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1.2 A IRRUPÇÃO DA IGREJA DOS POBRES: ACONTECIMENTO CONCILIAR

1.2.1 Igreja pobre e dos pobres

Os pobres estão na origem, na constituição e na dinâmica do cristianismo.89 A percepção da real presença dos pobres atravessa de ponta a ponta a história do cristianismo, mas nem sempre foram assumidos ou compreendidos da mesma maneira. Na coluna vertebral das primeiras comunidades cristãs, é o testamento para não se esquecer dos pobres (cf. Gl 2,10; cf. At 2-4). Na Tradição da Igreja – os pobres passam a configurar os Vigários de Cristo; “único tesouro da Igreja” (São Lourenço). No caminho histórico houve distorções e deslocamento na maneira de se relacionar com os pobres, imprimindo, inclusive, a ideia de que ricos e pobres são frutos da providência divina. Conforme tal ideia, Deus colocou os pobres para que os ricos, com sua generosidade, ganhassem o céu e os pobres, com seu sofrimento e paciência, fossem também beneficiários do céu. A consequência é que o ser pobre vai deixando de ser imagem de Cristo para passar a ser símbolo do castigo, ou da preguiça, da insignificância, como descrito anteriormente.

Fruto dessa grande Tradição, agora no contexto do século XX, os pobres irrompem na vida da Igreja, no grito imortalizado de João XXIII: “a Igreja dos pobres”. Esse anúncio profético não ganhou cidadania no Concílio Vaticano II, como já assinalado, o chamamento

86 JEREMIAS, Joachim. Teología del Nuevo Testamento, p. 136 (grifo do autor).

87 Cf. SOBRINO, Jon. Fazer teologia em nosso tempo e em nosso lugar. In: BRIGHENTI, Agenor; HERMANO,

Rosario (org.). Teologia da libertação em prospectiva, p. 72-74.

88

FERRARO, Benedito. Pobreza da Igreja. In: MANOEL G.; AQUINO JÚNIOR, F.. (org.). 50 anos de Medellín, p. 262.

89 Cf. WANDERLEY, L. E. Pobres. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (org.). Dicionário do

de uma Igreja pobre e dos pobres ficou no silêncio, segundo Jon Sobrino. Falou-se dos pobres comedidamente, porém sobre a Igreja dos pobres se guardou silêncio. Dois magníficos textos foram aprovados que mencionam explícita ou implicitamente a Igreja. “A Igreja reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem de seu fundador pobre e paciente, esforça-se em remediar suas necessidades e, servindo-os, procurar servir a Cristo” (LG 8). “As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias [...] sobretudo dos pobres e de quantos sofrem são alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). São palavras importantes sobre a missão da Igreja e de sua espiritualidade, “porém não tocam seu ser

pobre, nem seu destino de perseguição por defender os pobres, nem que dos pobres pudesse vir a salvação”.90

A partir do Concílio Vaticano II, passando pelas quatro Conferências (Medellín em 1968, Puebla em 1979, Santo Domingo em 1992 e Aparecida em 2007), é possível perceber um processo de aprofundamento da opção pelos pobres. É em Medellín que o conceito de

pobre aparece com uma compreensão direta e profunda. Para Joerg Rieger, “a referência mais

importante a essa distinção num nível oficial pode ser encontrada na conferência de Medellín”.91

Quanto à “motivação doutrinal”, distingue três sentidos da pobreza.

1) A pobreza como carência dos bens deste mundo, necessários para uma vida humana digna é um mal em si. Os profetas a denunciam como contrária à vontade do Senhor e, muitas vezes, como fruto da injustiça e do pecado dos homens.

2) A pobreza espiritual, que é o tema dos pobres de Javé (cf. Sf 2,3; Magnifica). A pobreza espiritual é a atitude de abertura para Deus, a disponibilidade de quem tudo espera do Senhor (cf. Mt 5). Embora valorize os bens deste mundo, não se apega a eles e reconhece o valor superior dos bens do Reino (cf. Am 2,6-7; 4,1; 5,7; Jr 5,28; Mq 6,12-13; Is 10,2).

3) A pobreza como compromisso, assumida voluntariamente e por amor à condição dos necessitados deste mundo, para testemunhar o mal que ela representa e a liberdade espiritual frente aos bens do Reino. Continua, nisto, o exemplo de Cristo, que fez suas todas as consequências da condição pecadora dos homens (cf. Fl 2) e que sendo “rico se fez pobre” (2Cor 8,9) para salvar-nos.92

90

Cf. SOBRINO, Jon. Fazer teologia em nosso tempo e em nosso lugar. In: BRIGHENTI, Agenor; HERMANO, Rosario (org.). Teologia da libertação em prospectiva, p. 78-79. A mesma avaliação faz Víctor Codina. O desejo de João XXIII da Igreja dos pobres, não entrou no Vaticano II, além da GS 1 e LG 8, onde se diz: a Igreja abraça a todos os afligidos pelas debilidades humanas, além disso, reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem de seu Fundador pobre e paciente. A que se deve a esse silêncio? Para Codina, a Igreja estava preocupada com o mundo moderno da 1ª Ilustração, isto é, o mundo da racionalidade, do progresso, do desenvolvimento e tentado pelo ateísmo. O mundo da chamada 2ª Ilustração, isto é, dos pobres, da pobreza, da injustiça, do terceiro mundo, não chegou a entrar no horizonte, apesar de algumas intervenções proféticas como de Lercaro quem disse que a Igreja se distancia do Evangelho quando se distancia dos pobres e que a Igreja dos pobres teria que ser central da eclesiologia conciliar (Medellín en su contexto eclesial. REB, v. 78, n. 309, 2018, p. 73).

91 RIEGER, Joerg. Lembrar-se dos pobres: o desafio da teologia no século XXI, p. 211, nota 9. 92 MEDELLÍN. Documento 14. Pobreza da Igreja.

Das Conferências interessa considerar duas dimensões interligadas: o grito, ou clamor proveniente da realidade e a recepção ou reconhecimento por parte dos Bispos da presença de Deus nessa realidade. Coerentes com o seguimento de Jesus de Nazaré, os bispos latino- americanos afirmam em Medellín: “a Igreja não pode ficar indiferente perante as tremendas injustiças existentes na América Latina que mantém a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza e que, muitíssimos casos, chega a ser miséria humana”.93

“Um surdo clamor brota de milhões de homens (e mulheres), pedindo a seus pastores uma libertação que lhes advém de parte alguma”.94 E diante dessa realidade vem a constatação teológica: “a pobreza de tantos irmãos clama por justiça, solidariedade, testemunho, compromisso, esforço e superação para o cumprimento pleno da missão salvífica confiada por Cristo”.95

A constatação de Puebla é que “o clamor pode ter parecido surdo naquela ocasião. Agora é claro, crescente e impetuoso e, nalguns casos, ameaçador” (Pueb. 89). O reconhecimento da contradição dos cristãos: “vemos, à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres” (Pueb. 28). O encadeamento teológico é a ligação dos rostos sofridos dos pobres como os rostos de Cristo. “Esta situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor (que nos questiona e interpela)” (Pueb. 30). Enfim, “o compromisso com os pobres e oprimidos e o surgimento das Comunidades de Base ajudaram a Igreja a descobrir o potencial evangelizador dos pobres” (Pueb. 1147).

Embora com muitas contradições em Santo Domingo, a realidade é observada criticamente:

A nós, pastores, comove-nos até as entranhas ver continuamente a multidão de homens e mulheres, crianças e jovens, anciões que sofrem o insuportável peso da miséria, assim como diversas formas de exclusão social, étnica e cultural; são pessoas humanas concretas e irrepetíveis que veem seus horizontes cada vez mais fechados e sua dignidade desconhecida (SD 79).

A partir dessa realidade, os bispos afirmam teologicamente: “descobrir nos rostos sofredores dos pobres o rosto do Senhor (Mt 25,31-46) é algo que desafia todos os cristãos (e cristãs) a uma profunda conversão pessoal e eclesial” (SD 178).

93 MEDELLÍN. Pobreza da Igreja, 1. 94 MEDELLÍN. Pobreza da Igreja, 2. 95 MEDELLÍN. Pobreza da Igreja, 6.

Em Aparecida, a realidade da iniquidade e da injustiça interpela os bispos: “na globalização, a dinâmica do mercado absolutiza com facilidade a eficácia e a produtividade como valores reguladores de todas as relações humanas. Esse caráter peculiar faz da globalização um processo promotor de iniquidades e injustiças múltiplas” (DAp 61). Os bispos reconhecem a possibilidade de superação das injustiças, mas, também como em Puebla: “é uma contradição dolorosa que o Continente com o maior número de católicos seja também o de maior iniquidade social” (DAp 527). Em Aparecida, sobressai-se teologicamente a marca absoluta da opção pelos pobres. Bento XVI eleva explicitamente a opção pelos pobres como fé cristológica. “A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (cf. 2Cor 8,9)”.96

Na esteira das Conferências, surge o Papa Francisco assumindo uma postura crítica ao atual sistema em que a economia exclui, em que o dinheiro é idolatrado e a desigualdade social gera violência. Contemplando essa dura realidade, diz profeticamente: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Esta economia mata” (EG 53). O sustentáculo da opção pelos pobres é teológico: “para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica”. Deus “manifesta a sua misericórdia antes de mais” a eles (EG 198). Em consequência lógica: os cristãos são chamados, portanto, a possuir “os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus” (Fl 2,5) (EG 198).

Passando em revista as quatro Conferências Episcopais, percebe-se a experiência de Deus com os pobres e o reconhecimento da conexão íntima entre os clamores da realidade e os clamores de um Deus amigo da vida e defensor dos pobres e marginalizados. E a partir da revelação cristã, os bispos deixam entrever, segundo Elisabeth Johnson:

descer da cruz os povos crucificados, não nos enganemos, não é somente ética, embora se fosse meramente isso, já seria algo importantíssimo. Tampouco esta práxis está fundamentada unicamente na compaixão humana que sente a dor alheia e trata de aliviá-la, embora isto tem que ser valorizado enormemente. O fundamento último da práxis com os olhos postos nos pobres é nada mais, nada menos, que o Deus vivo.97

96 BENTO XVI. Discurso Inaugural da V Conferência. Aparecida, n. 3.

97 Cf. JOHNSON, Elizabeth. La búsqueda del Dios vivo: trazar las fronteras de la teología de Dios. Maliaño

Nos zigue-zagues desse fio que perpassará a pesquisa, pode-se antecipar o debate futuro que se anuncia na própria compreensão dos bispos, exposta nas Conferências. Essa é a constatação do teólogo Benedito Ferraro, ao afirmar a existência de uma crítica aos próprios bispos e padres ao não se identificar com os pobres, com seus problemas e angústias, e acabam não apoiando quem trabalha com eles. Por um lado, aqueles que veem os pobres e excluídos como objeto de misericórdia, solidariedade, atenção e cuidado. Por outro lado, aqueles que veem os pobres como novos sujeitos emergentes e apontam para novo modelo eclesial e de sociedade.98 O Papa Francisco, segundo Ferraro, aprofunda esta segunda direção:

Hoje e sempre, “os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho”, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos! (EG 48).

No entanto, como observa tristemente o historiador Eduardo Hoornaert, reconhecido em matéria de cristianismo, ao examinar a longa tensão entre a boa notícia aos pobres e a institucionalização eclesiástica, conclui que a questão dos pobres é tema “herético”.99

A própria palavra opção, segundo os esclarecimentos do teólogo Vigil, não brotou dos debates teológicos, mas das análises da realidade. Colocar-se ao lado dos oprimidos ou ao lado dos opressores, eis a questão. A palavra surgiu no seio dos militantes cristãos que, diante das urgências, postularam que era preciso optar. A partir de uma compreensão dialética

98 Cf. FERRARO, Benedito. Pobreza na Igreja. In: GODOY, Manoel; AQUINO JÚNIOR, Francisco de (org.).

50 anos de Medellín, p. 252.

99

Cf. HOORNAERT, Eduardo. Medellín, não caiu do céu. In: SUSIN, Luiz Carlos; CÉSPEDES, Geraldina (coord.). Medellín, 50 años después. Voices, v. 41, ed. 1, 2018, January/July, p. 24. Considera uma heresia pelas dificuldades de ser aceita no Magistério da Igreja. Na história da Igreja, segundo Hoornaert, a opção pelos pobres que foi determinante até o século II da era cristã, sofreu um silenciamento até o Concílio Vaticano II. A única exceção é o caso do Papa Celestino V (1294), “colocado no trono por cardeais que pensam que só um santo seria capaz de salvar a igreja. Mas Celestino não suporta o modo de vida dos cardeais e o vai-e-vem de bispos e abades que vêm a Roma, as bolsas cheias de moedas, para arranjar ‘benefícios’, isenções de impostos papais, mais terras, mais mosteiros, mais fazendas e sítios. Ele se enclausura numa pequena cela dentro de uma imensa sala do Vaticano. Só aguenta cinco meses nessa vida e retorna ao seu eremitério, deixando o cargo livre para seu usurpador, o Papa Bonifácio VIII. Tudo volta ao normal e Celestino V vira um episódio sem sequelas” (p. 25). Com João XXIII, portanto, depois de 18 séculos retoma oficialmente no cenário eclesial a opção pelos pobres. Não obstante, não ganhou prioridade com o Concílio, sendo somente assumida definitivamente em Medellín (1968). Surpreendentemente, onze anos depois em Puebla, o slogan “opção pelo pobre” já é substituído por “opção preferencial pelos pobres”. Trinta e oito anos depois, em Aparecida vira “opção não exclusiva nem excludente”. Nisso pesa a resistência silenciosa, a desatenção e o esquecimento de uma instituição que sempre tende a voltar “ao estado normal das coisas” (p. 30). No entanto, com Francisco se chega à expressão mais forte do que João XXIII, porque fala explicitamente em pobreza e na necessidade de uma Igreja pobre. “Uma Igreja pobre e para os pobres, uma Igreja que faz opção pelo pobre” (EG 198) (p. 29). Permanece o alerta: “diante dessa lei histórica, volta à memória o episódio do Papa Celestino V, que não conseguiu mudar o rumo da igreja católica, por mais radical que fosse sua opção por uma vida evangélica” (p. 30).

percebe-se que já não é possível manter a neutralidade.100 A opção impõe à consciência o dever de descobrir a importância do lugar social. O lugar de onde se olha, se age e se interpreta o mundo. Uma opção explícita descobriu que o mundo não é homogêneo e nem neutro e que uma pessoa que faz a opção pelos pobres mostra a favor de quem e de que lado está lutando, ou seja, pela causa de Jesus.101 Para Gutiérrez, a opção pelos pobres nem sempre foi bem interpretada. Com ela se quer acentuar o caráter livre e comprometedor de uma decisão. “Não é algo facultativo se entendemos que um cristão pode ou não fazer tal opção pelos pobres”. E tal opção vale para todos, inclusive os pobres devem fazer essa opção.102