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Jon Sobrino, ao descrever a sacudida do despertar da cruel inumanidade, ressalta o aspecto forte e alegre ao mesmo tempo, porque percebe que o evangelho não é só uma verdade a ser reafirmada, mas boa nova que produz alegria.353 Possibilitou descobrir uma nova realidade: os pobres e as vítimas, produto do pecado e da opressão humanos.

349

SOBRINO, Jon. O Princípio misericórdia, p. 14.

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SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia, p. 15.

351 SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia, p. 28. 352 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 21.

Reconhecer o Deus dos pobres, para quem a tarefa mais urgente é sobreviver e o destino mais próximo é a morte lenta.354

Esse despertar produziu consequências à vida religiosa e eclesial, nos interesses intelectuais, nas certezas e dúvidas de fé, nas perguntas teológicas reais. Exigiu honradez com a trágica realidade histórica de repressão e mortes, massivas e injustas. Fez perceber não somente a existência de Deus, mas também dos ídolos, não somente do ateísmo, mas também da idolatria, e a descobrir a correlação transcendental entre Deus e os pobres.355 Os pobres e as vítimas são sacramentos de Deus e presença de Jesus na história.356

Tudo isso provocou uma radical mudança do que é fazer teologia.357 Sem ignorar o

intellectus fidei, passou a ser, preferencialmente, intellectus amoris.358 Uma teologia preocupada em descer da cruz os povos crucificados. Na linguagem técnica afirma Sobrino que o primeiro despertar levou a aprofundar o intellectus fidei, necessário dentro de um contexto da relação razão e fé. O segundo despertar levou, sem ignorar o anterior, a aprofundar a necessidade de a teologia ser intellectus misericordiae, intellectus iustitiae,

intecllectus liberationis. Na linguagem da tradição, intellectus amoris. Essa teologia é

também intellectus gratiae, e a graça passou a fazer parte da sua teologia, não como tema específico a ser tratado, mas como dom de Deus que fecunda e alimenta o labor teológico.359

Para Jon Sobrino, conceber a teologia como intellectus amoris,360 inteligência da realização do amor histórico pelos pobres e do amor que nos torna afins à realidade de Deus, é a maior novidade teórica da teologia da libertação, uma vez que a torna mais bíblica e mais

354 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo, p. 13.

355 Cf. SOBRINO, Jon. Teología desde la realidade. In: SUSIN, Luiz C. (org.). O mar se abriu, p. 161. 356

Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo, p. 19.

357 Cf. SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia, p. 47-80. Para maiores aprofundamentos: cf. HAMMES, Érico

J. A epistemologia teológica em questão da dor do mundo futuro. Perspectiva Teológica, n. 39, 2007, p. 165- 185; AQUINO JÚNIOR, Francisco de. A teologia como ‘intellectus amoris’: A propósito de crítica de Clodovis Boff a Jon Sobrino. REB, v. 69, n. 274, 2009, p. 388-415.

358 “A irrupção dos pobres exige e possibilita uma nova pré-compreensão e uma conversão fundamental da

atividade teológica, mas é, além disso, questionamento primário a toda a atividade humana-cristã, e também à teológica, que exige uma resposta: é preciso erradicar o sofrimento dos pobres. Nessa resposta a teologia vai se configurando como a inteligência do amor” (SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia, p. 65-66).

359 Cf. SOBRINO, Jon. A fé em Jesus Cristo, p. 19. Cf. Teologia desde la realidade. In: SUSIN, Luiz C. (org.). O

mar se abriu, p. 161.

relevante historicamente e a leva a ser mistagógica, pois oferece o amor como caminho primário que nos torna semelhantes a Deus.361

Não se pode compreender nenhum teólogo, muito menos Sobrino, à margem do seu contexto social em que realiza sua atividade teológica. Para entender sua teologia também é preciso fazer referências a alguns fatos determinantes na biografia intelectual e espiritual dele. Esses fatos, como ele mesmo testemunhou mais tarde, foram determinantes na maneira de fazer teologia.

No dia três de fevereiro de 1977, Dom Oscar Arnulfo Romero foi nomeado arcebispo de San Salvador. Romero teria um impacto inquietante em todo o caminho de Sobrino. E nas palavras de Ignacio Ellacuría: “com monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador”.362

Um mês mais tarde, em 12 de março do mesmo ano, o jesuíta salvadorenho Rutílio Grande foi assassinado no interior do país. Sobrino disse que “toda sua pessoa, sua vida e sua morte martirial foram e seguem sendo uma ‘Boa Notícia’ de Deus para os pobres deste mundo”. Rutílio teve uma grande experiência de Deus, que lhe abriu o coração para sentir compaixão e os olhos para ver o mundo como ele é. Sem disfarçar seu pecado, nem esconder a esperança. Fundamentalmente, ver os seres humanos como são no exterior e nas profundezas dos corações.363 Diante do assassinato de Rutílio, confrontou-se com o que significa ser cristão. Foi um novo batismo.364

Em 24 de março de 1980, foi assassinado, durante uma celebração eucarística, Dom Oscar Romero. De Romero disse que “sua vida, seu trabalho e suas palavras foram luz e inspiração teológica”. Sem ele, afirma Sobrino, não poderia formular teoricamente coisas tão fundamentais, como o mistério de Deus, a Igreja dos pobres, a esperança, o martírio, a solidariedade. Impactou profundamente a coerência de Romero com a opção pelos pobres, sua vontade de verdade, sua misericórdia para com as vítimas, sua capacidade de aprender com os pobres, sua fidelidade em meio a ataques, difamação e ameaças.365

Em 16 de novembro de 1989, um grupo da força armada de El Salvador assassinou seis confrades jesuítas, a cozinheira da comunidade e sua filha adolescente. A comunidade dos jesuítas: I. Ellacuría, Segundo Montes, Ignacio Martín-Baró, Amando López, Juan Ramón

361

Cf. BOMBONATTO, Vera I. Seguimento de Jesus, p. 25.

362

SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação, p. 172.

363 Cf. AYALA RAMÍREZ, Carlos. Impronta de los mártires en Jon Sobrino. 364 Cf. SOBRINO, Jon. Ser cristão hoje. Concilium, n. 340, 2011-2012, p. 87-97.

Moreno y Joaquín López, todos eles companheiros de Universidade e de comunidade. As outras duas eram Julia Elba Ramos e sua filha Celina. Jon Sobrino sobreviveu somente porque se encontrava em Hua Hin (Tailândia), a duzentos quilômetros de Bangkok, dando um curso de teologia, a pedido do amigo Leonardo Boff. A dramática experiência marcaria profundamente a trajetória desse jesuíta, latino-americano de coração. Durante dias – escrevia mais tarde – só conseguia se perguntar, sem achar respostas satisfatórias, por que ele ainda estava vivo. A partir daí entendeu que sua missão era “ser consciência crítica numa sociedade de pecado e ser consciência criativa de uma sociedade futura diferente”.366 Ignacio Ellacuría, como as reflexões deixarão perceber, foi um pilar na articulação teológica de Sobrino. Para ele, a coisa mais fundamental que Ellacuría deixou foi “o exercício da misericórdia diante de um povo crucificado e a fé no mistério de Deus como o mais humano e humanizador”; “obrigado por sua misericórdia e por sua fé”. Esta é a sentença com a qual termina a primeira das cartas escritas por Sobrino a Ellacuría no aniversário dos mártires da UCA.367

Em sua teologia teve a contribuição, sem dúvidas, de teólogos, como: J. Moltmann, W. Pannenberg, K. Rahner, e de filósofos, como X. Zubiri e seu companheiro e do amigo I. Ellacuría. Sobrino narra algumas contribuições desses autores no processo de reconstrução de suas raízes teológicas. No entanto, a influência da experiência com os pobres crucificados e dos mártires será decisiva. É o que se pode perceber no desencadear da reflexão comprometida com os pobres e os mártires. Seu pensamento teológico irrompe com força e novidade nos anos setenta do século passado. No livro Ressurreição da verdadeira Igreja, tematiza profundamente em que consiste o conhecimento teológico na teologia europeia e latino-americana.368 O texto constitui uma verdadeira declaração de intenção sobre a perspectiva e o método teológico que farão parte de sua trajetória. A leitura da sua conclusão pode ajudar a constatar a novidade e alcance da sua proposta. Escreve Sobrino:

Estava certo que tanto a teologia europeia quanto a latino-americana estavam preocupadas com a superação do dualismo, que inclusive se fixa dentro do próprio pensamento. Por exemplo, a superação da dicotomia corpo-espírito, transcendência-história. O perigo é que essa superação, por necessária que aconteça, pode ficar no nível do próprio conhecimento. O que a teologia da libertação buscou superar foi um dualismo mais radical na

366 SOARES, Afonso M. L. Introdução. In: SOARES, Afonso M. L. (org.). Dialogando con Jon Sobrino, p. 13. 367 Cf. AYALA RAMÍREZ, Carlos. Impronta de los mártires en Jon Sobrino (tradução nossa).

teologia: “o de sujeito crente e história, o de teologia e práxis, mas não já dentro do mesmo pensamento, mas dentro da existência real”.369

Na compreensão de Sobrino, no fundo estava a necessidade de refazer o sentido da experiência bíblica do que significa conhecer teologicamente: “Conhecer a verdade é fazer a verdade, conhecer a Jesus é seguir a Jesus, conhecer o pecado é carregar o pecado, conhecer a miséria é libertar o mundo da miséria, conhecer a Deus é ir a Deus na justiça”.370

Como se fez perceber, seu modo de conhecer tem ligação fundamental com a práxis e se conecta com a perspectiva bíblica do conhecer: conhecer é amar, é comprometer-se. Esse primado da práxis na teologia foi a chave de toda sua perspectiva teológica. Perspectiva que vem somar-se ao desencadeamento que a teologia da libertação estava realizando.

A maior dificuldade das sociedades desenvolvidas e das igrejas ricas para assimilar o desafio não é de natureza intelectual, ou seja, uma nova maneira de entender a salvação e libertação humana, mas a grande perturbação produzida por sua convicção e sua afirmação: a presença de Deus na história é a presença de um Deus libertador e defensor dos pobres. Tal revelação é o que causa desinstalação prática dos valores hegemônicos e exige múltiplos processos de conversão. Disso as diferentes formas de desacreditar. Nos contextos de perseguições e de alta tensão social, como os vividos em El Salvador, o assassinato despontava como caminho primário de silenciamento. Nas palavras proféticas de Romero: “mata-se quem estorva”.

Em contextos mais brandos, as formas de minar a profecia são outras. Um dos caminhos bem conhecidos, que acompanham o percurso da história, é protagonizado pelos meios de comunicação. Na sua maioria, por estarem a serviço do capital financeiro, sentem-se incomodados pela profecia do evangelho e reagem astutamente. Entre eles, utilizar-se dos teólogos da libertação para agitar a hierarquia católica, como se a dificuldade em acreditar fosse somente dos bispos. Esse pode ser um deambular do caminho para roubar e marginalizar o que é mais radical da experiência cristã: a ligação de Deus com a justiça e da salvação com a história não sem os pobres. Essa é dimensão absolutamente crítica e até subversiva para os cristãos satisfeitos, mas, para os seguidores de Jesus, via obrigatória para ser coerente com o evangelho de Jesus Cristo.

369 SOBRINO, Jon. Ressurreição da verdadeira Igreja, p. 46-47. 370 SOBRINO, Jon. Ressurreição da verdadeira Igreja, p. 47.