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Povo crucificado: tópico fundamental da Soteriologia cristã

4.1 CENTRALIDADE DA MEDIAÇÃO PARA COMPREENDER A SOTERIOLOGIA

4.1.4 A compreensão soteriológica em Jon Sobrino

4.1.4.1 Povo crucificado: tópico fundamental da Soteriologia cristã

O próprio Sobrino reconhece a não normalidade da abordagem, dentro da cristologia o tema do povo crucificado. Pergunta-se: por quem continua na história a cruz de Jesus? Quem melhor pode dar prosseguimento à missão de Jesus na história? Ou dizendo cristologicamente: quem pode continuar na história completando o que falta à paixão de Jesus Cristo?

A questão de Sobrino, no entanto, tem seu porquê dentro de seu contexto dramático e hegemônico de El Salvador. O mundo, com suas leis e seguindo a lógica da proposta da globalização do mercado, já fez sua escolha: “fora do mercado não há salvação”. Essa escolha reflete a crença que o mercado capitalista conduz à salvação e fora dele está a perdição. Assim, o sistema hegemônico se reconhece e exige fé para completar a paixão de Cristo na história. É contrapondo essa realidade diabólica e idolátrica, produtora de vítimas, que a fé cristã surge como um grito de protesto e luta pela vida. Como bem destaca Sebastian Pittl, nesse mundo em que decretam o fim da história e das utopias, torna-se fundamental: “a pergunta sobre se há, e se há, quem é, em última instância, o sujeito capaz de promover e realizar a justiça na história”.516

A partir disso, Pittl destaca duas questões relevantes. Uma primeira, porque “se a esperança de um mundo mais justo não pode apontar quem é o sujeito que está em condições de realizar esta justiça, isso corre o perigo de converter-se em uma ilusão impotente e até alienante”.517 Não tem saída, e o caminho é apostar mais no mesmo. O sistema hegemônico

515 Cf. TORRES SERRANO, Juan Manuel. El pueblo crucificado y su potencial salvífico histórico, p. 13. 516 PITTL, Sebastian. O povo crucificado como sujeito da história? Algumas reflexões sobre a atualidade dos

conceitos da filosofia e da teologia de Ignacio Ellacuría. In: AQUINO JÚNIOR, Francisco de; MAIER, Martin; CARDENAL, Rodolfo (org.). A civilização da pobreza, p. 120.

517 PITTL, Sebastian. O povo crucificado como sujeito da história? Algumas reflexões sobre a atualidade dos

conceitos da filosofia e da teologia de Ignacio Ellacuría. In: AQUINO JÚNIOR, Francisco de; MAIER, Martin; CARDENAL, Rodolfo (org.). A civilização da pobreza, p. 120.

ficaria feliz, porque seria a prova definitiva: o mundo está no caminho certo, haja vista não existir outro sujeito. Uma segunda, porque a “luta pela justiça, para ser eficaz, precisa analisar criticamente quem pode e como se pode mudar o rumo de uma história injusta”.518 Aqui outra vez nasce a pergunta por quem pode se converter ou sinalizar um “outro mundo possível” na direção de uma sociedade em que a primazia seja a vida em abundância para todas as pessoas. Além dessas duas razões, Pittl acrescenta uma razão teológica, considerando o debatido tema da graça. “A tradição protestante insistiu de maneira particular em que, em última análise, somente Deus justifica e realiza a justiça”. No entanto, essa afirmação, ao defender com toda a razão a transcendência da esperança cristã, não pode ser compreendida sem se perguntar pela responsabilidade dos humanos na história.519 Quanto a essa possibilidade de fuga da realidade, Sobrino sublinha: “o perigo seria cair na graça barata, o inimigo mortal do cristianismo, denunciado por Bonhoeffer”.520

Por isso, há necessidade de determinar os sujeitos e os processos históricos, com os quais esse fazer justiça de Deus se realiza ou é obstaculizado.

Quando se busca averiguar a importância e como se configura a salvação cristã na história, surgem de imediato, três questões: 1) Como aconteceu a salvação da humanidade desde Jesus? 2) A partir de onde e como se realizou essa salvação? 3) Quem continua na história essa obra salvífica?

São questões que encaminham a descobrir a centralidade de uma Soteriologia histórica. A salvação em sua plenitude não deixa de assumir a dimensão histórica, ou seja, acontece no interior da história e inclui ativamente o ser humano, que deve participar da obra salvadora de Cristo. A ênfase é colocada na Soteriologia histórica, porque, dessa maneira, a obra salvadora de Cristo foi realizada. O ser de Jesus comprova o caráter histórico da salvação, por meio de sua vida, paixão, morte e ressurreição, configuradas intimamente ao reino de Deus e ao Deus do reino.

Quem continua historicamente essa obra salvífica? A salvação cristã é, sem dúvida, um dom de Deus, uma graça oferecida com liberdade e amor por parte de Deus, mas, ao

518 PITTL, Sebastian. O povo crucificado como sujeito da história? Algumas reflexões sobre a atualidade dos

conceitos da filosofia e da teologia de Ignacio Ellacuría. In: AQUINO JÚNIOR, Francisco de; MAIER, Martin; CARDENAL, Rodolfo (org.). A civilização da pobreza, p. 120.

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Cf. PITTL, Sebastian. O povo crucificado como sujeito da história? Algumas reflexões sobre a atualidade dos conceitos da filosofia e da teologia de Ignacio Ellacuría. In: AQUINO JÚNIOR, Francisco de; MAIER, Martin; CARDENAL, Rodolfo (org.). A civilização da pobreza, p. 120-121.

mesmo tempo, essa salvação foi levada à plenitude por um enviado ao mundo: Jesus Cristo. Significa: na história da salvação existiu a livre iniciativa e o amor último de Deus, mas também um mediador e, concomitantemente, uma mediação, a partir da qual essa vontade salvífica de Deus foi realizada na história.

Jesus Cristo é o enviado de Deus e aquele que envia constantemente para dar continuidade à vontade do Pai. Da fé provém que a salvação em Jesus Cristo foi definitiva e a ressurreição como acontecimento escatológico é sua comprovação. No entanto, o definitivo trazido por Jesus não anula a existência de continuadores da obra de salvação. Caso contrário, se o definitivo impedisse de prosseguir sua vida e sua obra, isso estaria em contradição com a possibilidade de ser filhos no Filho.521 Se fosse dessa maneira, o definitivo excluiria sua continuidade, então desapareceria de vez a possibilidade atual do ser humano de escutar a Palavra, participar da vida divina, realizar uma experiência de fé que se traduzisse em prosseguimento da causa de Jesus e viver já como ressuscitados na história. Nesse sentido, esclarece Sobrino:

se o caminho de Jesus, quer dizer, se a revelação do caminho do Filho fosse incapaz de incorporar outros nesse caminho, então Jesus não seria o Filho. Nesse sentido, corresponde à divindade de Jesus ser ele “o primogênito”, o que percorreu o caminho até Deus e o possibilita a seus irmãos.522

Ora, a tese de que Jesus é a plenitude da salvação não inviabiliza, mas, pelo contrário, exige que se pergunte pela continuidade da obra salvífica. O próprio Jesus, como atestam as narrativas bíblicas, buscou no percurso todo de seu ministério construir um grupo de pessoas para ajudá-lo na realização da vontade do Pai. Essa dinâmica do seguimento está configurada de tal forma que permite compreender a necessidade da continuação de sua obra. Isso é possível perceber no ministério de Jesus, certamente, mas fundamentalmente nas aparições como ressuscitado, sempre marcadas por encontros que tem envios-prosseguimentos (cf. Mc 16; cf. Lc 24; cf. Mt 28,16-20).

Uma vez que Jesus demonstra que Ele quer a continuação de sua obra, a pergunta de Jon Sobrino por quem dá continuidade é necessária e importante. Como tem buscado defender, considera que é o povo crucificado quem dá continuidade à obra de Cristo na

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Como disse João Paulo II: “Na Encarnação contemplamos o amor trinitário que se abre em Jesus; um amor que não permanece fechado num perfeito círculo de luz e de glória, mas se irradia na carne dos homens, na sua história, penetrando no homem, regenerando-o e tornando-o filho no Filho”. (VATICANO. João Paulo II. Audiência Geral).

história. Deixando para trás as dificuldades teológicas e exegéticas que podem ser encontradas nas semelhanças entre povo/servo, afirma que, desde uma experiência de fé, não se encontra em contradição com a revelação. É por meio do povo eleito por Deus que a obra salvífica, iniciada e realizada plenamente por Jesus, continua tomando concretude na história. Ao ser eleito por Deus, ao acolher sua graça e realizá-la na história no seguimento de Jesus, esse povo crucificado é considerado como presença atual do crucificado na história.

Nesse contexto, compreende-se por que Sobrino elevou a realidade dos povos crucificados à realidade teologal: eles são a continuação histórica do Servo sofredor. Primeiro, porque são eleitos por Deus para instaurar o direito e a justiça. Segundo, porque essa eleição- missão, proveniente de uma livre iniciativa de Deus e sendo aceita voluntariamente, tem levado a carregar o pecado do mundo. Terceiro, porque é carregando o pecado do mundo que tanto o Servo quanto o povo crucificado chegam a ser luz e salvação para a humanidade.

Para Sobrino, foi possível relacionar o povo crucificado como continuação histórica do Servo sofredor, a partir de dois elementos: o que ambos têm de vítimas históricas e o que têm de mistério de salvação. Tanto o Servo quanto o povo, sendo pessoas de dores, ou seja, vítimas, são escolhidos por Deus para contribuir, a partir dessa realidade, para a salvação.

Nessa questão surgem dois elementos que serão aprofundados mais tarde. Um, o povo crucificado é o princípio da salvação: “os que hoje trazem salvação para o mundo ou, ao menos, os que hoje são princípio de salvação são os povos pobres crucificados. E isto – em linguagem histórica – é tão escandaloso como a aceitação da escolha divina do Servo e de Cristo crucificado para trazer salvação”.523 Outro, é definir onde ocorre o analogatum

princeps do servo. “Pode-se discutir onde se dá o analogatum princeps do servo, problema

importante, mas sem o Servo ativo o Servo passivo não teria voz, e sem a realidade deste aquele não teria razão de ser”.524 Essa questão surgiu na elaboração de Sobrino, porque, ao analisar as causas da morte do povo crucificado e ao compará-las ao Servo, descobriu como na experiência do povo essas causas são tragicamente ampliadas. Falar-se-á da existência de um servo-passivo que morre lentamente, em razão de sua condição primária de pobre e um servo-ativo que morre ativamente, em razão da denúncia e da práxis profética que ele exerce em busca da libertação.525

523 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 374. 524 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 373. 525 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 372.

As duas questões supramencionadas exigem necessárias precisões. Diante da primeira questão, surgem algumas interrogações para clarear. É possível considerar o povo crucificado como princípio de salvação? Ao ser considerado como princípio, não deslocaria Jesus como salvador absoluto e definitivo de salvação? Ao ser princípio de salvação, os pobres são objeto de fé? São questões que merecem ser clareadas com o objetivo de evitar qualquer perspectiva de redução ou de manipulação teológica. Trata-se de uma questão em aberto para o próprio Sobrino, uma vez que não fica clarificado o sentido preciso de como compreende essa afirmação do povo crucificado como princípio de salvação.

Quanto à segunda questão, também se exigem considerações. Se o servo-passivo é princípio de salvação, não seria esse um caminho para justificar a morte dos pobres como sacrifícios necessários para a redenção? Segue a essa constatação a justificativa de que, através da miséria, a pobreza e a opressão, ocorre algo positivo? Em uma sociedade capitalista é possível que o servo-passivo salve a humanidade simplesmente por sua realidade primária de pobreza? Não seria o servo-ativo que oferece as condições para salvar a humanidade crucificada? Ou, na melhor das hipóteses, há que se manter em relação porque ambas compõem a complexidade do mistério Pascal de Cristo que continua se dando misteriosamente na história do mundo, da humanidade e da criação inteira? Trata-se, portanto, de questões importantes para serem discutidas e analisadas, pois estão intrinsecamente envolvidas nesta pesquisa.

Por isso, esclarecer a categoria princípio de salvação aplicada ao povo crucificado e a possível identificação de um analogatum princeps do Servo são esclarecimentos fundamentais para que a Soteriologia histórica, levada pelo povo crucificado, não seja desvirtuada, chegando a ser contrária a uma salvação verdadeira e autenticamente cristã.

4.2 O POVO CRUCIFICADO TRAZ SALVAÇÃO: POSSÍVEIS PERIGOS E AMEAÇAS

A formulação do povo crucificado como princípio de salvação pode comportar alguns perigos para a reflexão teológico-cristológica. Buscou-se, por isso, relacionar alguns desses problemas que rodeiam o povo crucificado como dimensão salvífica.