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Utopia do reino de Deus: a vida dos pobres seja possível

4.1 CENTRALIDADE DA MEDIAÇÃO PARA COMPREENDER A SOTERIOLOGIA

4.1.3 Utopia do reino de Deus: a vida dos pobres seja possível

Na sistematização oferecida por Jon Sobrino a utopia perpassa a realidade do reino de Deus. Jesus anunciou “uma utopia, algo bom, salvífico que se aproxima”.493

O reino é utopia, algo que não tem lugar na história. É evangelho, boa notícia que comunica alegria, não somente pelo que tem de benéfico, mas por ser libertador. Dessa maneira, Jesus não se afasta das expectativas escatológica e apocalíptica do seu tempo e que resulta na vinda do reino de Deus. A novidade não é que Jesus faça parte dessa utopia esperada, mas a maneira pela qual ele se relaciona e entende essa esperança: o reino de Deus deixa de ser uma expectativa passiva, o reino está próximo e, embora seja fruto da graça, da liberdade e iniciativa de Deus, também exige conversão e seguimento. “A tensão pensada entre dom de Deus e tarefa humana dissolve-se a partir do seguimento de Jesus”.494

Se a presença de Deus e a vontade salvífica apareceram na história humana gratuitamente, isso não implica abandono à realidade e às tarefas históricas. Jesus exemplifica esta dimensão do reino como dom-tarefa, até mesmo superando as leis sagradas do sábado (cf. Jo 5,16-17). Jesus, ao dizer “meu Pai trabalha até agora e eu também”, está afirmando a primazia da vida, a necessidade de superação de qualquer obstáculo que contraria a dignidade

492

BOFF, Leonardo. Salvação em Jesus Cristo e processo de libertação. Concilium, n. 96, 1974, p. 763.

493 SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.;

SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 1, p. 477 (tradução nossa).

humana. Não se deve esquecer: “amamos porque Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19) e “o amor vem de Deus” (1Jo 4,7). Por isso, não existe contradição entre a ação de Deus e a ação humana. Uma não implica a negação da outra. Pelo contrário, ambas se implicam e se remetem mutuamente. Na formulação de Antonio González, “a ação humana não é, sem mais, ‘obra’ do homem, mas ‘o dom se experimenta como dom na própria doação’, enquanto fundamento da mesma. Deste modo, a fé é atividade humana enquanto entrega a Deus como fundamento da própria vida”.495

Jesus em missão se encontra em continuidade com essa espera escatológica do reino da utopia. Sua ação evidencia que o reino não é simples utopia não realizável, senão topia. O reino é utopia, porém uma utopia específica, bem aquilatada, segundo Sobrino. Não a utopia da República de Platão ou a utopia de Thomas More, por exemplo, “Precisamente pela perfeição que supõem, impossíveis de alcançar na miséria em que vivemos”. A utopia do evangelho e da teologia da libertação é mais modesta, mais humana, mais urgente: “que a

vida justa e digna dos pobres chegue a ser uma realidade, de modo que a crueldade muito

real de seus sofrimentos não tenha a última palavra”.496

Leonardo Boff precisará, nessa mesma perspectiva, que o reino de Deus não é somente uma realidade espiritual, senão uma revolução total das estruturas do velho mundo. Jesus promete que o reino não será uma utopia, objeto de uma expectativa, senão topia. Quer dizer, objeto de uma grande alegria para o povo. É por isso que o reino se apresenta como boa notícia para os pobres.497 Na definição de Boff, o reino de Deus seria a manifestação da soberania de Deus sobre este mundo dominado por forças satânicas. Falar do reino de Deus era dizer: Deus é o significado último desse mundo. Ele irá intervir e curar. Essa utopia é o objeto da pregação de Jesus. Ele promete não ser apenas utopia. O reino de Deus não constitui outro mundo, mas é o velho mundo transformado em um novo mundo.498

Essa maneira como Jesus compreendeu o reino de Deus, a convicção de sua proximidade e, ao mesmo tempo, a relação estabelecida com Deus, considerando-o como

495

GONZÁLEZ, Antonio. Trinidad y liberación: La doctrina de la Trinidad considerada desde la perspectiva de la teología de la liberación, p. 26 (tradução nossa).

496 SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação, p. 126 (grifo do autor). No entanto, vale reconhecer a

importância destas obras na formulação do tema da Utopia. A de Platão é antes do Cristianismo e a de More é no contexto da cristandade moderna, carregada de Santo Agostinho e do Evangelho. Então, vale sinalizar a importância destas obras na construção-formulação de uma outra possibilidade histórica.

497 Cf. BOFF, Leonardo. Salvação em Jesus Cristo e processo de libertação. Concilium, n. 96, 1974, p. 83. 498 Cf. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador, p. 65-66.

Abba, justifica a seriedade em relação à dimensão histórica do reino de Deus. É esse embasamento que fundamenta a centralidade do reino de Deus na teologia da libertação. A realização e aparição do reino não são uma questão deixada para o final da história, mesmo que somente no final se dará sua plenitude, mas se deve antecipar já no presente. Sobrino reconhece que, apesar da pretensão de historicizar o reino, nunca será adequadamente historicizado, por ser utopia. No entanto, precisa ser historicizado, por intermédio de mediações históricas, e realizá-lo em vários níveis da complexidade da história.499

“Como realidade escatológica o reino de Deus é universal, nele podem entrar todos, embora nem todos de modo igual. Mas, diretamente, o reino de Deus é unicamente dos pobres”.500

Essa parcialidade do reino, no entanto, é caminho espinhento na história da Igreja. É uma questão dificilmente aceita, basta ver as intermináveis discussões referentes à opção pelos pobres.501 No entanto, para Sobrino, não fica margem de dúvida: “essa parcialidade de Deus nos parece uma constante em sua revelação”.502

Ao lado dessa parcialidade, fruto da revelação cristã, encontra-se, para Sobrino, o argumento da realidade interpeladora ao

quefazer teológico. A parcialidade com o pobre continua sendo essencial, ao menos diante da

triste realidade dos pobres e oprimidos. Nisso está o argumento último em favor da parcialidade, argumento indefeso, mas decisivo, que encontra sua verificação em Jesus.503 Por isso, é preciso falar da escatologia plenificante, mas sem esquecer a protologia da criação. Falar da vida em plenitude, sem esquecer a vida básica. Apelar ao mistério divino e para a vida plena, com o objetivo de desvalorizar o primário e o mínimo de vida, “supõe uma

499

Cf. TORRES SERRANO, Juan Manuel. El pueblo crucificado y su potencial salvífico histórico, p. 9.

500 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 128.

501 Essa é uma das questões nucleares da teologia da libertação. A história mostra que desde sua origem nunca

foi fácil de mantê-la, mas mantém-se como uma “sarça ardente”. Por um lado, aparece como uma sarça que queima e interpela como expressão de uma realidade dramática dos pobres que gritam por vida, e neles se reconhece o grito do próprio Deus. Por outro lado, as diferentes formas de apagar, ou esfumaçar essa sarça na revelação cristã, na tradição cristã, na teologia, fazendo dela uma questão secundária, optativa da fé cristã. O teólogo Aquino Júnior, ao assumir esse debate, reconhece que a opção pelos pobres, como é compreendida pela teologia da libertação, não comprometeria a universalidade da salvação cristã. A partir disso, questiona que normalmente quem faz esse tipo de objeção pertence às classes ou aos setores dominantes da sociedade. E acrescenta que não existe teologia socialmente neutra. Por isso a pergunta sempre a ser feita: a serviço de quem trabalha a teologia? E conclui recolocando: “O lugar social da teologia está determinado pelo lugar social da revelação e da fé que, de acordo com a Sagrada Escritura, não é outro senão os pobres e os marginalizados e seus processos de libertação. E o lugar dos pobres e marginalizados não compromete a universalidade da salvação, mas apenas determina o “a partir de onde” (pobres e oprimidos) e o “como” (processo de libertação) de sua realização histórica: é para todos (universalização), mas se realiza a partir dos pobres e marginalizados e seu processos de libertação (parcialidade) (cf. Teologia em saída para as periferias, p. 69).

502 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 130. 503 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 190.

compreensão errada do Deus de Jesus”. Reino de Deus, criação e boa notícia para os pobres estão em sintonia, não em contradição.504