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3.3 AS VIAS OBRIGATÓRIAS DO CAMINHO

3.3.1 Fora do mundo não há salvação

Essa expressão Sobrino recolhe do teólogo belga Edward Schillebeeckx (extra

mundum nulla salus), ao reformular a fórmula tradicional, extra ecclesiam nulla salus de

Orígenes e Cipriano. “Com isso queria dizer que o mundo e a história humana, em que Deus quer operar salvação, são as bases de toda a realidade da fé; no mundo, em primeiro lugar, se alcança a salvação ou se consuma a perdição”.372

Essa afirmação parece ter pouca relevância em nosso contexto, mas em sua originalidade foi uma grande descoberta. Tratava-se de compreender a salvação na história e da história. Isso somente foi possível com o alvorecer do Concílio Vaticano II (1965), que batalhou na superação dos dualismos e na possibilidade de pensar a fé e salvação em relação intrínseca com a história.373

O ponto decisivo está na compreensão da unificação da história, como foi desenvolvida no segundo capítulo. Não temos duas histórias, uma da salvação e outra da condenação. Não há duas histórias que caminham em paralelo, senão uma única história onde acontece a salvação e a possibilidade do pecado. Por conseguinte, a salvação não é algo que acontece fora do mundo, mas sim no mundo.374 Na realidade, está-se afirmando o mesmo,

371 Cf. VITORIA CORMENZANA, Javier. Jon Sobrino: Uma teología conmocionada por los pobres y los

mártires.

372 Cf. SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação, p. 111-112.

373 Joseph Ratzinger, ao se referir à “vida eterna”, diz: “um último elemento central de toda a evangelização

verdadeira é a vida eterna. Hoje, devemos anunciar a nossa fé com nova força na vida diária. Gostaria de aludir aqui a apenas um aspecto frequentemente esquecido na atual pregação de Cristo: o anúncio do reino de Deus é o anúncio de Deus presente, de Deus que nos conhece, que nos ouve; de Deus que entra na História para fazer justiça. Por isso, essa pregação é anúncio do Juízo, anúncio da nossa responsabilidade”. RATZINGER, Joseph. Selecção de textos: Cardeal Joseph Ratzinger.

374

É interessante perceber como essa perspectiva aparece nas reflexões. Marcelo Barros se referindo à dimensão profética das CEBs destaca a importância de considerar a missão da Igreja de forma articulada. Para isso refere- se ao documento 105 da CNBB: “Queremos recordar e insistir que o primeiro campo e âmbito da missão do cristão leigo é o mundo. A realidade temporal é o campo próprio da ação evangelizadora e transformadora que

ainda que seja com palavras mais abstratas do que as de Jesus que anunciou a chegada do Reino de Deus (cf. Mc 1,14). Que os cristãos são peregrinos e caminham ao Reino definitivo está em exigência com as tarefas do reino no tempo presente, conforme o Verbo encarnado (cf. Jo 1,14; cf. GS 22). Ou, como expressou São Gregório Nazianzeno (século IV), “o que não foi assumido não foi redimido”.375 (DP 400). Expressão de grande alcance cristológico e soteriológico. Deus quer santificar e salvar a natureza humana pelo próprio mistério da encarnação ou pela união da divindade com a humanidade. O princípio geral de encarnação se concretiza em diversos critérios particulares, aval fundamental para compreender melhor a missão da Igreja, que assumiu a cultura da Palestina ou da Grécia, pode e deve também assumir as culturas dos povos indígenas. Os rostos da Amazônia têm feições culturais e sociais – uns lembram a beleza da criação e de Jesus ressuscitado, em outros se reconhecem “as feições sofredoras de Cristo” (DP 31).

Essa maneira de entender a salvação é uma formulação que expressa exatamente este princípio da Soteriologia histórica. E as consequências foram determinantes para eclesiologia. A Igreja, por ser sacramento universal de salvação, está no mundo e assume, desde dentro do mundo, sua missão. Por um lado, a Igreja assume o que o mundo comporta de epifanias salvíficas e, por outro lado, torna-se responsável para redimi-lo no que possui de pecado. Se evangelizar é anunciar o Reino de Deus, é missão da Igreja ser fermento, sal e luz no mundo. A missão da Igreja, servir ao mundo para torná-lo sinal do Reino de Deus na história. A Igreja está a serviço do reino de Deus e da humanidade: descentramento da Igreja para o Reino de Deus. É tarefa sempre difícil encontrar o equilíbrio adequado entre as coisas do Reino e as

compete aos leigos”. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Cristãos, leigos e leigas, na Igreja e na Sociedade. Idem, n. 63, p. 35. “O importante é que não interpretemos essas palavras a partir de uma cultura tradicional que ainda tende a separar o sagrado e o profano. Se fosse assim, a palavra dos bispos estaria mantendo uma compreensão da Igreja como organização religiosa que existe em si mesma, tem uma função interna e, apenas como consequência do seu modo de ser, tem uma missão no mundo externo”. “A realidade temporal é o campo próprio da ação evangélica que compete aos leigos”. Ao reler isso, poderíamos perguntar: O que significa isso diante do fato de que o Papa Francisco insiste que é toda a Igreja que deve ser em saída e se inserir no mundo? O que essas palavras querem realmente assegurar: Que os leigos se ocupem do mundo e deixem a pastoral interna com os padres? Mas o que seria das comunidades do interior, nas quais o padre aparece quando muito uma vez por mês, e leigos e leigas celebram, pregam e dão a comunhão? Estão fazendo um papel impróprio ou menos específico de sua missão de leigos? A multidão de catequistas, de leitores/as e de tantos outros ofícios nas Igrejas estaria fora de sua missão própria? E, por outro lado, pode-se realmente afirmar que os padres e bispos não se metem na política e não atuam na realidade temporal? Em 1972, em uma alocução aos membros dos Institutos Seculares, em Roma, o Papa Paulo VI afirmou: “A Igreja (toda) tem uma autêntica dimensão secular, inerente à sua íntima natureza e missão, cuja raiz mergulha no mistério da encarnação de Jesus e se concretiza de forma diversa para os seus membros”. (BARROS, Marcelo. A profecia das CEBs no ano do laicato. REB, v. 78, n. 310, 2018, p. 421.

375 Puebla atribui a Santo Irineu, outros, como Leomar Brustolin, aplicam a São Gregório Nazianzeno.

coisas da Igreja. Segundo Ellacuría: “porque se o Reino de Deus não pode ser concebido adequadamente à margem da Igreja que ajuda a realizá-lo, muito menos se pode conceber a Igreja cristã à margem do Reino de Deus”.376

O caminho seguido por Ellacuría é o de manter o Reino como prioridade para a Igreja, negando assim toda a identificação fácil. O Reino não busca anular a Igreja, tão somente a situa em seu lugar adequado, porque a Igreja há de subordinar-se a Cristo que foi enviado pelo Pai, implantando na história o Reino para recapitular todas as coisas (Ef 1,10).377

O Reino de Deus oferece o horizonte último de compreensão da identidade e da missão da Igreja, segundo Sobrino.

Recorda-lhe que ela não é o Reino de Deus, mas sua servidora por princípio; que suas realizações internas devem ser sinais do Reino na história. Exige dela que sua missão seja, como a de Jesus, Boa Notícia aos pobres, evangelização e denúncia, anúncio da palavra e realização histórica da libertação. Desta forma, a Igreja pode ser, hoje, “sacramento de libertação”.378

Se a Igreja nasce e existe em razão do reinado de Deus, e isto aparece na missão de Jesus como reino voltado aos pobres, significa perguntar-se pelo lugar e pela forma de estar no mundo. Localizar-se no mundo foi importante e necessário certamente, mas o que mais sacudiu a missão da Igreja e o fazer teológico foi perguntar-se: em qual mundo? No mundo dos incluídos ou no mundo dos excluídos? Se fora do mundo não há salvação, a realidade latino-americana e caribenha exigiria, a partir da recepção criativa de Medellín, perguntar-se pela possibilidade de salvação não só fora do mundo, mas, também, fora dos pobres e das

vítimas.