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4.1 CENTRALIDADE DA MEDIAÇÃO PARA COMPREENDER A SOTERIOLOGIA

4.1.2 Conceito sistemático-evangélico do reino

Jon Sobrino apresenta o que ele entende sistematicamente por reino de Deus. Define: “reino de Deus é vida justa dos pobres sempre a um ‘mais’”.479

Primeiro, os pobres, por sua centralidade no Antigo Testamento e nos evangelhos sinóticos e por serem a maioria na realidade atual, são os destinatários primeiro do reino. Segundo, porque o conteúdo mínimo, e não único, é a vida justa dos pobres. Nessa definição, lembra que se fala de vida porque nela se concentra o histórico e utópico do reino de Deus. Fala-se o termo justa para indicar o caráter libertador e que a vida deve chegar a ser real e contra o anti-reino. A vida justa relaciona o conceito sistemático do reino de Deus com o conceito evangélico. Assim se torna boa notícia para milhões de seres humanos que, com a proximidade do reino, não estarão perto da morte. Terceiro, o reino de Deus é, então, um reino de vida, uma realidade histórica que, em si mesma, tende a algo ‘mais’, a utopia.480

476 SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.;

SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 1, p. 481 (tradução nossa).

477 Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.;

SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 1, p. 487 (tradução nossa).

478 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 196. 479 SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 196. 480 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 196-197.

4.1.2.1 A transcendência histórica do reino

Segundo definição evangélica e desde um conceito sistemático, o reino de Deus é um reino de vida e, especificamente, de vida justa dos pobres. Isso não significa que Sobrino se centre unicamente em uma questão econômica, social, ou material que o leve a uma redução ao caráter histórico-temporal, anulando assim sua dimensão de futuro. Vida pode apontar para o que há de plenificação e de utópico no reino de Deus, porque está perpassada de transcendência histórica e teologal.481

Com o objetivo de ilustrar esse mais que comporta a vida, Sobrino, considerando a experiência vivida com o povo de El Salvador, elabora a fenomenologia do pão. Descreve assim: 1) o reino começa com este mínimo que é a vida e simbolicamente se representa com o pão; 2) esse pão, sem dúvida, não remete simplesmente ao material-econômico, mas é a partir dessa realidade mínima que surgem perguntas remetendo a outras; 3) emerge, pois, a pergunta de como conseguir o pão; leva à dimensão prática; 4) faz perguntar pelo compartir; leva à dimensão ético-comunitária e celebrativa; 5) o pão partido e conseguido por alguns leva à questão do pão para outros. E, dessa maneira, aparece a pergunta pela dimensão social e política do pão.482

Frente a essa fenomenologia do pão, Sobrino esclarece três elementos importantes: 1) a passagem de uma dimensão a outra não é uma questão mecânica. Mostra a necessidade de espírito, ou seja, princípio de misericórdia, levando o ser humano a relacionar-se e interrogar- se diante dos que não têm pão; 2) a forma como isso se apresenta na vida de cada pessoa é coisa extremamente pessoal, os caminhos são diferentes; 3) a transcendência histórica se encontra presente não somente na teologia latino-americana da libertação, mas também nas outras teologias. Explícita ou implicitamente, todas as teologias possuem suas fenomenologias análogas ao pão e, a partir delas, remetem à plenitude da vida.483

Nesse contexto da dimensão histórico-transcendente do reino, Juan M. Torres Serrano explicita que Sobrino faz algumas precisões importantes:484 1) “A teologia da libertação começa metodologicamente com o que é primário na vida, mas, em honradez e fidelidade a

481

Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 197.

482 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 197-199. 483 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 199.

isso, encontra-se na dinâmica do ‘mais’”.485 O reino de Deus terá sua própria transcendência histórica, e isso porque a vida não se reduz simplesmente ao material. A teologia da libertação aprofunda o caráter histórico do reino, a vida, que em si mesma leva ao “mais” e, como não tem limite, leva ao utópico.486 2) A teologia da libertação sublinha o aspecto histórico e utópico do reino e a novidade de sua reflexão consiste na maneira como coloca os elementos em relação. 3) A teologia não desconhece o histórico do reino, não por simples razões éticas, senão porque crê que desta dimensão se pode direcionar adequadamente ao que o reino tem de utópico. 4) A plenificação final e escatológica do reino não pode deixar de lado e ignorar a realização da vontade de Deus na história dos seres humanos e, especialmente, essa vontade dirigida aos pobres, como se mostrou na revelação bíblica. 5) O utópico do reino de Deus não será, pois, aquele que sucederá no fim da história, senão aquele que se faz presente como força atraente na história. 6) Sobrino arranca assim uma maneira determinada de compreender a utopia. “A utopia é o que atrai fortemente, mobiliza, o que uma ou outra vez move os seres humanos, dando o seu melhor para realizar o reino. A teologia da libertação acredita que a utopia última está mais além da história, mas acredita que, a partir de agora, move o histórico”.487

4.1.2.2 A transcendência teologal do reino de Deus

Para Jon Sobrino, a transcendência histórica do reino surge como mediação para compreender a transcendência teologal do reino. A teologia da libertação, ao considerar o histórico do reino, não desconhece que o reino é de Deus. No entanto, assegura que por ser um Deus “do reino”, Deus vai aparecendo de maneira específica. Se o reino é “vida”, ao se referir ao “conteúdo” de Deus, a teologia pode chamar Deus de Deus da vida, mas, mais especificamente, de Deus da vida dos pobres, Deus da vida das vítimas. Essa relação é lógica, segundo o pensamento sobriniano, uma vez que o último para Jesus não foi simplesmente Deus, mas sim o reino de Deus, sua vontade realizada na história dos seres humanos.488

485 Cf. SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 199. 486

Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 1, p. 504 (tradução nossa).

487 SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.;

SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 1, p. 505 (tradução nossa).

A partir da análise da via dos destinatários do Reino e ao definir seu conteúdo mínimo como a vida digna para os pobres, sublinhando a dimensão histórica do reino, Sobrino não esquece que o reino é de Deus, assinalando assim sua transcendência teologal. Afirmar que o reino é dos pobres torna-se uma forma eficaz de expressar que o reino é de Deus. Portanto, assegurar os pobres como os destinatários do reino não causa nenhuma redução sociológica da teologia, porque assim é Deus: “Assim é Deus, tão bom”.489

Um Deus que manifesta sua realidade assim, e desde um ponto de vista histórico, quebra a lógica convencional de pensar Deus. Esse ser assim de Deus não é o pensado nem o pensável pela razão natural e muito menos pela razão pecaminosa. Faz surgir, segundo Sobrino, a parcialidade do reino como mediação histórica do que Deus tem de novidade e impensabilidade. É uma forma poderosa de deixar Deus ser Deus.

A “novidade” e o “impensável” de que os pobres são destinatários do reino se converte em mediação histórica da novidade e impensabilidade de Deus, de seu mistério, de sua transcendência com relação às imagens humanas de Deus. Aceitar que o destinatário do reino são os pobres é uma forma eficaz de deixar Deus ser Deus, de deixá-lo mostrar-se como é e como quer mostrar-se.490

A constatação é que, se o reino tem por destinatário os pobres e a partir deles se compreende o conteúdo mínimo, eles nos conduzem a uma afirmação teológica central: o reino é de Deus. O conteúdo definido como vida não anulará o caráter utópico e de abertura ao futuro que deve ter o reino de Deus. Dessa maneira, a insistência no histórico do reino, manifestado na vida justa dos pobres, não é impedimento para que esse reino siga sendo utopia. Ao mesmo tempo, se essa transcendência histórica não anula o utópico do reino, tampouco deixa de lado que Deus seja sempre maior.

Considerando que os pobres estão no coração de Deus, a lógica é que a transcendência histórica não anula a transcendência teológica, ao contrário, facilita sua compreensão e enriquece. No entanto, Deus continua sendo maior, mistério, uma vez que sua revelação é sempre livre e ultrapassa o pensar dos humanos sobre Ele. Essa construção argumentativa é fundamental na reflexão cristológica de Sobrino, segundo Bombonatto, porque relaciona mutuamente o transcendente e o imanente, o utópico e histórico.491

489

SOBRINO, Jon. Jesus, o Libertador, p. 155 (grifo do autor).

490

Cf. SOBRINO, Jon. Centralidad del reino de Dios en la teología de la liberación. In: ELLACURÍA, I.; SOBRINO, J. (org.). Mysterium Liberationis. v. 1, p. 491 (tradução nossa).

491 Cf. BOMBONATTO. Vera I. O seguimento de Jesus: categoria cristológica. In: SOARES, Afonso M. L.

Se o reino, a vontade salvífica de Deus se realiza na história, a salvação cristã não será estranha ao ser humano e à complexidade da história. A salvação será compreendida como libertação, ainda que ela não esgote em uma simples libertação socioeconômica. Nesse contexto, é salutar aproximar a reflexão realizada pelo teólogo Leonardo Boff. Ele insiste na necessidade de aceitar a experiência pascal no interior do processo e da práxis de libertação, para que não caia em um reducionismo da plenitude da salvação, compreendida simplesmente como libertação.

O processo de libertação deverá morrer aos seus próprios modelos e suas próprias conquistas: por um lado, o processo de libertação deve assumi-las com força total, porque essas conquistas constituem o reino presente nas ambiguidades da história, mas, por outro lado, deve morrer para eles, porque estes não são o todo da libertação e o todo do reino. Com sua “morte” se cria a possibilidade da ressurreição de outras concretizações mediadas pelo reino.492