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2.1 SALVAÇÃO: TEMA COMPLEXO E NECESSÁRIO

2.1.1 O tema da salvação na teologia

Uma primeira constatação ao tomar contato com o tema da salvação na teologia é seu déficit na reflexão teológica. Apesar de ser um tema muito central na vida e na fé cristã, no entanto, ressalta-se a pouca atenção recebida na elaboração teológica. Segundo Gustavo Gutiérrez, “uma das grandes carências da teologia atual é a ausência de uma reflexão profunda e lúcida sobre o tema da salvação”.186

Gutiérrez recorda que, na observação de Congar, é uma questão a respeito da qual pouco se escreveu sobre o que significa, para o mundo e para o ser humano, ser salvo. É necessário que voltemos a perguntar muito seriamente sobre a ideia que temos de salvação. “Quase não há noção teológica a implicar consequências imediatas, concretas e importantíssimas, tão vagamente tratada, e que exija, da maneira mais urgente, uma adequada elaboração”.187

Mesmo no período pós-conciliar, no qual houve um desabrochar da produção teológica, em uma ou outra área do dogma da Trindade, da cristologia, da graça, não ocorreu o mesmo com o que se refere à Soteriologia. As afirmações do Magistério que tocam este âmbito são sóbrias e escassas. Em 1989, o teólogo espanhol O. González de Cardedal afirmava:

a Soteriologia sistemática encontra-se hoje diante de uma grande quantidade de problemas. Não é casual a aparição de uma série de trabalhos que se compreendem como esboço de uma nova Soteriologia. Tem-se a impressão de ter que começar a pensar um problema com novas categorias, com nova sensibilidade, numa nova leitura da Sagrada Escritura. Em poucos campos é tão evidente a condição e limitação da linguagem teológica a que aludia a Mysterium Fidei como neste campo. As expressões teológicas anteriores, ao propor o dogma a um tempo concreto, ficaram afetadas pelas esperanças e pré-compreensões desse tempo, de tal forma que hoje não podemos reassumir essas expressões sem uma correção de acentos pressupostos e intuições.188

Entre as causas dessa defasagem na reflexão soteriológica está para Gutiérrez o longo período de preocupação com a clássica “salvação dos infiéis”.189 O importante estava na universalidade da salvação e a Igreja visível como mediadora dessa salvação. A questão relacionava-se ao número de salvos e o papel da Igreja na salvação. “Fora da Igreja não há salvação” (Extra Ecclesiam nulla salus). Este axioma recebeu mau uso na história, ao ser

186

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 199.

187 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 199-200. 188 DUCAY, Antonio. Exame da soteriologia contemporânea. 189 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 200.

desvinculado da compreensão originária oferecida por São Cipriano (ano 258). Segundo Susin, “era um chamado a não abandonar a comunidade, como quem abandona a comunidade eclesial em tempos de dificuldade e perseguição como quem abandona a arca em meio ao dilúvio”. Na cristandade se utilizou desse axioma para “uma demarcação jurídica dos que pertencem à instituição de salvação, estando todos os demais, fora da Igreja, perdidos”.190

Para Gutiérrez, a noção de salvação implicada nesse enfoque tinha dois traços: cura do pecado na vida presente, mas isso em virtude de uma salvação ultraterrena. O importante era saber como uma pessoa, estando fora da Igreja, poderia alcançar a salvação. Por vias extraordinárias, uma pessoa pode assegurar a salvação, como vida ultraterrena. A vida no presente era como prova, teste de julgamento e teria valor em relação ao fim transcendente. Tudo é situado em uma visão moralista e fixado em uma espiritualidade de evasão deste mundo. Só os canais da graça, instituídos por Deus, podem normalmente eliminar o obstáculo para alcançar a salvação.191

À medida que a universalidade da salvação e a possibilidade de alcançá-la foi ganhando terreno na consciência cristã, a compreensão da salvação deu um salto qualitativo e recebeu outro enfoque. Afirmar a universalidade da salvação é ir além da possibilidade de salvação somente aos pertencentes às fronteiras visíveis da Igreja. Chega-se ao núcleo da questão: “salvam-se aqueles que se abrem a Deus e aos outros, mesmo que não tenham clara consciência disso”.192

Perspectiva válida para cristãos e não cristãos, ou seja, para todas as pessoas. Fala-se da presença da graça – aceita ou rejeitada – em todas as pessoas, o que implica valorizar cristãmente a dimensão humana. Impede de falar com propriedade de um mundo profano. A existência humana é, em última instância, um sim ou um não ao Senhor.

Os homens já aceitam em parte a comunhão com Deus, mesmo quando não chegam a confessar explicitamente a Cristo como seu Senhor, na medida em que, movidos pela graça (LG 16), por vezes secretamente, renunciam ao próprio egoísmo e procuram criar uma autêntica fraternidade entre os homens. Não a aceitam quando se desinteressam da construção do mundo, não se abrem aos demais e voltam-se culpavelmente sobre si mesmos (Mt 25,31-46).193

190 SUSIN, Luiz C. Salvação/Libertação. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes. Dicionário do

Concílio Vaticano II, p. 869. Para um possível aprofundamento da questão pode-se conferir, entre outros: AMARAL, Miguel de Salis. “Fora da Igreja não há salvação”: A releitura que o Vaticano II fez duma famosa tese teológica, vista a 50 anos do seu início. Teocomunicação, v. 42, n. 2, 2012, p. 201-223. Cf. RABELO, Fábio Cristiano. “Fora da Igreja não há salvação”: discussão de um adágio antigo à luz da eclesiologia do Concílio Vaticano II.

191 Cf. GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 201. 192 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 202. 193 GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação, p. 202.

Nesse enfoque, ganha destaque uma nova faceta que não aparecia na perspectiva anterior. A salvação ligada à comunhão das pessoas com Deus e comunhão das pessoas entre si. Algo que ocorre, desde agora, de forma real e concretamente, que assume toda a realidade humana, a transforma e a leva à sua plenitude em Cristo. Nada fica excluído dessa plenitude de Jesus: corpo e espírito, indivíduo e sociedade, pessoa e cosmo, tempo e eternidade. Jesus, Deus-homem assume a existência humana em todas as dimensões.

Nasce, a partir disso, uma nova noção de pecado. a) Não é somente impedimento para a salvação do além; b) Enquanto ruptura com Deus, o pecado é uma realidade histórica; c) É quebra da comunhão com os seres humanos entre si; d) Fechamento sobre si mesmo. Significa, segundo Gutiérrez, perceber que “o valor absoluto da salvação, longe de desvalorizar este mundo, dá-lhe seu autêntico sentido e sua consistência própria, pois, inicialmente, dá-se nele”.194 Assim, chega-se a uma dimensão fundamental do cristianismo: a importância da historicidade no caminho da salvação. Juan L. Segundo afirma: “o cristianismo, embora concorde com as religiões de salvação extramundana em referir-se a uma salvação absoluta, delas difere por haver introduzido esse valor absoluto em meio da realidade histórica e aparentemente profana da existência do homem”.195

O ponto alto desse caminho é a convicção de que não há duas histórias, uma profana e outra sagrada, mas um só devir humano assumido por Cristo, Senhor da história. A ação salvífica de Deus conduz toda existência humana. O que pode ficar pendente são as categorias teológicas para exprimir essa relação unitária da história e cair nos velhos dualismos. Embora a forma de entendê-los e os enfoques possam ser diversos, não resta dúvida de que existe uma só história: “uma história cristofinalizada”.196

Urge, assim, a importância da história na salvação cristã, mas também a pergunta da relação entre a historicidade e sua transcendência ou escatologia.