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O direito à cidade, entendido na sua forma técnica, não incorpora o verdadeiro direito à cidade. Ter direito à cidade não significa, apenas, tê-lo em uma conotação que albergue a

sustentabilidade e a isonomia entre os cidadãos, desprezando-se os direitos humanos, aos quais se incorporam a exigência de uma cidade que preserve a memória e o referencial para os seus habitantes, pois a cidade é a cidade (LISPECTOR, 1998, p. 100) e é ela a guardar as evocações da memória, que, por sua vez, dão vida a vida.

As pessoas caminham nas ruas da cidade pelas mais variadas razões e, por isso, diz Yamada, arquiteta em Curitiba, “é necessário que os planejadores urbanos vejam a cidade através dos pés, e não de cima de uma prancheta.” (YAMADA, 2007)47.

As pedras com que se constrói uma cidade não são suficientes para edificá-la. Não basta dar um nome a esse aglomerado de construções para se ter uma cidade. Muito mais que um nome, uma cidade precisa construir sua história, desvendar sua origem e perenizar uma memória para que, no cotidiano, seus habitantes a tenham nos seus referenciais de vida. A cidade representa a própria civilização. O processo civilizatório é gestado dentro da cidade, que, a partir dele, passa a ser mais que um abrigo, com bem lembra o poeta Baudelaire (1985), no poema Os sete velhos:

Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante! Flui o mistério em cada esquina, cada fronte,

Cada estreito canal do colosso passante. (BAUDELAIRE, 1985, p. 331). A concepção de cidade não pode ter sentido unívoco e, por isso mesmo, tem que se pensar nos direitos humanos como seu elemento mais importante e indissociável. Conhecer “uma cidade não é simples” e “é preciso, antes de mais nada, reconhecer as diferenças.”(PANERAI, 2006, p. 11).

A cidade tem o ser humano como sua essência e não pode, pois, ser pensada, entendida e edificada, apenas, como um espaço para a moradia e demais serviços a ela inerentes. O direito à cidade é pleno, embora subjugado às contradições nela encontradas. Pleno no sentido de busca da cidadania, da dignidade humana, uma empreitada difícil, diante da polaridade na pretendida igualdade entre os homens: de um lado, a pobreza, a falta de instrução, a inacessibilidade aos serviços básicos, à guisa de ilustração; de outro, o reverso de tudo. Não é por menos que a Carta dos Direitos Humanos nas Cidades dispõe que:

47YAMADA, Ana Carolina Fackes. A alma da cidade. Personagens urbanos de Florianópolis. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc111/mc111.asp>. Acesso em: 11 jul. 2007.

1. A cidade é um espaço coletivo culturalmente rico e diversificado que pertence a todos os seus habitantes que têm o direito de encontrar nela as condições necessárias para sua realização política, social e ecológica, assumindo deveres de solidariedade;

2. As autoridades municipais fomentam, por todos os meios de que dispõem, o respeito da dignidade, o acesso aos equipamentos e serviços e a qualidade de vida de seus habitantes. (artigo 1°)48.

A Plataforma Nacional pelo Direito à Moradia e Cidade, pela Gestão Democrática, e pela Reforma Urbana, elaborada no 1° Congresso Nacional pelo Direito à Cidade, ocorrido nos dias 15, 16 e 17 de outubro de 2001, apresenta, como cidade desejada aquela:

- que respeite e proteja o direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra- estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

- constituída de direitos e de valores, que inclua o trabalhador como sujeito de sua construção;

- cujos governos sejam comprometidos com a política urbana de inclusão social;

- que articule, integre políticas habitacionais com políticas de inclusão social;

- que articule políticas locais com políticas regionais;

- em que as políticas públicas habitacionais expressem a auto- sustentabilidade;

- com gestão democrática que contemple a universalidade de visões sobre ela;

- que garanta a função social da propriedade;

- em que o acesso à terra signifique acesso à terra urbanizada;

- planejada em que os eixos de transporte coletivo e do uso do solo urbano sejam questões centrais49.

A cidade assim desejada cumpre e respeita os princípios constantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, no seu artigo 1°, já traduz a essência do que trata: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.”

Essa cidade presente no imaginário do cidadão poderá ser vista sem vidros coloridos, pois a sua beleza perpassa todas as cores e não precisa de maquiagem para ser mostrada e para os

48 Disponível em: <http://.dhnet.org.br/fsmrn2002/carta_dhcidades.html.>. Acesso em: 11 jul. 2007. 49 Id., Ibid.

que nela vivem. Não haveria, nesta cidade, o ambiente focalizado no primoroso texto de Baudelaire, O mau vidraceiro50.

[...]

“Mas como?

Você não tem vidros coloridos? Vidros cor-de-rosa, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros de paraíso? Que atrevido é você! Ousa passear pelos bairros pobres e nem mesmo possui vidros que tornem a vida bela de se ver!” [...]

E o empurrei com vivacidade para a escada na qual tropeçou resmungando. Aproximei-me da sacada e agarrei um vasinho de flores e, quando o homem reapareceu no vão da porta, deixei cair perpendicularmente meu engenho de guerra na borda traseira de suas forquilhas; e derrubado pelo choque, ele acabou de destroçar sob suas costas toda a sua pobre fortuna inconstante, que produziu o ruído estrondoso de um palácio de cristal atingido por um raio. E, embriagado por minha loucura, gritei-lhe furiosamente:

"A vida bela de se ver! A vida bela de se ver!" (BAUDELAIRE)

A vida bela de se ver deve ser vivida e vista nas cidades dirigidas ao homem, pois esse contexto há de preservar o lugar do cidadão para o cidadão, respeitando os direitos humanos alinhados na Constituição Federal. As cidades “evocam pluralidades” (GOMES, 2001, p. 232) e, embora cada uma tenha a sua história e cultura, é inafastável que se destina ao homem que nela vive e se produz no cotidiano das suas ruas, das suas construções, no seu conjunto. As cidades, infelizmente, “não são e nunca foram apenas a humanidade ‘em sua melhor forma’. As sociedades humanas possuem contradições e conflitos [...]. É também nas cidades onde se concentram tais contradições e conflitos.” (PANERAI, 2006, p. 155).

A literatura é pródiga em demonstrar essas contradições, essa pluralidade das cidades, que a história do homem se faz no seu meio de vivência, como observa Freyre (1998, p. 192)

[...] a outros viajantes da época, a cidade de São Paulo, mesmo com as janelas envidraçadas, pareceu cidade um tanto triste. Mais triste, decerto, que a Bahia, onde talvez fosse menor o número de vidraças e maior o de gelosias; mas onde as casas tinham no alto terraços para o mar. Onde as noites tinham mais luz com o farto azeite de peixe. Os dias, mais sol.

Notadamente, não se desvincula a cidade do citadino; é na cidade que os seus direitos devem ser exercidos e é nela que os seus anseios devem se realizar. A projeção da cidade deve extravasar o seu sentido técnico para alcançar e compreender o sentido emblemático do

50 BAUDELAIRE Charles. In: Pequenos poemas em prosa.Trad. Dorothée de Bruchard. Florianópolis: UFSC, 1988. Disponível em: <http://catarse53.blogspot.com/2007/10/o-mau-vidraceiro.html>. Acesso em: 11 jul. 2007.

homem, no seu individualismo e no seu plural, quando o seu caminho se mistura a outros caminhos e quando o seu sonhar se incorpora a outros e aos dos outros.

As múltiplas facetas do homem não se entrincheiram nos direitos humanos previstos pela norma, pois o sentido do homem é plurívoco e, como tal, deve ser a sua cidade incontida nos seus limites para abrigar o desmesurado contorno do homem. A utilidade da lei, no dizer de Bentham51, “é alcançar a maior felicidade para o maior número”, e, quando a norma não tem esse objetivo ou não o alcança, não se pode impedir que a cidade o alcance, permitindo aos seus habitantes que exercitem os seus direitos.