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3.4 CAMINHO PROFÉTICO: OS POBRES, OS MÁRTIRES E DEUS

3.4.3 Aparecimento de Deus

Ao descrever sua trajetória teológica, Jon Sobrino reconhece que Deus acompanhou desde os primórdios e com destaque descreve suas primeiras dúvidas sobre Deus. Realça as questões e provocações oriundas dos escritos de Karl Rahner, ainda no começo de seus estudos teológicos. Segundo Sobrino, Rahner escreveu com audácia e lucidez que apesar de seus muitos dogmas e acertos morais, a teologia católica somente disse uma coisa: o mistério permanece mistério eternamente. Mesmo não sendo uma definição, é uma declaração de que não se pode ir além, na teologia.409

A compreensão de mistério causou impacto em Sobrino, porque Rahner foi além da concepção de mistério de sua época. Sobre o que disse do mistério impactou: “O mistério não é o provisório, mas o permanente. Não é característica de um enunciado, mas o último substrato da realidade”. Não se diversifica em uma pluralidade de enunciados, mas é a própria realidade una de Deus. Esse mistério se desdobra: ad intra na realidade trinitária e ad extra em Cristo por natureza e a nós por graça. Conclui: “Deus é mistério santo”. É mistério, por ser incompreensível e inalcançável. É santo, porque se subtrai mesmo em sua presença. E isso é salvação.410

Na avaliação de Sobrino, Rahner compreende o mistério em parentesco com a teologia apofática, no entanto acredita ter pensado no mistério com uma característica própria: pensar é aproximar-se realmente do mistério. Na linguagem de Sobrino, é aproximar-se com a castidade da inteligência. Metáfora para dizer que a realidade do mistério se deve tocar, porém sem manipular, sem tentar apoderar-se totalmente. Caso isso ocorresse, o mistério,

407 Cf. SOBRINO, Jon. Fazer teologia em nosso tempo e nosso lugar. In: BRIGHENTI, Agenor; HERMANO,

Rosario (org.). Teologia da libertação em prospectiva, p. 66-67.

408

SOBRINO, Jon. Fazer teologia em nosso tempo e nosso lugar. In: BRIGHENTI, Agenor; HERMANO, Rosario (org.). Teologia da libertação em prospectiva, p. 68 (grifo do autor).

409 Cf. MÁRMOL, Charo. Conversaciones con Jon Sobrino, p. 38. 410 Cf. MÁRMOL, Charo. Conversaciones con Jon Sobrino, p. 39.

como o amor, deixaria de ser. Significa um não saber de Deus necessário para saber de Deus.411

Quanto ao conteúdo do mistério, Sobrino capta de Rahner a encarnação, quando Deus decidiu ser não só Deus, mas se fazer carne e assumir a história de toda a carne humana. Assume para sempre: o misterioso Deus nunca rejeita Jesus. “Eterna significação da humanidade de Jesus para nossa relação com Deus”.412

Deus ter assumido a história foi uma coisa boa. Por isso, ao refletir sobre os títulos que se aplicam a Jesus Cristo no Novo Testamento: Sumo Sacerdote, Messias, Filho de Deus, Filho do homem, Palavra, acrescenta ao Evangelho – Boa Notícia.413

Com Rahner algo importante ocorreu: “Jesus é a história do mistério de Deus”. Algo há em Jesus que faz presente Deus e tem algo em Deus que não permite que Deus seja sem expressar em Jesus. A consequência é a mudança na forma de pensamento e, também, na experiência de vida de Sobrino. “Un ‘Dios de Jesús’ en Jesús siempre tiene palabra, palabras

que decir”. Dessa forma, o próprio silêncio de Deus como possibilidade, muitas vezes

enfrentada, em Jesus não podia deixar de expressar-se, ao menos, como murmúrio bem- aventurado.414

Com a encarnação na realidade de El Salvador, junto aos pobres e mártires, caíram as escamas e nova luz vislumbrou do mistério de Deus. Experiência que descreve não como irrupção, como faz com os pobres e mártires, mas como um aparecer, linguagem utilizada pelos evangelistas para descrever o ressuscitado na vida dos discípulos. Não como irrupção de Deus em sua vida, mas como um aparecimento novo. Não uma irrupção clara e deslumbrante em momento de obscuridade, ou de suprimir a liberdade que não tivesse de tomar as decisões com temor e amor. Deus apareceu e começou a ser diferente a relação. Deus seguia sendo mistério: mistério de vida e inesperadamente da vida dos pobres. Era mistério contra a morte de seres humanos e, certamente, contra a morte dos pobres. Era um mistério captado, ou, ao menos, melhor captado entre os pobres e mártires. Não podia prendê-lo, porém se deixava ver. Chama essa experiência, até certo ponto paradoxal, de bem-aventurança. Essa irrupção assentou na realidade e, pensando nos pobres, nos mártires e no Deus que apareceu, escreveu:

411

Cf. MÁRMOL, Charo. Conversaciones con Jon Sobrino, p. 39.

412 Cf. MÁRMOL, Charo. Conversaciones con Jon Sobrino, p. 40. 413 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo, p. 317-330.

“os pobres trazem salvação”. Mais modestamente: “fora dos pobres não há salvação”. Ou com maior modéstia: “os pobres e os mártires vislumbram a salvação”.415

Esse processo foi como um novo batismo. Vindo da Alemanha, podia ter dúvida sobre muitas coisas do céu e da terra, no entanto, sobre a existência e a sorte dos pobres empobrecidos e dos poderosos empobrecedores, não. Ajudaram-no o contato com o livro As

veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano416, e os sermões de Montesinos, que exerceram sobre ele um poder humanizador. Assim, também, as palavras proféticas de Montesinos: “Todos vocês estão em pecado mortal e nele vivem e morrem, pela crueldade e tirania que usam com essas pessoas inocentes”. Continua enumerando os horrores que os encomendeiros cometiam sobre os índios. “Eles não são homens? Não tem alma racional? Não são obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis, não sentem?” E Montesinos conclui: “Como estão dormindo em sono tão letárgico”? São denúncias que não deixam escapatória. E Sobrino assegura o impacto dessas palavras presentes na trajetória de sua vida pessoal e, também, no pensar teológico. Foi uma irrupção perceber que estava dormindo e não sabia que essa maneira o tornava responsável pelos males éticos e desumanizantes.417

Os textos de Montesinos, segundo Sobrino, também o ajudaram a valorizar e a descobrir, no Novo Testamento, temas teologais e antropológicos de primeira grandeza, que tinham passado despercebidos. Como, por exemplo, a atuação do maligno que é assassino e mentiroso, nessa ordem, como narra o evangelista São João. Bem como a Carta de São Paulo aos Romanos, quando afirma: “a cólera de Deus se revelou contra os que aprisionam a verdade e a justiça”. Aprisionar a verdade desencadeia a ira de Deus418

e gera muitos outros

415 MÁRMOL, Charo. Conversaciones con Jon Sobrino, p. 62-63 (tradução nossa). 416 Título original: Las Venas Abiertas de América Latina.

417

Cf. MÁRMOL, Charo. Conversaciones con Jon Sobrino, p. 68 (tradução nossa).

418 Existem os que não gostam dessa linguagem, atualmente. Questão para discutir os motivos dessa

preocupação. Seria por que Deus como misericórdia não pode ficar irado com ninguém, mesmo diante das injustiças? Um Deus irado assumiria uma postura de parcialidade com os pobres, em prejuízo da universalidade da salvação? Ou, ao contrário, acolher um Deus irado é uma forma de reconhecer no Deus cristão uma dádiva, pois não quer nenhum de seus filhos destituído de dignidade e vida? (cf. Jo 10,10). Pois, como esclarece Aloysius Pieris: “eu teria deixado de ser cristão se o Jeová da Bíblia fosse incapaz da ira que ameaça com o fogo do inferno os opressores em nome de suas vítimas sem voz – não para destruí-los para sempre (isso seria ódio), mas para provocar sua conversão e trazer alívio aos párias. Porque a ira profética é uma expressão do amor redentor”. (Fidelidade e imparcialidade na comunidade interconfessional: rumo a uma teologia de pluralismo religioso. In: VIGIL, José María (org.). Por uma teologia planetária, p. 196).

males. Antropológica e eticamente aprisionar a verdade produz desumanização na totalidade.419