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1.1 IRRUPÇÃO DA REALIDADE: SURGIMENTO DOS POBRES

1.1.2 A existência dos pobres na história

Essa tomada de consciência da existência dos pobres na história desencadeou em nível teológico a necessidade de perguntar-se pelos mecanismos e forças atuantes no contexto social. Por que da existência dos pobres? Para analisar e explicar as causas foi fundamental a utilização das ciências sociais no bojo da própria teologia. Apoiando-se na chave sociológica, a teologia percebeu que a pobreza pode ser explicada fundamentalmente de duas formas. Por um lado, o pensamento conservador diz que ela é causada pelas falhas individuais, principalmente de ordem moral, como: alcoolismo, famílias numerosas, incapacidade ou falta de qualificação para o mercado de trabalho, etc. A ideologia neoliberal vai desenvolver a ideia

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Cf. AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Medellín – Centralidade dos pobres na Igreja: clamores e resistências atuais. Horizonte, v. 16, 2018, p. 586.

60 LIBANIO, João B. Novos desafios e tarefas para a teologia na América latina e Caribe. In: BRIGHENTI,

de que a responsabilidade pelos fenômenos sociais cabe ao indivíduo, não à organização social. Dessa forma, a pobreza passa a ser de responsabilidade do próprio pobre; o desemprego, do próprio desempregado. São formas que contribuem para a criminalização da pobreza.61 Quando acontecem catástrofes, as autoridades públicas atribuem o desastre aos próprios moradores, pois teriam escolhido lugares vulneráveis para morar, como se tratasse de uma livre escolha.62

Por outro lado, o pensamento crítico busca suas justificativas nas causas estruturais. Conforme esse pensamento, a riqueza produz como consequência a pobreza e a miséria. Trata-se de uma estrutura que marca a história do capitalismo, segundo o geógrafo Milton Santos. Ele identifica na história do capitalismo três fases da experiência da pobreza: 1) A pobreza “incluída”. Os pobres faziam parte do sistema; 2) A marginalidade. Eram defeitos do sistema que poderiam ser corrigidos por ações estatais; 3) A pobreza estrutural. Uma situação de total exclusão e desamparo que foge à capacidade de ação do sistema. Ou seja, na lógica capitalista a existência dos pobres é vista como um dado natural e irremediável.63

Essas concepções de pobreza estão em oposição e fincam raízes na história da América Latina. A forma como a visão sociológica fundamenta as bases da pobreza será um contributo esclarecedor à teologia da libertação. De modo geral, os teólogos da libertação assumem essa leitura da realidade no fazer teológico. Para um dos mentores da teologia da libertação, Leonardo Boff, é possível diferenciar três leituras do escândalo da pobreza, que circulam ainda hoje no debate. A visão tradicional, “entende o pobre como aquele que não tem”. São os que não têm as condições mínimas de sobrevivência. “Sem meios de vida, não tem renda suficiente, não tem casa”. Sobrevivem no subemprego e com baixos salários. Para quem está dentro do sistema, esses pobres são “como zeros econômicos, óleo queimado, sobrantes”. A estratégia máxima e antiga de solução, nesse caso, é mobilizar quem tem para

61 Fala-se de criminalização da pobreza para se identificar o discurso que associa geneticamente os pobres, ou os

bairros pobres, as favelas e periferias, como o lugar social de origem do crime (especialmente roubos, furtos, assaltos, homicídios). Pesquisas em uma favela do Rio de Janeiro diagnosticaram que não chega a 1 % dos habitantes aqueles envolvidos nas atividades do tráfico de drogas. É fundamental ter claro que a criminalidade não é exclusiva dos setores populares, o crime ocorre em todas as classes (LESBAUPIN, Ivo. A criminalização da pobreza. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. (org.). A opção pelos pobres no século XXI, p. 239).

62 Cf. LESBAUPIN, Ivo. A criminalização da pobreza. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de (org.). A opção

pelos pobres no século XXI, p. 237-238.

ajudar a quem não tem. Trata-se de “uma política beneficente, mas não participativa. Mantém os pobres dependentes. Não descobriu ainda seu potencial transformador”.64

Outra perspectiva chamada por Boff, de visão progressista, compreende os pobres como um potencial não utilizado. Assim, há necessidade da educação para qualificá-los e potencializá-los. “Os pobres são inseridos no processo produtivo. Reforçam o sistema, se fazem consumidores, embora em menor escala e ajudam a perpetuar as relações sociais injustas que continuam produzindo pobres”. Fundamentalmente, é função do Estado criar postos de trabalho para esses pobres sociais. “A sociedade moderna, liberal e progressista incorporou esta visão”.65

Se a visão tradicional vê o pobre apenas como um carente individual, sem perceber seu caráter coletivo, e a visão progressista apenas como potencial produtivo, é a visão libertadora que acolhe a coletividade e seu caráter conflitivo socialmente. Para Boff, essa é a terceira compreensão, na qual “os pobres, conscientizados, organizados por eles mesmos e articulados com outros aliados podem ser construtores de um outro tipo de sociedade”. Podem pôr em marcha a construção de uma democracia participativa, econômica e ecológico-social. “Esta perspectiva não é nem assistencialista e nem progressista. Ela é verdadeiramente libertadora porque faz do oprimido o principal sujeito de sua libertação e o forjador de um projeto alternativo de sociedade”. Conclui Boff, afirmando:

A teologia da libertação assumiu esta leitura de pobre. Traduziu-a pela opção pelos pobres contra a pobreza e em favor da vida e da liberdade. Fazer-se pobre por amor a eles e em solidariedade para com suas lutas, significa um compromisso contra a pobreza material, econômica, política, cultural e religiosa. O oposto a esta pobreza não é a riqueza, mas a justiça e a equidade.66

Nesse sentido, é possível perceber como a concepção do pobre e sua pobreza se torna determinante para compreender o modelo de sociedade vigente. Em síntese, a resposta à presença dos pobres em grande medida revela a visão da sociedade. Fato que explica porque a questão dos pobres seja no cristianismo, seja nos meandros da sociedade tem uma dimensão fulcral.

A reflexão de Santos e Boff ajuda no processo de discernimento em relação à compreensão da opção pelos pobres assumida pela teologia da libertação. A questão central é

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BOFF, Leonardo. 90 anos de Dom Pedro Casaldáliga: pobreza e libertação.

65 BOFF, Leonardo. 90 anos de Dom Pedro Casaldáliga: pobreza e libertação.

66 Cf. BOFF, Leonardo. 90 anos de Dom Pedro Casaldáliga: pobreza e libertação. Cf. O perene desafio da

a forma como se analisa a existência dos pobres. O olhar desde o pobre define a concepção de mundo, de sociedade, mas, teologicamente, impacta o ser cristão, pois revela a concepção de Deus e suas implicações no seguimento de Jesus. Nesse sentido, a pergunta do porquê da existência dos pobres e a resposta cristã é fundamental. Por isso, torna-se esclarecedor o método proveniente do pontífice Francisco. Quando encontro uma pessoa a dormir ao relento, numa noite fria, o que diz à consciência? (cf. GE 98). É um vulto que detém, um delinquente ocioso, um obstáculo no caminho, um problema que os políticos devem resolver; um monte de lixo que suja o espaço público? “Ou então posso reagir a partir da fé e da caridade e reconhecer nele um ser humano com a mesma dignidade que eu, uma criatura infinitamente amada pelo Pai, uma imagem de Deus, um irmão redimido por Jesus Cristo. Isto é ser cristão!” (EG 98).

Não é descabido reconhecer, nesse discernimento colocado por Francisco diante do pobre, uma vital vinculação com a pergunta central da teologia da libertação: “Onde dormirão os pobres?”.67 Como dizer aos pobres, injustiçados, inocentes e famintos que Deus é amor? É a pergunta pelo tesouro do Evangelho: “onde estiver o teu tesouro, aí também estará o teu coração” (Mt 6,21). Seguindo a narrativa bíblica, Jesus assegura que assim todo o corpo fica iluminado. Todo o corpo teológico? Toda a vida da Igreja? Estaria Jesus revelando onde estava seu coração para ajudar os discípulos a vencer a tentação de servir a dois senhores? (cf. Mt 6,24).