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2.3 SALVAÇÃO ENQUANTO SACRIFÍCIO DE AMOR

2.3.1 Jesus: único e último sacrifício

No início do cristianismo foi fácil captar a ideia de sacrifício conectado ao ato supremo de amor realizado por Jesus na cruz. O próprio ambiente cultural ajudava a fixar esse entendimento, segundo González Faus. Esse autor destaca alguns motivos. Porque: o sangue para nós invoca dor, para os antigos significava vida. A palavra redenção recordava a libertação da escravidão, ou das prisões do império romano. Para nós, expiação satisfacionista. A expressão “morrer por nossos pecados”, ou “por nossa causa” – pode significar “por obra nossa” ou por “causa nossa”. Não significa necessária nem exclusivamente “para nosso bem”. O termo sacrifício remete a algo doloroso, ao passo que para os antigos remetia a algo sagrado. A ênfase não estava no aspecto oneroso e sim no fato de que algo, ao ser tocado pelo divino, ficava de alguma forma sacralizado.278

No decorrer da história do pensamento cristão, os problemas foram surgindo na explicação do sacrifício. As perspectivas foram diversas. A morte de Cristo como transação com satã, porque este teria sido enganado (Orígenes, Gregório de Nissa), ou a ideia da morte de Cristo como manifestação do amor de Deus ao ser humano, destinada a comovê-lo e a mudá-lo (Abelardo). No entanto, a formulação de maior alcance remonta a Gregório Magno e tem sua formulação clássica em Anselmo de Cantuária. Segundo Antonio González, “possivelmente a intenção de Anselmo era mostrar que o amor e a justiça de Deus não se medem pelas coisas criadas, mas no próprio Deus”.279

O raciocínio lógico, com Adão ocorreu

277 Cat. n. 613-615. O catecismo deixa claro que na cruz, Jesus consuma seu sacrifício. “É o ‘amor até o fim’ que

confere o valor da redenção e de reparação, de expiação e de satisfação ao sacrifício de Cristo” (n. 616). Afirma também que Jesus deu a vida em resgate “por muitos” (n. 605), ou “por todos” (n. 616). No entanto, o “por muitos” não tem perspectiva restritiva: “Cristo morreu por todos os homens sem exceção” (n. 605).

278 Cf. GONZÁLEZ FAUS, José Ignacio. As 10 heresias do catolicismo atual, p. 50.

279 GONZÁLEZ, Antonio. Salvação/soteriologia. In: TAMAYO ACOSTA, José (org.). Novo dicionário de

uma ofensa a Deus, que traz a marca de algo infinito, ou seja, nenhum ser humano pode reparar. O infinito necessita de algo infinito para sanar a dívida. Consequentemente, em definitivo, somente alguém da altura do próprio Deus, ou seja, seu filho Jesus, pode sanar plenamente. “Entretanto, a ofensa era humana, e deveria ser paga pela humanidade, de modo que somente um Deus-homem poderia realizar a expiação requerida. Daí a necessidade do sacrifício de Cristo”.280

O fato de Jesus fazer sua entrega voluntária e como inocente, sua oferenda foi aceita, superou as ofensas e reparou todo o gênero humano.

Essa teoria conformou à piedade popular até o século XX, mas a teologia contemporânea foi encontrando cada vez mais dificuldade para sustentar essa estrutura salvífica de Cristo. As perguntas começam a questionar a relação com um Deus que exige satisfação. Como confrontar essa sentença com afirmações bíblicas, já provenientes do Antigo Testamento, proclamando Deus rico em misericórdia?281 Uma nova lógica que abre caminho na superação da teoria anselmiana, ou seja, Deus não age segundo um sistema de méritos e retribuição. Indícios dessa misericórdia de Deus já se fazem presentes na literatura veterotestamentária (Adão, Caim, Noé, etc.).

A questão não está em negar que Cristo morreu por nós, como se confessa soteriologicamente na fé cristã. Aliás, essa é uma verdade comprovada pelas Escrituras e não pode ser negada. O caminho não é a negação e sim a compreensão das razões que levaram Cristo à morte na cruz. A afirmação Jesus morreu por nós, ou pelos nossos pecados, segundo Comblin, “não quer dizer que Jesus morreu em sacrifício para pagar o preço da nossa salvação, ou para merecer a nossa salvação, mas que Jesus foi estabelecido pelo Pai como Messias graças à sua fidelidade até a morte”.282

Na cruz de Cristo, portanto, encontra-se uma inversão: salvação como graça imerecida e não mérito humano. Mais: pelo dogma de Calcedônia se afirma a indissolubilidade do Pai com o Filho, isso significa na cruz de Jesus, o próprio Deus está presente e Ele mesmo sofre o destino daqueles que, segundo a lógica adâmica, foram rejeitados por Deus. “O destino dos pobres, dos fracassados, dos derrotados e dos rebeldes. O próprio Deus sofreu o destino dos

280 GONZÁLEZ, Antonio. Salvação/soteriologia. In: TAMAYO ACOSTA, José (org.). Novo dicionário de

Teologia, p. 500.

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O Senhor passou diante dele, exclamando: “Javé, Javé, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e em fidelidade” (Ex 34,6).

282 COMBLIN, José. Jesus libertador numa visão da teologia pluralista. In: TOMITA, Luiza Etsuko; BARROS,

que na lógica das retribuições declara como culpáveis. No esquema das retribuições, a vítima é culpável. Na cruz, o próprio Deus é vítima desse esquema”.283

Dessa forma, “na cruz anula-se diante de Deus a lógica das retribuições” e na terminologia clássica do cristianismo se diz: “na cruz foi superada e perdoada a culpa de Adão”.284

A cruz mostra o amor de Deus a todos os seres humanos, especialmente aos pobres e enfermos e aos vencidos, mas também aos pecadores. Na lógica adâmica das retribuições, deveriam receber o castigo merecido. A morte de cruz de Jesus, ao mesmo tempo que anula a matriz das retribuições, também revela a solidariedade de Deus com os pobres e o perdão dos pecadores. Para Antonio González,

salvação é a reconciliação que Deus exerce em favor de todos os presumivelmente rejeitados por ele, quer dizer, em favor de todas as vítimas e de todos os pecadores. Em favor de todos nós. Mas a reconciliação é também, onde os efeitos da obra de Cristo adquirem concreção histórica, o início de uma reconciliação da humanidade, a destruição do muro entre as vítimas e os carrascos.285

A reconciliação universal, que deve resultar da obra de Cristo (cf. Cl 1,20), não pode esquecer, conforme Juan L. Segundo, que “passa pela libertação dos homens e não é resultado de um tipo de piedosa cegueira frente à opressão atual e aos meios de combatê-la, um dos quais, senão o principal, é separar os que padecem opressão dos que lhe infligem ou são cúmplices disso”.286 De acordo com a fé cristã, Jesus morreu na cruz para que ninguém mais seja crucificado. Destarte, ser cristão é se comprometer fazendo todo o possível para quebrar as cruzes da opressão, da escravidão, sociais, políticas, culturais e religiosas que fadigam a vida do povo.

Com base nesse novo enquadramento teológico, as imagens bíblicas da salvação recebem um sentido salvífico/libertador. A morte de Cristo deve ser entendida como morte por nós; em Cristo foram anulados os decretos contra nós (cf. Cl 2,14). A morte como

283

GONZÁLEZ, Antonio. Salvação/soteriologia. In: TAMAYO ACOSTA, José (org.). Novo dicionário de Teologia, p. 501. Segundo Marcelo Barros, nos anos 1980, no Chile, Ronaldo Muñoz escrevia: “Toda injustiça e opressão violenta ocorrem porque Deus não pode evitar. […] Assumindo ele mesmo, por amor, o mal e a injustiça ali onde mais doem, o Deus que se deixa crucificar com o Crucificado e os crucificados de hoje, é ele que nos interpela se estamos fazendo o máximo e o possível para transformar essa realidade. […] Crer juntos com os sofredores e oprimidos no Deus de Jesus Cristo dá sentido e força para juntos viver e lutar”. (Martírio de todo um povo).

284

GONZÁLEZ, Antonio. Salvação/soteriologia. In: TAMAYO ACOSTA, José (org.). Novo dicionário de Teologia, p. 501.

285 GONZÁLEZ, Antonio. Salvação/soteriologia. In: TAMAYO ACOSTA, José (org.). Novo dicionário de

Teologia, p. 501.

substituição, não no sentido de que Cristo sofra um castigo por parte de Deus, mas no sentido de que, em Cristo, o próprio Deus experimentou o destino que aparentemente merecem os pecadores: aquele que não tinha pecado, fez-se pecado por nós (cf. 2Cor 5,21).

Em consequência, compreende-se a salvação em termos de sacrifício, não como nas teorias anselmianas. A salvação não é expiação em sentido estrito. Entretanto, na cruz houve, como nas expiações, uma vítima substitutiva, e nela se conseguiu uma reconciliação. A cruz depôs a validade de todos os sacrifícios. Deus anulando os sacrifícios, como na lógica adâmica, mostra que os sacrifícios perderam seu fundamento. “A cruz não só perdoa pecados particulares, como pretendiam os outros sacrifícios, mas anula o pecado fundamental, sobre o qual se baseavam todos os sacrifícios”.287 Na particularidade de um único sacrifício, o de Jesus tornou-se definitivo, e mais nenhum outro sacrifício é necessário (cf. Hb 10,11-14; 7,11-28; 9,12). Portanto, a salvação acontecida em Cristo anula a lógica que fundamenta toda a forma de dominação. É uma radical libertação. No entanto, conforme esclarece Antonio González, é importante considerar que

não se trata de uma libertação que substitui uma forma de dominação por outra nova, mas de uma libertação que destrói as raízes mesmas da opressão. Onde a salvação de Cristo chegou aparecem novas relações sociais, livres de dominação. Aparece uma nova criação (2Cor 5,17).288