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Algumas notas históricas sobre o instituto da propriedade no Direito brasileiro

A propriedade constitui uma das categorias mais complexas do pensamento jurídico, pois sua compreensão pode ocorrer por diversas perspectivas, permeadas por aspectos históricos, filosóficos, econômicos e normativos.

A história territorial brasileira começa com a ocupação do solo pelos portugueses. Na verdade, a:

Ocupação de nosso solo pelos capitães descobridores, em nome da Coroa portuguesa, transportou, inteira, como num grande vôo de águia, a propriedade de todo o nosso imensurável território para além-mar – para o alto senhorio do rei e para a jurisdição da Ordem de Cristo. (LIMA, 1990, p. 15).

Depois da ocupação das terras, os portugueses dividiram o território do Brasil. A concessão era feita pelo sistema de sesmaria, que representava o modo rápido de exploração econômica, baseado no sistema jurídico português. A sesmaria, uma porção de terra devoluta ou abandonada, fundamentou a organização social do Brasil, lastreada no latifúndio monocultor e escravagista.

2 Conforme BBC, em Hong Kong, Jornal O Estado de São Paulo e Jornal Folha de São Paulo, de 16 de março de 2007 e Revista Veja, de 21 de março de 2007.

Os governos das capitanias hereditárias doavam as terras a quem se dispusesse a cultivá- las. Os sesmeiros – donatários das sesmarias – pagavam uma pensão ao Estado, em geral constituída pela “sexta parte dos frutos” (LIMA 1990, p. 19). A Resolução 76, de 17 de julho de 1822, extinguiu oficialmente as sesmarias.

Em 18 de setembro de 1850 foi editada a Lei n° 601, conhecida como Lei de Terras, que ratificou formalmente a posse concedida pelas sesmarias sobre o terreno ocupado com cultura efetiva, extinguiu o regime jurídico das posses sem cultura efetiva e resguardou o direito dos adquirentes, com títulos legítimos, reconhecendo-lhes o domínio das terras.

Essa lei tornou “possível aviventar a já então indistinta linha divisória, entre as terras do domínio do Estado e as do particular.” Possibilitou, ainda, identificar, com precisão, as chamadas terras devolutas, como sendo:

1) As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias ou outras concessões do governo geral ou provincial, não incursos em comisso, por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura; 2) as que não se acharem dadas por sesmarias ou outras concepções de governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas pela lei; 3) as que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas pela lei; 4) as que não se encontrarem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal (art. 3) (LIMA, 1990, p. 70).

Pelas disposições da Lei n°. 601, já se notava a preocupação com o interesse público, quando o legislador determinou a cessão do terreno privado para estradas públicas de um povoado a outro ou para um porto de embarque, a servidão gratuita aos vizinhos para acesso a uma estrada pública, povoação ou porto de embarque, o consentimento para tirar as águas desaproveitadas e sua passagem. A norma legal reservou, também, terras para a colonização dos indígenas, para a fundação de povoações, abertura de estradas e quaisquer outras servidões e assento de estabelecimentos públicos.

Embora considerada futurista, a Lei de 1850 não alcançou o efeito desejado e, por isso, em 1878, foi encomendado um anteprojeto, com vistas a reformar a Lei de Terras, a uma comissão composta por José Agostinho Moreira Guimarães, Augusto José de Castro e Silva, Alfredo Rodrigues Fernandes Chaves e Joaquim Maria Machado de Assis. O relatório foi apresentado, em 1879, ao Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Públicas, João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu, no Rio de Janeiro, e resultou no Projeto n° 121-A, de 22 de setembro de1880, que, no entanto, não logrou aprovação.

A análise do instituto da propriedade nos primórdios do constitucionalismo demonstra que a propriedade teve destaque nos textos fundamentais por se constituir um dos pontos principais do sistema jurídico burguês. A partir do Estado Social, que criou a constituição econômica, a propriedade passou a ser mais detalhada em sede constitucional.

No Brasil, as Constituições de 1824 e 1891 trataram da propriedade em sua feição liberal. A Constituição de 1824 acompanhou as idéias da Revolução Francesa, consagrando o direito de propriedade em sua plenitude, e a de 1891 manteve o mesmo espírito. O condicionamento ao cumprimento da função social da propriedade só vem a aparecer na Constituição de 1934, que se refere ao direito de propriedade e ao seu exercício em prol do interesse social ou coletivo. Em 1937, foi inserida na Constituição a desapropriação por interesse social, já evidenciando uma concepção funcional da propriedade.

A Constituição de 1946 condicionou o uso da propriedade ao bem-estar social; a de 1967 consagrou expressamente o princípio da função social. A Constituição de 1988 configurou a propriedade, conjugando os interesses do proprietário às exigências da ordem comunitária e aos valores da solidariedade e dignidade humana.

Na Carta de 1967, a função social constava como cânone informador da ordem econômica; na de 1988, além de sua manutenção como um dos pilares da ordem econômica, passou a fazer parte do capítulo dos direitos e garantias fundamentais, como corolário do próprio direito de propriedade.

A preocupação com a função social da propriedade foi introduzida na ordem jurídica brasileira pela Constituição de 1946, que, embora sem menção expressa ao princípio, condicionava o uso da propriedade ao bem-estar social. A Emenda Constitucional n°. 1/69 tratou da matéria, modificando o artigo 160 da CF/46, para determinar que “A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social”, baseada na função social da propriedade, além, é claro, de outros princípios.

A Lei nº. 4.504, de 30 de novembro de 1964, que dispôs sobre o Estatuto da Terra, tratou da função social da propriedade rural. Daí por diante, a expressão “função social” foi incorporada nas Constituições (artigo 157, III, da CF/67 e artigo 160, III, da CF/69) até se chegar à atual, de inspiração mais próxima:

À doutrina social da Igreja Católica, especialmente às Encíclicas Mater et Magistra, do Papa João XXIII, e Populorum Progressio, do Papa João Paulo II, "nas quais se associou a propriedade a uma função social, ou seja, à função de servir como instrumento para a criação de bens necessários à subsistência de toda a humanidade. (PIETRO, 1997, p. 105-106)

A partir da Constituição de 1988, a função social modificou a natureza da propriedade, que não pôde mais ser concebida como um direito meramente individual. Assim, é maior o grau de proteção oferecido à propriedade que cumpre a sua função social.

A função social deve, pois, ser entendida como um elemento determinante para estabelecer o grau de proteção constitucional ao direito de propriedade. Nesse contexto, a Constituição Federal prevê a perda da propriedade, com respectivo ressarcimento, exceto no caso de cultivo ilegal de plantas psicotrópicas.

O conjunto de normas constitucionais sobre a propriedade mostra que não se pode mais considerá-la um direito individual, nem instituição de direito privado. Embora prevista como um direito individual (artigo 5°, XXII, da CF/1988)3, o seu conceito e significado foram minorados em razão do seu fim, o de assegurar uma existência digna a todos, de acordo com os princípios de justiça social.

A Constituição vigente trouxe relevantes modificações na velha concepção de propriedade, na forma de um direito absoluto, natural, privatista e imprescritível. O direito de propriedade, de uma relação entre uma pessoa e uma coisa, foi evoluindo com o passar dos tempos até chegar à concepção da propriedade como função social.

A partir de então, foi superado o entendimento de que o direito de propriedade se tratava de um direito natural (em que o indivíduo era o sujeito de um direito em potencial), para ser concebido apenas quando atribuído legalmente a uma pessoa, que pode usar, gozar e dispor de seus bens, respeitados os deveres de vigilância e restrições de ordem pública.