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2.9 Evolução do Pensamento sobre Reflexão

2.9.2 Abordagens Contemporâneas sobre Reflexão

A lente pragmática adotada por Dewey conduz ao entendimento de que a experiência vivenciada pelo indivíduo é fruto de reflexões realizadas por gerações passadas e, portanto, precisa ser compreendida como resultante da coletividade, reconhecendo o caráter de inseparabilidade do sujeito em relação à sua história e contexto (ELKJAER, 2004; VINCE; REYNOLDS, 2008). Vince e Reynolds (2008) apresentam uma síntese das abordagens contemporâneas acerca da reflexão, enfatizando o caráter coletivo assumido por tais perspectivas, destacando quatro abordagens: crítica, pública, produtiva e organizacional.

A reflexão crítica é uma vertente desenvolvida principalmente por Mezirow (1990), que apontou como condição essencial a necessidade de discutir os pressupostos que fundamentam as crenças construídas pelos sujeitos. O autor propõe uma distinção entre a ação reflexiva, baseada na reflexão ex post sobre conteúdo e processo, e a não reflexiva, baseada no hábito e na introspecção. Para Mezirow (1990) a reflexão ocorre sobre as premissas, além do conteúdo e do processo, envolvendo o debate sobre as crenças que estabeleceram os pressupostos. Brookfield (2005) defende que a abordagem crítica é um fenômeno de aprendizagem inerente ao ser humano adulto e que isto implica em uma assimilação acrítica

das normas estabelecidas na infância e na adolescência. A maturidade presente na fase adulta possibilita maior clareza na análise e compreensão do mundo, levando a uma maior consciência social e política, possibilitando o entendimento e revisão dos pressupostos inerentes à situação que demanda o pensamento reflexivo.

Reynolds (2011) afirma que a influência dos gestores sobre trabalhadores, comunidades e meio ambiente demanda uma análise mais ampla da reflexão, levando à necessidade de extrapolação dos aspectos técnicos e organizacionais. A reflexão crítica precisa envolver questões sociais, políticas e culturais, visando ao debate acerca dos propósitos e intenções organizacionais e ao desafio dos pressupostos daquilo que é dado como certo e que fundamenta as políticas e práticas realizadas na organização. Para Reynolds (1999) são princípios da abordagem crítica: a) compromisso em questionar os pressupostos “taken for granted” (tidos como certos), incorporados na teoria e prática profissional; b) compreensão dos processos de poder e da ideologia inclusos no tecido social das estruturas institucionais, procedimentos e práticas; c) a visão social e não individual; e d) justiça e democracia como preceitos fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa, refletindo no trabalho, na educação e na vida social em geral. Sob a perspectiva profissional, a adoção de tais princípios implica na necessidade de indivíduos e equipes de trabalho avaliarem sua atuação considerando o cuidadoso exame das premissas inerentes e seus aspectos sociais e políticos, não restringindo a reflexão apenas a processos técnicos.

A corrente da reflexão crítica abarca questionamentos sobre pressupostos estabelecidos que embasem a estrutura e as práticas organizacionais. A perspectiva crítica envolve necessariamente as relações de poder, de modo a possibilitar aos indivíduos, a partir do entendimento de tais relações, a condição emancipatória frente ao contexto vivenciado. Isto envolve, conforme Le Cornu (2009), um processo de recuar, possibilitando o distanciamento e a separação necessária para a reflexão e compreensão acerca do objeto ou situação em análise. Apesar de se apresentar como uma reflexão com caráter direcionado ao indivíduo, é nítida sua contribuição para abordagens subsequentes que vieram a considerar a reflexão enquanto dimensão coletiva (HØYRUP; ELKJAER, 2006).

Fundamentado nos preceitos da abordagem crítica, Raelin (2001) propôs a abordagem da reflexão pública ou de relações sociais (HØYRUP; ELKJAER, 2006). Raelin (2001) argumenta que a reflexão tem sua forma associada aos diálogos de aprendizagem, que estabelecem confiança entre os pares nas esferas sociais, políticas e emocionais, além de possibilitar o cuidado necessário aos relacionamentos. Importante contribuição neste sentido

foi proporcionada por Mead (1934), para quem o relacionamento entre o indivíduo e a sociedade, mediado pela linguagem, se constitui como um processo contínuo de construção do ser como parte do ambiente social. Este autor entende ainda que através do discurso, seguido de reflexão, é que as mudanças podem ocorrer no âmbito comunitário. A ordem social estaria assegurada em função do escrutínio público das ideias e do desenvolvimento de valores compartilhados pelos sujeitos em sociedade.

Raelin (2001) propõe a existência de cinco habilidades para o desenvolvimento da prática reflexiva: ser, falar, disseminar, testar e provar. A do ser é representada pelo autor, central e pervasivo na elaboração do quadro representativo da forma com que o indivíduo pensa, seleciona, nomeia e organiza os fatos. O falar indica a capacidade do sujeito em capturar e compreender o estado do grupo ou seu significado no tempo específico, de modo a articular a voz coletiva consigo mesmo. Destarte, o indivíduo encontra o timbre para compartilhar suas dúvidas ou expressar seus sentimentos em um momento específico ao longo da experiência. É a expressão daquilo que o sujeito pretende que o grupo conheça. Então, o indivíduo testa seu pensamento com o grupo, de modo a descobrir outras formas de se comportar e pensar, externalizados pelos demais membros. Neste momento, o sujeito tenta promover um processo de reflexão coletiva, em que o debate visa à exploração da opinião expressada. Para consolidar a posição estabelecida, torna-se necessário provar a validade das ideias, através de fatos, razões, suposições, inferências e possíveis consequências da ação.

Percebe-se que a ênfase anterior da reflexão reside na disseminação pública e espontânea das ideias, o que demanda o estabelecimento de um ambiente de confiança em que a experiência das pessoas possa romper o pensamento grupal e servir como base para ações futuras (RAELIN, 2001). Para Høyrup (2004, p. 448) “a prática reflexiva abre para o escrutínio público as nossas interpretações e avaliações de nossos planos e ações”. Ao realizar tal prática, os indivíduos se sujeitam à revisão de seus pressupostos ou à validação e desenvolvimento dos planos e ações mediante o diálogo, implicando em aprendizagem individual e organizacional (RAELIN, 2002).

A reflexão pública é difícil de ser alcançada, especialmente por envolver uma profunda interveniência de emoções e de políticas, conforme o entendimento de Jordan (2010). As pessoas são estimuladas a confrontar, através da prática reflexiva, suas interpretações dentro do contexto social. Dessa maneira, ocorre o compartilhamento da aprendizagem de modo coletivo, no âmbito da sociedade.

A abordagem da reflexão organizacional visa à explicitação e ao compartilhamento de assuntos organizacionais e de problemas do trabalho, de modo a planejar as decisões, ações e mudanças na estrutura e nas políticas de trabalho (JORDAN; MESSNER, BECKER, 2009). Esta perspectiva corresponde à capacidade coletiva de questionar pressupostos mediante a compreensão continuada da natureza e das consequências das relações sociais dentro das organizações. Korthagen (2005) define uma organização reflexiva como aquela em que há potencial humano no desenvolvimento de expertise com base na reflexão sistemática, de modo organizado e continuado. Essa abordagem visa à redução das resistências nos processos, permitindo a criação e sustentação de oportunidades para a mudança e aprendizagem nas organizações através de comunidades de participação.

Vince (2002) afirma que a reflexão é um processo, relacionado com questões e aspectos sociais e políticos do trabalho na organização. A responsabilidade pela reflexão é transladada do âmbito individual para o coletivo, cabendo à organização a criação de processos voltados para a reflexão coletiva através da desestabilização de práticas convencionais adotadas (REYNOLDS; VINCE, 2004).

A reflexão se insere em uma nova perspectiva, convertendo-se em oportunidade para a aprendizagem nas organizações mediante a eliminação de barreiras, a partir da análise das consequências das reflexões realizadas pelos membros organizacionais. Deste modo, configura-se como uma tentativa de vincular a reflexão coletiva com o pensamento sobre o seu impacto nas organizações (VINCE; REYNOLDS, 2008).

A abordagem da reflexão produtiva enfatiza a dualidade entre os objetivos organizacionais de produtividade e qualidade de vida no trabalho, que precisa ser mitigada ou minimizada para tentar produzir uma maior satisfação para os indivíduos e para a organização (VINCE; REYNOLDS, 2008). O foco da reflexão reside no potencial de aprendizagem no trabalho, desenvolvimento e implantação das atividades de aprendizagem coletiva que promovam mudanças laborais e alcancem produtividade e melhorias no engajamento pessoal (VINCE; REYNOLDS, 2008). É perceptível a preocupação em avaliar como as competências estão distribuídas na organização, bem como na elaboração de processos de monitoramento e intervenção que possibilitem a construção de conexões entre a produtividade e a satisfação no trabalho (CRESSEY; BOUD; DOCHERTY, 2006).

A perspectiva produtiva está direcionada para a obtenção de respostas às condições de trabalho e de aprendizagens vivenciadas atualmente nas organizações. Para Cressey, Boud e Docherty (2006) a reflexão não se configura como um fim em si mesmo, mas como um

processo que pode conduzir à produção de algum resultado de aprendizagem aplicado a uma situação concreta. Outra característica reportada pelos autores versa sobre a conexão entre a produção e a ampliação da aprendizagem no local de trabalho. Apresenta um caráter generativo, considerando que visa não somente à obtenção de resultados organizacionais melhores, como também tornar os indivíduos atores mais ativos no processo de aprendizagem, gerando um contexto em que novos conhecimentos são constituídos em um ambiente de trabalho agradável. Torna-se essencial a identificação de aspectos inerentes à dinâmica organizacional, de modo que aspectos restringentes da capacidade coletiva de reflexão sejam mitigados, mediante a criação de ambiente de mútua confiança e respeito.

Ressalte-se que o delineamento de fronteiras entre as abordagens e até mesmo dentro de uma abordagem específica é tênue. Yanow e Tsoukas (2009) reconhecem a incapacidade de existência de uma única modalidade de reflexão, mas de um continuum reflexivo que ocorre entre indivíduos e objetos no tempo e no espaço. A dimensão temporal, relacionada às dimensões histórica e contextual da reflexão, será objeto da discussão na próxima seção.

2.10 Aprendizagem em Organizações, Reflexão e a Dimensão