarnado. Como esclarece Thomas Fornet-Ponse, “é necessário passar da salvação na história para uma salvação meta-histórica, e os seres humanos podem reconhecer a autêntica salvação na história por causa da proclamação desta salvação na meta-histórica”. No entanto, é preciso manter a ordem da primeira para a segunda. Quer dizer, “a salvação autêntica na história será o primeiro e único sinal válido, compreensível aos seres humanos do que significa a salvação meta-histórica”.209