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3.3 AS VIAS OBRIGATÓRIAS DO CAMINHO

3.3.4 Fora da cruz não há salvação

Na teologia de Jon Sobrino, a cruz ocupa uma dimensão peculiar. Estando inserido na realidade de El Salvador, a cruz sinaliza sua coerência de vida em um contexto de pobreza produtora de vítimas. Sente-se interpelado a pensar seriamente sobre as cruzes que, em vez de diminuir, seguem crescendo. O tema da cruz acompanha a reflexão teológica de Sobrino desde sua tese doutoral, intitulada “O significado da Cruz e ressurreição de Jesus nas cristologias sistemáticas de W. Pannenberg e J. Moltmann”, defendida em 1975. Mas o interesse pela cruz, a motivação última dessa insistência, não vem pela influência de uma corrente teológica determinada. Ela decorre da realidade crucificada. Sobrino não nega essa influência dos autores, mas realça que o fundamental procedeu da realidade: não faz falta ter lido uma palavra de Paulo, de Lutero, de Von Balthasar ou de Moltmann para perceber o escândalo da cruz da história. A única coisa que deve ser feita é não o ignorar.387

A cruz aparece, então, como uma questão de honestidade com a realidade. Fazer cristologia, tomar como ponto de referência os povos crucificados é não ignorar o escândalo da cruz na realidade concreta. Destarte, é tornar a própria reflexão teológica relevante e pertinente. Jon Sobrino encontra somente uma resposta a essa aporia: trabalhar para descer da cruz os pobres crucificados. Qualquer outra resposta somente consegue adiar a solução e, inclusive, com o risco de se tornar humana e teologicamente corresponsável pela crucificação da realidade. A reflexão e o fazer teológico de Sobrino assumem essa realidade. Por meio da

386 Cf. VITORIA CORMENZANA, Javier. Jon Sobrino: Una teología conmocionada por los pobres y los

mártires, p. 10 (tradução nossa).

teologia aportará luz, critérios e horizontes para esse trabalho. Contribui para ir fazendo real e melhor plausível a salvação para os crucificados e, consequentemente, se consiga que Cristo e o Deus salvador realmente se tornem compreensíveis. Seu pensamento a respeito do acontecimento de Jesus Cristo consistirá diretamente em saber como abrir caminhos da salvação de Deus em uma realidade de povos crucificados. Trata-se de saber como a história da salvação é salvação histórica para os pobres. Em palavras de Sobrino, a teologia pretende contribuir para descer da cruz os povos crucificados e não satisfaz com justificar a passagem de Jesus histórico ao Cristo da fé, preocupação dos teólogos europeus. Para ele, isso não basta, é preciso recorrer a Jesus histórico e ao Cristo da fé para saber como, desde o Jesus histórico, estamos constituindo-o como Cristo histórico. Quer dizer, como historicização visível e eficaz da afirmação paulina de que “Deus será tudo em todos”.388

Em síntese, esses quatro axiomas se constituem nas intuições fundamentais do percurso teológico de Jon Sobrino. Com o primeiro, “fora do mundo não há salvação”, tomando como chave interpretativa as perspectivas de aggiornamento proporcionadas pelo Concílio Vaticano II. O florescimento de uma eclesiologia amor-mundi, que acolhe e se encarna no mundo, para, a partir de dentro, fermentar os valores do reino de Deus. A recepção criativa do Concílio, realizada na América Latina, a partir de Medellín, desencadeou na firme opção pelos pobres e no surgimento da teologia da libertação. Fato este que empodera a levar a sério o segundo axioma: “fora dos pobres não há salvação”. Esse axioma caminha a passos largos no fazer teológico de Jon Sobrino. Em seus escritos evidencia-se um processo de amadurecimento em relação à compreensão da opção pelos pobres. De certa forma, como deixa entrever sua formulação cristológica, acreditava na superação da realidade dos pobres: “para que não haja mais pobres no meio de vocês”.389

Infelizmente, foi ledo engano, porque o

388

Cf. VITORIA CORMENZANA, Javier. Jon Sobrino: Una teología conmocionada por los pobres y los mártires, p. 9-10 (tradução nossa).

389 Seguindo análise de Érico Hammes, é possível perceber traços visíveis da evolução de suas formulações.

Nota-se a permanência de temas comuns e de um método ascendente de Cristologia. Já da primeira para a segunda edição de Cristologia a partir da América Latina, destacam-se três diferenças: a introdução, o capítulo sobre a oração de Jesus e a reelaboração do capítulo relativo aos dogmas cristológicos. Em Jesus na América Latina e no verbete “Jesus de Nazaré” surgem dois novos temas: Deus da vida e Povo crucificado. Além disso, busca explicar algumas afirmações de Cristologia a partir da América Latina que haviam causado problemas e confusão entre linguagem histórica e ontológica: “Relação do Jesus histórico com o Pai”; “Jesus se faz fazendo Filho de Deus”; “Jesus é diretamente manifestação do Filho e não do Pai”; “Deus como processo trinitário”. Para Érico, “todas estas fórmulas, em seu contexto, falam da mediação histórica a partir de onde se poderá pensar a realidade transcendente de Jesus. Não podem ser entendidas como afirmações ontológicas.” O terceiro momento representa uma progressiva elaboração sistemática a ser coroada com os dois volumes Jesus, o Libertador e A fé em Jesus Cristo. E é justamente neste último que elabora o tema da divindade de Jesus. Jon Sobrino, a partir da realidade latino-americana e do sofrimento de sua população e por influência de Ellacuría, destaca o tema da paixão e cruz em conexão com o de “povo crucificado” como expressão de continuidade do significado da

que se verificou foi seu crescimento exponencial. Mais do que a pobreza, o surgimento da repressão, tortura e outros mecanismos de eliminação dos pobres fizeram refletir a respeito da presença da realidade dos mártires. O que leva, consequentemente, à necessidade de reelaborar uma nova compreensão do martírio. E, definitivamente, perceberá que “fora de Deus não há salvação”, terceiro axioma. Assim, surge a convicção de que é preciso se manter “a vueltas con Dios” e “a vueltas con los pobres”.390

O Absoluto é Deus, e os pobres, o coabsoluto.391 E, dessa relação, chega Sobrino em definitivo ao quarto axioma: “fora da cruz não há salvação”. Agora, não somente a realidade dos pobres, mas também a presença dos mártires questiona a fé e exigem honestidade do pensamento. Pessoas que em vida e na morte se parecem com Jesus provocaram ao aprofundamento teológico, oferecendo uma nova compreensão e conceituação da realidade dos mártires jesuânicos.

Os axiomas analisados surgiram como proposta de leitura metodológica do desenvolvimento e da maturação da reflexão cristológica de Jon Sobrino. Não atuam isoladamente e precisam ser compreendidos e articulados na vida de um teólogo que busca elevar a dor de seu povo a conceitos teológicos.