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1.3 APARECIMENTO DO AMOR DE DEUS: POBRES E INSIGNIFICANTES

1.3.4 Frutos amargos: críticas à teologia da libertação

A discussão em torno da teologia da libertação teve seu ponto mais alto nos dois documentos, de 1984144 e 1986145, da Congregação para a Doutrina da Fé. Foi seguida de uma

passa, nos capítulos quarto, quinto e sexto, ao “agir” apontando para a proposta de uma ecologia integral, algumas linhas de orientação e ação, e uma educação e espiritualidade ecológica.

140 PASSOS, João Décio. Método Teológico, p. 51. 141 PASSOS, João Décio. Método Teológico, p. 52. 142

PASSOS, João Décio. Método Teológico, p. 52.

143

LEGORRETA, J. J. Eclesiología latino-americana en el pensamiento del Papa Francisco. In: BRIGHENTI, Agenor (org.). Os ventos sopram do Sul, p. 131.

144 VATICANO. Instrução sobre alguns aspectos da teologia da libertação.

confirmação do Papa aos bispos brasileiros para acalmá-los, afirmando que a teologia da libertação é “não só oportuna, mas útil e necessária”.146

Esses foram os tempos mais difíceis e impactantes para o fazer teológico. Os prejuízos ficaram na dimensão de responder e corresponder às exigências do Magistério e, consequentemente, houve um truncamento na liberdade teológica. Sem liberdade, a teologia torna-se incompatível com sua própria missão. Na apresentação do documento A vocação eclesial do teólogo, de 1990, da comissão Teológica Internacional do Vaticano, o então cardeal J. Ratzinger, afirma que:

[...] a Teologia não é simples e exclusivamente uma função auxiliar do Magistério, ou seja, não se deve limitar a buscar os argumentos do que o Magistério afirma. Nesse caso, Magistério e Teologia se aproximariam da ideologia para a qual somente interessa a conquista e a manutenção do poder.147

No entanto, essa liberdade dentro da missão teológica não ocorreu de forma satisfatória. Os frutos amargos serão percebidos nas décadas seguintes, não somente em relação à teologia da libertação, seu descenso, mas nos sinais de fracasso que esse engessamento produziu na vida da Igreja. Antonio Manzatto analisa, de forma bastante crítica, o que posteriormente se desencadeou no ambiente eclesial. Discriminação, elitização, abusos de poder, juridicismo, legalismo e ritualismos parecem ser coisas que o Evangelho não aprova, mas se instalaram no ambiente eclesial. Acrescenta: Carreirismos, estrelismos, busca de poder e sucesso, competição, corrupção dos mesmos moldes das organizações políticas ou empresariais contemporâneas. Tudo isso se percebeu dentro da Igreja. É necessário confessar esse fracasso, porque não produziu bons frutos.148 Ao invés de fazer o mundo mais cristão, a Igreja se tornou mais mundana, e os escândalos atingiram os altos escalões da Igreja. Essa análise ganha ressonância, atualmente no magistério do Papa Francisco, ao denunciar o espírito mundano que tem penetrado no ambiente eclesial.149

Se é possível encontrar fatores positivos nesse caminho amargo, podem ser indicadas as diferentes produções teológicas para responder às críticas procedentes de dentro e fora da Igreja. Muito cedo, e para outros cedo demais, a teologia da libertação precisou justificar as razões de seu nascimento/existência. A partir de um olhar retrospectivo é possível perceber

146

VATICANO. Carta do papa João Paulo II aos bispos da conferência episcopal dos bispos do Brasil.

147

VATICANO. Instrução Donum Veritatis sobre a vocação eclesial do teólogo.

148 Cf. MANZATTO, Antonio. A situação eclesial atual. In: GODOY, Manoel; AQUINO JÚNIOR, Francisco de

(org.). 50 anos de Medellín, p. 34.

como as questões nucleares da teologia da libertação foram questionadas e colocadas em xeque.

a) A opção pelos pobres, principalmente a preocupação com os fundamentos: socioeconômico, cultural ou teológico dessa opção. As dúvidas se espalharam por meio das expressões: “opção preferencial pelos pobres”; “opção pelos pobres, mas não excludente”, entre outras;

b) O termo libertação e sua justificativa teológica. E disso o reconhecimento e aceitação: a libertação é uma categoria teológica ancorada no amor de Deus revelado na história do seu povo e com seu ápice em Jesus Cristo;

c) A compreensão das CEBs e seu perigo de construir uma Igreja popular, em contraposição à Igreja instituição;

d) A metodologia do ver, julgar e agir, com as discordâncias da utilização das ciências sociais, entre elas também o agravamento em razão das teorias de influências marxistas;

e) A crítica sobre a compreensão do mistério que comporta Jesus Cristo na fé cristã. “Processa a inversão de ler o Cristo da fé a partir do Jesus histórico, em vez de dogmatizar o Jesus histórico”.150

Em contrapartida, esta é a crítica de que tal abordagem pode eclipsar a divindade de Jesus;

f) A relação entre parcialidade e universalidade do Reino de Deus, o que implica o lugar teologal dos pobres. Para que todos sejam filhos de Deus (universalidade), nenhum filho pode estar ausente (parcialidade com os últimos);

g) A relação entre pecado pessoal e social, outro entrave. Medellín ajudará a esclarecer uma vez que reconhece a existência de uma estrutura de pecado, expressa como pecado institucionalizado;

h) A dimensão da espiritualidade não passou sem fissuras, reclamando falta de espiritualidade na teologia da libertação. A ênfase na dimensão social causou eclipse no espiritual e, por isso, as Igrejas se esvaziaram. Refutam tais críticas, os inúmeros mártires são a prova maior do amor de doação da própria vida por causa da fidelidade a Jesus.

150 LIBANIO, João B. Novos desafios e tarefas para a teologia na América Latina e Caribe. In: BRIGHENTI,

O desencadeamento das críticas consequentemente provocou o processo de fundamentação e amadurecimento importante para a teologia da libertação. Avaliando os impactos dos primeiros 30 anos da teologia da libertação, o teólogo espanhol Tamayo Acosta mencionou quatro características desse impacto. 1) A condenação de Roma gerou interesses por ela. 2) O avanço para além dos horizontes teológicos e se tornando um fenômeno social e político de especial relevância, tanto para as autoridades eclesiásticas quanto para os poderes políticos, econômicos e militares. 3) A interpretação libertadora do cristianismo, colocando seu potencial simbólico, doutrinal e espiritual junto às maiorias pobres e rompendo com as visões coloniais da fé cristã. 4) As perseguições que recaíram sobre seus principais membros e o martírio de seus mais qualificados teólogos, comprometidos com os pobres.151

Passado esse tsunami, a teologia enquanto reflexão crítica à luz da fé precisa manter-se ligada aos sinais dos tempos para cumprir sua missão de sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13). A teologia nunca está salva, mas pode e deve ser instrumento de salvação de Deus. Por isso, o mais importante não é o trabalho da teologia em si mesma, ou sua sobrevivência, como lembra Gutiérrez, mas especialmente a superação dos sofrimentos pelas esperanças do povo, pela comunicação da experiência e da mensagem de salvação de Jesus Cristo.152 Nesse sentido, todas as teologias precisam ser além de crítica, também autocríticas. E todas caminham na história respondendo a uma mesma pergunta: ser teologia a serviço dos pobres, preferidos de Deus, ou a serviço dos amigos de Jó, que justificam a desgraça e a pobreza em nome de Deus? A teologia da libertação tem a tarefa de seguir os trilhos da história abrindo-se para os novos sinais dos tempos, “o que o espírito diz às Igrejas” (Ap 2,7). No entanto, sem se desprender do fundamento sólido, irrenunciável que para Sobrino: “é a vida de Jesus e sua páscoa, cruz e ressurreição. Não se deve esquecê-la. E sempre é necessário retornar a ela”.153