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Todas as pessoas têm direito à cidade. Os direitos à cidade e da cidade não são novos no ordenamento jurídico brasileiro. As cidades têm origens remotas, tanto como a humanidade. Uma se liga à outra. A união de pessoas resultou na formação, ainda que, embrionária, da cidade. Em eras remotas, é claro que o direito e a cidade não tinham a sistematização de hoje ou de 50 ou 100 anos passados. Cada época tem o seu sistema de desenvolvimento típico e o direito, que não pode ficar alheio à realidade, procura, também, representar os anseios jurídicos da sua era. Atualmente, as cidades estão contempladas na legislação e a proteção que se deu a elas é ampla, e exercitá-la só depende do titular ativo do direito.

Esse direito pede, quer e exige uma cidade onde os cidadãos tenham garantidas as necessárias condições de vida – do lazer à segurança. Todavia, ao se constatar a estrutura de classes sociais, evidencia-se a fragmentação da cidade, com parte da população a sua margem. Viver à margem da sociedade revela as desigualdades sociais, quando não as acentua.

Nos dias atuais, é notável a compartimentação do espaço urbano, que, se não é causa, contribui fortemente para a violência e criminalidade. Essa constatação traz sérias preocupações, pois o Brasil é um país majoritariamente urbano (índice superior a 80%). Quando se fala em violência, não se pode entendê-la como um sentido restrito à segurança, prevenção, polícia, criminalidade.

Os aspectos críticos no atendimento dos hospitais públicos, com os pacientes nos corredores, a falta de leitos nas unidades de terapia intensiva, a falta de medicamentos não podem deixar de ser considerados violência contra o ser humano. Não pode, também, ser esquecida a falta de comida, de moradia, de escola, de transporte, outra dramática forma de violência.

A violência não tem um ou dois componentes; é resultado de multifatores. Esse conjunto de fatos autoriza inferir que as pessoas enquadradas ou vítimas da violência não têm direito à cidade? A resposta depende do interlocutor e de sua concepção de valor.

O valor de cada um difere do do outro, embora nos princípios básicos de ética, honestidade etc., a maioria tenha o mesmo pensamento. “O que faz de uma multidão de homens um povo, de um grupo de indivíduos, famílias ou clãs uma cidade? O que os cimenta em uma unidade, dando-lhes um modo de existência comum, uma vida coletiva?” (CARDOSO, 2003, p. 119)

O direito à cidade está intrinsecamente ligado ao direito da cidade, que deve abranger as questões teóricas e ideopolíticas sobre a urbe. O conjunto de questões trazido ao conhecimento jurídico contemporâneo, pela urbanização ou pela aplicação de políticas públicas ou, ainda, pela exclusão social ou quaisquer outros motivos, compõe o campo do direito da cidade, exigindo uma profunda reflexão dos juristas, no sentido de compreender, para zelar juridicamente, a cidade, como lugar de todos.

A literatura jurídica recente se mostra diversificada, ao abordar desenvolvimento urbano, reforma urbana, desenvolvimento sustentável, cidades sustentáveis, gestão democrática da cidade, política urbana, direito urbanístico, plano diretor, demonstrando a importância do conhecimento jurídico nas relações sociais do espaço urbano brasileiro. Entretanto, o direito à cidade não se resolve, tão-somente, com normas legais. O direito “não funciona se estiver distante da realidade, se não levar em conta os fatores materiais da sociedade.” (OLIVEIRA, 2007, p. 71)

O que é necessário é a efetivação da norma por meio de programas que promovam justiça, humanização e democracia nas cidades. O crescimento da população urbana é notório e os modelos de sociedade, em que os padrões de riqueza e poder altamente concentrados excluem parte da população, contribuem para aumentar a favelização.

A cidade como direito em vez de o direito à cidade é o termo utilizado por Rodrigues (2007)40 para ressaltar a importância do espaço. Segundo essa autora, a cidade como direito tem vários significados e conteúdos e “tem como base a vida real, o espaço concreto e o tempo presente. Ao contrário, no ideário da cidade ideal, o espaço e o tempo são abstrações.” A base real, sustentação da cidade como direito, de acordo a autora, demonstra a complexidade do processo de urbanização, da produção do espaço, da reprodução ampliada do capital, das desigualdades sociais, econômicas e sócio-espaciais. E a cidade ideal, objeto do direito à cidade, reflete o planejamento do Estado capitalista e do capital. Os problemas são desvios do modelo, que podem ser solucionados com novos planejamentos e tecnologias, que, embora possam transformar a cidade real, não produzem nem constroem a cidade ideal. Inegável a coerência do pensamento de Rodrigues (2007). Todavia, ao se pensar o direito à cidade, não se deve entendê-lo como um direito em hipótese, sob pena de se minimizar o conteúdo da expressão. O direito à cidade deve ser compreendido numa extensão plena, incorporando o direito da cidade e a cidade como direito, pois o que se deseja, nesse contexto, é uma cidade com concretude, a partir do planejamento e das necessárias transformações operadas na cidade real, para torná-la o modelo planificado.

O “legislador e o aplicador da lei não devem imaginar uma realidade para daí confeccionar ou aplicar as leis, sob pena de ela se transformar numa roupa que ficará guardada no armário à espera de o corpo atingir o tamanho em que será possível a sua utilização.” (OLIVEIRA, 2007, p. 71) Mas, isso não significa que a lei só deverá existir quando a realidade estiver consolidada ou, pelo menos, compreendida. Afirma-se que uma lei deve tratar de questões presentes na realidade, em situações já existentes ou previsíveis, para que a norma tenha aplicabilidade e não gere disfunções na sua utilização. É evidente que a lei não pode ser elaborada ou aplicada somente quando a realidade estiver consolidada ou totalmente compreendida, pois, se assim for, o direito não se apresentará como indutor da estabilidade social.

O direito à cidade coliga e integra o processo de urbanização e a atuação dos agentes do Poder público e da própria sociedade como partícipe e destinatária do resultado concreto da cidade ideal, que se pretende dar aos cidadãos; isto, claro, sem a pretensão do desaparecimento total das desigualdades sócio-espaciais e econômicas.

40 RODRIGUES, Arlete Moysés. A cidade como direito. IX Colóquio Internacional de Geocrítica. Porto Alegre: UFRGS, 28 de mayo-1 junio de 2007. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/9porto/progse.htm>. Acesso em: 10 jul. 2007.

As cidades devem ser um espaço que ofereça condições eqüitativas aos seus habitantes, de uma vida digna, independentemente das características sociais, culturais, étnicas, resultante de uma gestão pública compromissada com o povo. Uma cidade justa, humana, saudável e democrática, anseio e direito de todos, deve, na sua governança, preservar os direitos humanos41 a fim de eliminar ou, pelo menos, minimizar as desigualdades sociais, permitindo aos seus moradores que se apropriem e usufruam da riqueza econômica e cultural. É preciosa a inspiração de Calvino (2006, p. 36):

[...] é inútil determinar se Zenóbia deva ser classificada entre as cidades

felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas:

aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e

aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados.

A Constituição Brasileira de 1988 reconhece como fundamental o direito à cidade, expressando-o na função social da cidade e da propriedade. A regulamentação dos artigos constitucionais acerca dessa matéria ocorreu com a edição da Lei n° 10.257 de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade, que apresenta a execução da política urbana brasileira, cujo objetivo é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

O Estatuto da Cidade provocou uma revisão das noções política e cultural de direito à cidade, entrevendo-a como um lugar “não somente geográfico e de reunião de pessoas, mas como um espaço destinado à habitação, ao trabalho, à circulação, ao lazer, à integração entre os seres humanos, ao crescimento educacional e cultural.” (MEDAUAR & ALMEIDA, 2004, p. 25-26).

O direito à cidade no sistema legal brasileiro o coloca no mesmo plano dos demais direitos de defesa dos interesses coletivos e difusos do consumidor, meio ambiente, patrimônio histórico e cultural, criança e adolescente, economia popular. Importante lembrar que esse

41 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS - Adotada e proclamada pela Resolução 217 A

reconhecimento jurídico da proteção legal do direito à cidade é inovador na ordem jurídica interna do país.

A forma tradicional de garantir os direitos dos habitantes das cidades sempre se pautou na defesa de direitos individuais, como forma de proteger os direitos da pessoa na cidade. No Brasil, o direito avançou ao instituir a proteção legal, com objetivos e elementos próprios, configurando-se um novo direito humano, que, na linguagem técnica jurídica, se caracteriza como direito fundamental protegido constitucionalmente.

A experiência brasileira de reconhecer institucionalmente o direito à cidade, disciplinando, no artigo 18242 da Constituição Federal de 1988, a política urbana, que veio a ser regulamentado pelo Estatuto da Cidade, artigo 2º, I43, criando, também, o Ministério das Cidades, contribuiu para a introdução do tema em fóruns internacionais urbanos em que são discutidos assentamentos urbanos. Como exemplo, registre-se o tratado da questão urbana, denominado Por cidades, vilas e povoados, justos, democráticos e sustentáveis, elaborado na Conferência da Sociedade Civil sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro, em 1992 (ECO-92).

Esse tratado incorpora as contribuições do Fórum Nacional de Reforma Urbana e da organização internacional Habitat Internacional Coalition, e nele se concebe o direito à cidade, como o direito à cidadania, direito dos habitantes das cidades e povoados a participarem da condução de seus destinos, incluindo o direito à terra, aos meios de subsistência, moradia, saneamento básico, saúde, educação, trabalho, lazer, alimentação, transporte público, informação, liberdade de organização, bem como respeito às minorias, à pluralidade étnica, sexual e cultural, aos imigrantes, à preservação da herança histórica e cultural e usufruto de um espaço culturalmente rico e diversificado, sem distinção de gênero, nação, raça, linguagem e crenças.

42 Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

43Art. 2º. [...]

Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; [...]

O tratado sobre a questão urbana, denominado Por cidades, vilas e povoados, justos,

democráticos e sustentáveis compreende a gestão democrática da cidade, como forma de

planejar, produzir e governar as cidades, com a participação e o controle da sociedade civil, priorizando o fortalecimento e a autonomia do Poder público local. A gestão democrática foi objeto do Estatuto da Cidade, em 2001.

A função social da cidade, que no Brasil passou a ser princípio constitucional, figurando no capítulo Da Política Urbana, está compreendida no tratado Por cidades, vilas e povoados,

justos, democráticos e sustentáveis, como o uso socialmente justo do espaço urbano com

apropriação do território de forma democrática quanto ao poder, à produção e cultura, observados os paradigmas da justiça social e condições ambientalmente sustentáveis.

Na Conferência Global sobre Assentamentos Humanos das Nações Unidas, Habitat II, realizada em Istambul, em 1996, foi introduzido um diálogo sobre o direito à cidade e à reforma urbana. E o direito à moradia, embora tenha gerado polêmica, foi reconhecido como um direito humano por organismos internacionais, a exemplo da Agência Habitat das Nações Unidas.

A Agenda Habitat é o documento oficial dessa conferência e, ao tratar do reconhecimento do direito à moradia, estabelecendo compromissos para que os países revertam as desigualdades e estabeleçam medidas para impedir a violação de direitos nos assentamentos humanos, impulsionou a construção do direito à cidade em âmbito internacional.

O Fórum Social Mundial44, que tem como um dos objetivos engajar organizações de cidadãos na luta por uma sociedade justa e solidária, tornou-se, também, palco para tratar da internacionalização do direito à cidade, construindo, a cada ano, uma Carta Mundial do Direito à Cidade, com tópicos sobre a gestão da cidade, seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. As suas três primeiras edições, realizadas em 2001, 2002 e 2003, no Brasil, na cidade de Porto Alegre, em 2004 foi realizado em Mumbai, na Índia, em 2005 voltou para Porto Alegre, em 2006 foi policêntrico, com a realização em três sedes (Bamako (Mali-África), Caracas (Venezuela-América) e Karachi (Paquistão-Ásia), em 2007, foi realizado entre os dias 20 e 25 de janeiro, em Nairóbi, Quênia-África.

44É um espaço de debate democrático de idéias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, organizações não governamentais e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo. (Disponível em: <http://www.forumsocialmundial.org.br>. Acesso em: 10 jul. 2007.)

O direito à cidade na Carta Mundial prevê que todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade, sem discriminação de gênero, raça, idade, etnia e orientação política e religiosa, a fim de construir uma sociedade justa e solidária, estabelecendo os seguintes princípios:

1. Gestão democrática da cidade; 2. função social da cidade; 3. função social da propriedade; 4. exercício pleno da cidadania; 5.igualdade, não discriminação;

6. proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis; 7. compromisso social do setor privado e

8. impulso à economia solidária e a políticas impositivas e progressivas.

No Brasil, por meio da Medida Provisória 2.220, de 09 de setembro de 2001, foi criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, que, pela Medida Provisória 103 de 01 de janeiro de 2003, convertida na Lei nº 10.683 de 28 de maio de 2003, passou a denominar-se Conselho das Cidades-ConCidades45. A sua composição foi estabelecida pelo Decreto no. 5.790 de 25 de maio de 2006, como órgão colegiado de natureza deliberativa e consultiva, integrante do Ministério das Cidades46, também criado pela MP-103, com a finalidade de estudar e propor as diretrizes para a formulação e implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, bem como acompanhar e avaliar a sua execução, conforme disposto no Estatuto da Cidade.

Em outubro de 2001, foi realizado na cidade de São Paulo o 1° Congresso Nacional pelo Direito à Cidade, com enfoque no desenvolvimento urbano e cumprimento das funções sociais da cidade, da propriedade e participação popular.

Em Brasília aconteceu, de 23 a 26 de outubro de 2003, a 1ª Conferência Nacional das Cidades, com 2,5 mil delegados dos 27 estados. Os trabalhos foram desenvolvidos a partir do lema Cidade para Todos e do tema Construindo uma política democrática e integrada para

as cidades. Dos 5.560 municípios existentes no Brasil, 3.457 participaram de conferências

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Atualmente, é constituído por 86 titulares – 49 representantes de segmentos da sociedade civil e 37 dos poderes públicos federal, estadual e municipal – além de 86 suplentes, com mandato de dois anos. A sua composição inclui, ainda, nove observadores representantes dos governos estaduais, que tiverem Conselho das Cidades, em sua respectiva unidade da Federação.

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Criado com a missão de combater as desigualdades sociais, transformando as cidades em espaços mais humanizados, ampliando o acesso da população à moradia, ao saneamento e ao transporte. Ao Ministério compete tratar da política de desenvolvimento urbano e das políticas setoriais de habitação, saneamento ambiental, transporte urbano e trânsito.

preparatórias à nacional, sendo 1.430 municipais e 150 encontros regionais, de que participaram 2.027 municípios, além das 26 conferências estaduais e uma no distrito federal. A 2ª Conferência Nacional das Cidades, realizada no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, entre os dias 30 de novembro e 03 de dezembro de 2005, contou com a participação de 1820 delegados e 410 observadores de todos os estados brasileiros, de diferentes segmentos.

Foram discutidas as formulações da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano - PNDU, no processo de planejamento e articulação para construção e transformação das cidades brasileiras em espaços mais sustentáveis. A 2ª Conferência Nacional das Cidades debateu, também, a participação e o controle social; questão federativa; política urbana regional e metropolitana e financiamento do desenvolvimento urbano. Antes do encontro nacional, foram realizadas conferências municipais, regionais e estaduais.

A cidade, como espaço político, produtivo e reprodutivo da vida social e do cotidiano é, sem dúvida, um ambiente de construção dos direitos, como, por exemplo, a Plataforma Mundial de Luta pelo Direito à Cidade, Seminário Mundial pelo Direito à Cidade, Carta Mundial dos Direitos Humanos nas Cidades, Observatório Internacional do Direito à Cidade, Fórum Nacional de Reforma Urbana, com papel decisivo para garantir mudanças em prol do interesse das maiorias e construção de um novo modelo de gestão das cidades.

O direito à cidade é inerente ao cidadão, que tem a faculdade de exercitá-lo, exigindo transparência na gestão pública, desenvolvimento urbano sustentável, com adoção de políticas que priorizem a produção de habitação de interesse social e o cumprimento da função social das propriedades pública e privada, observado sempre o interesse coletivo.

O direito à cidade vai resultar – sejamos utópicos – em um local onde a vida tenha a mansuetude colhida por Calvino (2006, p. 136): “mediante minuciosa regulamentação, a vida da cidade flui com a calma do movimento dos corpos celestes e adquire a necessidade dos fenômenos não sujeitos ao arbítrio humano”, pois esse é o propósito da Constituição Federal em vigor, ao assegurar uma existência digna com base nos objetivos fundamentais da República de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.