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O povo crucificado: sacramento histórico de salvação

4.3 BASE TEOLÓGICA: POVO CRUCIFICADO PRINCÍPIO DE SALVAÇÃO

4.3.1 O povo crucificado: sacramento histórico de salvação

Os perigos e ameaças estão presentes, no entanto, não inviabilizam a tese de Sobrino: o povo crucificado é princípio ou portador de salvação histórica. Por essa característica, o povo crucificado é sacramento histórico de salvação. Fato que não vem em prejuízo do povo crucificado, mas, inclusive, está de acordo com Sobrino. Em seu livro Jesus, o Libertador, no qual o tema do povo crucificado é abordado, o teólogo inicia sua reflexão afirmando a pretensão de analisar que Cristo, enquanto crucificado, tem um corpo na história.556 Para ele, a convicção eclesiológica é nuclear: Cristo tem um corpo que o faz presente na história. Daí a necessidade de perguntar: “se esse corpo está crucificado, que parte desse corpo está crucificada e se a crucifixão desse corpo é a presença de Cristo crucificado na história”.557

Sobrino confirmará que esse corpo sofre crucificação e identifica-o com os pobres, em sua diversidade e profundidade, mas também como realidade histórica, coletiva, dialética, conflituosa e política, que sofrem uma situação de crucificação.558 E deixa explicitado: esses

556 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 381. 557 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 366.

povos pobres crucificados são efetivamente a presença histórica do Cristo crucificado.559 Motivo suficiente para concluir: a expressão povo crucificado é uma linguagem útil e necessária no nível cristológico. Usando uma linguagem cristológico-eclesiológica, o teólogo afirma: Cristo toma corpo naquele povo crucificado e, assim, pode incorporá-lo à história como Cristo crucificado. Tomar corpo e incorporar são dois elementos fundamentais ao considerar o povo como a presença atual do crucificado. A possível consideração do povo crucificado como sacramento histórico da salvação é justificada a partir dessa insistência que Sobrino faz no aspecto eclesiológico: Cristo tem um corpo que o torna presente, concreto e visível na história.

Ellacuría, abordando a Igreja como sacramento histórico da salvação, reconhece em Jesus o sacramento primário e fundamental, e a Igreja, como continuadora e realizadora da obra de Jesus, participa dessa missão.560 É, a partir desse aspecto, mas sem considerar o povo crucificado como uma Igreja paralela, que se torna possível e mais conveniente considerar povo-sacramento da salvação. A sacramentalidade da Igreja é derivada de sua função de continuadora-realizadora da vida, causa, pregação e práxis de Jesus. Ellacuría analisou a corporeidade da Igreja, a fim de especificar seu significado para a historicização da salvação. “A corporeidade histórica da Igreja implica que ela ‘tome corpo’ na realidade e na ação de Jesus Cristo para que ela realize uma ‘incorporação’ de Jesus Cristo na realidade da história”.561

Perspectiva importante para o autor, porque tanto a ideia de sacramento quanto a ideia de salvação estão depreciadas e parecem referidas a um âmbito religioso pouco palpável no cotidiano da fé. Por isso, para recuperar sua credibilidade e importância, nada melhor do que historicizá-los, colocando em relação fecunda com a história.562 Em conclusão: a Igreja é sacramento de salvação/libertação e deve atuar como sacramento de libertação/salvação. Assim, os pobres, que nunca estão fora dos designíos salvíficos de Cristo, também sempre pertencerão à missão da Igreja.

Na avaliação de Juan M. Torres Serrano, sustentar o povo como sacramento permite: 1) considerar de maneira derivada, e não como princípio a salvação, que pode chegar a comunicar o povo; 2) descobrir que o povo é portador de uma Soteriologia histórica, à medida que a obra salvífica de Cristo se encarna histórica e ativamente em diversas maneiras. O

559

Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 381.

560 Cf. ELLACURÍA, Ignacio. Conversión de la Iglesia al Reino de Dios, p. 180. 561 ELLACURÍA, Ignacio. Conversión de la Iglesia al Reino de Dios, p. 183. 562 Cf. ELLACURÍA, Ignacio. Conversión de la Iglesia al Reino de Dios, p. 181.

seguimento de Jesus ocorre de uma maneira privilegiada na América Latina; 3) o povo crucificado é presença de Cristo crucificado não de uma maneira automática, ou seja, a dor e sofrimento não podem cumprir essa missão. Esse povo encarna a realidade de Cristo, uma vez que desde seu seguimento faz-se mais próximo da práxis do reino de Deus e, assim, sofre analogamente seu destino de morte e ressurreição.563

As considerações realizadas por Ellacuría e Torres Serrano explicitam que considerar o povo-sacramento não é arbitrário teologicamente e oferecem argumentos importantes na hora de defender o povo como portador histórico-soteriológico. Não se pretende, com isso, duvidar que, dentro dessa visão de povo-sacramento, possam existir também debilidades e limites. No entanto, precisa permanecer claro: o povo crucificado, como realidade histórica, é instrumento de salvação, à medida que Cristo toma corpo para assim ser incorporado na história. Da mesma forma, sempre se deverá estar aberto para que esse continuador não leve a perverter, manipular ou reduzir a salvação definitiva dada em Jesus Cristo. Segundo Ellacuría:

Jesus foi um corpo histórico de Deus, a atualidade plena de Deus entre os homens, e a Igreja deve ser o corpo histórico de Cristo, ao modo como Jesus foi de Deus Pai. A continuação na história da vida e da missão de Jesus que compete à Igreja, animada e unificada pelo Espírito de Cristo, faz dela seu corpo, sua presença visível e operante.564

Ora, se a Igreja é caminho de salvação na história por causa de Cristo, se “não se pode falar de Cristo sem falar dos pobres”565, isso significa, consequentemente, que os pobres são sacramento histórico de salvação para a Igreja e fora dela. E a esse argumento cristológico, José Comblin acrescenta o pneumatológico: a presença do Espírito não somente nas pessoas e na Igreja, mas também no mundo, na criação e na história, concretamente nos pobres. “O Espírito age na história pela mediação dos pobres. Quando os pobres conseguem agir na história, ali está agindo o Espírito de Deus”.566

Dessa maneira, os pobres são o primeiro sacramento de Jesus, em analogia com os da Igreja. Continua Pedro Trigo:

o sacramento é a presença real na ausência real. Como Jesus não está aqui em pessoa (cf. Mc 16,6), está realmente nos pobres: no serviço que se faz ou se deixa de fazer a

563

Cf. TORRES SERRANO, Juan. El pueblo crucificado y su potencial salvífico histórico, p. 19.

564 ELLACURÍA, Ignacio. Conversión de la Iglesia al Reino de Dios, p. 185 (tradução nossa). 565 CODINA, Víctor. O Espírito do Senhor: força dos fracos, p. 211.

eles, servimos ou deixamos de servir ao próprio Jesus de Nazaré, independentemente de que o saibamos ou não.567

Dessa forma, a continuidade da missão redentora de Jesus Cristo não se realiza apenas mediante uma presença mística ou sacramental, mas também e, sobretudo, mediante uma continuidade histórica. Estabelece-se um verdadeiro e próprio círculo hermenêutico entre povo crucificado e Jesus Crucificado. Dinamizar esse círculo hermenêutico tornará possível, ademais, recuperar duas dimensões constitutivas da Soteriologia cristã: a historicidade da paixão e morte de Jesus e o caráter salvífico do sofrimento, da perseguição e da morte do povo.

4.4 A MODO DE CONCLUSÃO

Este capítulo se fixou em reconstruir o pensamento soteriológico sobriniano, compreendendo o mistério Pascal de Jesus Cristo e sua continuação histórica. Perguntar-se por quem melhor cristifica Jesus na história é essencial na perspectiva soteriológica. No povo crucificado o autor salvadorenho encontra o continuador de Cristo crucificado na história.

Tanto a salvação trazida por Cristo quanto a continuação na humanidade não passa fora da dimensão histórica. Ora, desde uma perspectiva cristológica, percebe-se que a dimensão soteriológica histórica não vem em prejuízo da dimensão escatológica da salvação, ao contrário, potencializa e facilita a transcendência.

Sobrino, ao colocar como central em sua cristologia a categoria do Reino de Deus, deixa assegurada a necessidade de compreender o histórico e o transcendente da salvação de forma articulada e correspondente. Porque, como diz o Papa Francisco, “a verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história” (EG 181). A centralidade do reino de Deus e a compreensão a partir da cristologia latino-americana são um dos caminhos privilegiados em Sobrino, para perceber porque sua cristologia não esqueceu que a salvação cristã também passa pela história da humanidade. Essa maneira de proceder manifestou a continuidade e a relação de complementariedade existente entre a cristologia e a Soteriologia.

No decorrer da reflexão, ao afirmar o povo crucificado como portador, princípio, ou mesmo sacramento de salvação histórica, exigiu fazer algumas precisões e considerações.

Basicamente, discorreu-se sobre cinco ameaças e perigos no que diz respeito ao povo crucificado como realidade salvífica: idealização; justificação do sofrimento; esquecimento do mediador do Reino; tornar o povo crucificado como o objeto de fé; e uma elitização ou privatização da salvação cristã. Questões que desafiaram a trabalhar as bases teológicas que justificam o povo crucificado como portador da salvação, sem ferir os princípios teológicos da fé cristã. Por isso, o povo crucificado é sacramento histórico de Cristo, uma vez que completa a paixão de Cristo e são juízes escatológicos.

Ora, em que consiste e quem são os que podem completar a paixão de Cristo na história, mesmo entre o povo crucificado, será a temática central do próximo capítulo.

PARTE III

FORA DOS POBRES E CRUCIFICADOS NÃO HÁ SALVAÇÃO

Qual o lugar dos pobres na salvação cristã, de acordo com Jon Sobrino, constitui-se o objetivo desta pesquisa. Nesta terceira parte, que comporta os capítulos 5 a 7, continua-se no aprofundamento desta questão principal. No capítulo cinco, o interesse recaiu sobre o povo crucificado como sujeito da Soteriologia histórica. Procede-se, assim à leitura hermenêutica sobriniana entre o Servo de Javé, descrito pelos quatro cânticos de Isaías, e o povo crucificado, a partir da realidade de El Salvador. Na base está a semelhança do que ambos têm de vítimas e de mistério divino. No desenvolvimento é importante perceber como um povo crucificado, desfigurado, pode trazer salvação.

Compreender o axioma soteriológico de Sobrino: fora dos pobres não há salvação, corresponde ao objetivo do sexto capítulo. Procura-se descortinar a origem, a novidade epocal e as implicações na forma de conceituar a salvação. A necessidade, portanto, de uma nova lógica para deixar-se salvar pelos pobres e crucificados. Caminho esse exigente, não somente para acolher a opção de Deus pelos pobres, mas para reconhecê-los, na fé, como portadores de salvação na história. Esse é o caminho do encontro com o Senhor nos pobres. É o reconhecimento dos pobres como boa notícia do Reino.

No último capítulo, fez-se a opção de retomar e aprofundar algumas questões gerais e pertinentes da pesquisa. Neste sentido está-se longe de propor o fechamento da pesquisa. Diante da relevância dela, alimenta-se, sim, um desejo propositivo de abertura para outros possíveis aprofundamentos, num horizonte de consequências pastorais.

5 OS POVOS CRUCIFICADOS: ABORDAGEM TEOLÓGICA SEGUNDO JON SOBRINO

Como se visualizou no percurso teológico do autor, os conceitos vão adquirindo uma progressiva clareza, sempre no intuito de melhor dizer teologicamente a realidade. Os pobres, as vítimas e os povos crucificados são sempre a mesma realidade de dor, violência e morte antes do tempo. Essa linguagem do povo crucificado, embora possa parecer pouco científica em outros lugares, a partir da América Latina é necessária. A hermenêutica não se limita à busca de horizontes comuns de compreensão cultural, entre o presente e o passado. Comporta, antes de tudo, o desvelamento de horizontes comuns de realidade. A teologização que se fez do povo crucificado a partir do Servo de Javé não somente inclui seu aspecto de vítima, compreensível até certo ponto em outros lugares, mas também seu aspecto historicamente salvífico; dimensão mais alheia ainda em outras latitudes teológicas.568

Embora não se possa estabelecer com toda a precisão quem são os que atualizam hoje o Servo sofredor na história, existe uma convicção segundo Sobrino: as vítimas da globalização podem ser cristã e paradoxalmente seu princípio de redenção. Em outras palavras, sem colocar no centro as vítimas, não se alcançará uma globalização humana.569 Por isso, perspicazmente, a teologia, a Igreja e os batizados precisam trabalhar para ser sal e luz do mundo, do contrário, os crentes “mais escondem do que manifestam a face genuína de Deus” (GS 19).

No bojo deste capítulo, portanto, será importante averiguar a formulação do povo crucificado como portador da Soteriologia histórica. A origem dessa formulação? Em que consiste esta especificidade e maior novidade da análise teológica do Servo que se faz na América Latina? Qual é o potencial salvífico dos povos crucificados? Quais são as contribuições aos olhos da fé que o povo crucificado oferece a uma globalização sem coração? Em que sentido será possível assegurar que, na história, a esperança dos pobres, não perecerá, assim como o evangelho?

Para responder a essas questões busca-se, em primeiro lugar, a relação pertinente entre amor de Deus e o amor humano. Em segundo lugar, o interesse volta-se para a averiguação da origem, significado e desenvolvimento da expressão povo crucificado como sujeito da

568 Cf. SOBRINO, Jon. Os povos crucificados, atual servo sofredor de Javé: À memória de Ignacio Ellacuría.

Concilium, n. 232, ed. 2, 1990, p. 120.

Soteriologia cristã. Em terceiro lugar, busca-se apreender a relação hermenêutica elaborada por Sobrino entre o Servo de Javé e o povo crucificado, com o objetivo de perceber as intuições proféticas do povo crucificado como princípio de salvação universal.