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3 DIREITO À MORADIA COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA

3.4 Direito à moradia como fundamento da Constituição brasileira

3.4.3 Moradia – um direito difuso

O “ser humano não pode deixar de edificar e morar, ou seja, ter uma moradia onde vive sem algo a mais (ou a menos) que ele próprio: sua relação com o possível como com o

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imaginário”, diz Lefébvre (2004, p. 81), já demonstrando a importância da moradia; sob o ângulo jurídico, implica reconhecer a sua natureza difusa, ou seja, metaindividual.

Os interesses difusos ultrapassam a individualidade do ser humano. Compreendidos como metaindividuais, exatamente por exceder a atuação individual e se projetarem na ordem coletiva, são tidos como direitos de terceira geração, que se integram ao Estado Democrático de Direito. Há autores que tratam os interesses difusos como coletivos, porque entendem haver identidade entre eles, por traduzirem a mesma realidade.

Em uma distinção rápida, apenas para melhor encaminhar o texto, os direitos coletivos revelam interesses comuns a uma realidade coletiva (profissão, categoria profissional, família). Tratam do exercício coletivo de interesses coletivos, resultantes da projeção corporativa do homem. Os difusos extrapolam o indivíduo, mas o homem é considerado ser humano, cujos interesses não se unificam em uma coletividade. Quando está presente o vínculo associativo, como nos interesses comuns de grupos familiar, empresarial e corporativo, o direito é coletivo. Ausente o interesse associativo, inarredável nos direitos coletivos, encontrar-se-á o direito difuso, que alcança um conjunto abstrato de pessoas, uma série indeterminada e aberta de indivíduos.

Os direitos difusos, tidos, na atualidade, como de terceira geração, suplantam o interesse público. Estão inseridos no contexto do Estado Democrático de Direito e, sem dúvida, superam a dicotomia público e privado. Não se pode ignorar que os interesses difusos sempre existiram, pois sempre existiram direitos que não puderam, e não podem, ser objeto de apropriação individual, como, por exemplo, o ar e o meio ambiente. Os sistemas jurídicos estavam centrados na tutela do indivíduo, por isso se dizia, equivocadamente, que se um direito é de todos, não é de ninguém, daí não poder ser tutelado.

O primeiro passo para a revelação desses interesses difusos “deu-se com o advento da Revolução Industrial, e a conseqüente constatação de que os valores tradicionais, individualistas, no século XIX, não sobreviveriam muito tempo, sufocados ao peso de uma sociedade ‘de massa’”. (MANCUSO, 1988, p. 63).

Desde que o homem passou a viver em sociedade, existem os direitos difusos, sem, é claro, as concepções, diferenciações e tipologias de hoje. A evolução do homem e, principalmente, a sua conscientização sobre a própria existência e a vida em grupo evidenciaram esses direitos, na medida em que afloram temas que o têm (o homem) como referência. A discussão acerca da qualidade de vida, da preservação do meio ambiente, da destituição da propriedade ou posse da água, que nasce ou apenas tem passagem pelo imóvel,

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da proteção ecológica, do respeito às minorias demonstram o respeito do homem pelo homem e, como homem, expõem interesses difusos.

A sociedade evoluiu e, com ela, o direito, solucionando conflitos, normatizando atos, fatos, prevenindo a instabilidade social. Não poderia, pois, deixar de reconhecer os interesses vitais que alcançam as relações sociais, diante das disposições da Constituição vigente. Nesse caminho, a previsão da função social da propriedade e da cidade provocou o surgimento de uma nova concepção de urbanismo, submetido, agora, a essas regras constitucionais, a fim de prover bem-estar aos habitantes.

A Constituição Federal de 1988 traz no seu artigo 182 um imperativo à política urbana executada pelo município para que ordene o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garanta o bem-estar dos seus habitantes. Não há como assegurar bem-estar aos habitantes sem uma defesa adequada do meio ambiente, por exemplo. O que se nota é que, axiologicamente, a Constituição de 1988 realçou o bem-estar do homem urbano e, por conseguinte, o seu direito a uma sadia qualidade de vida.

Evidentemente, ao assegurar uma função social à propriedade e à cidade, a Constituição garantiu as mínimas condições de vida a cada indivíduo. Impossível compreender as disposições constitucionais, sem associar o indivíduo ao exercício de direitos e garantias, que permitam a sua integração na sociedade e o direito a uma vida digna, com a dotação mínima de alimentação, educação, saúde, moradia, transporte. Esses direitos sociais são difusos e dependem de atos do governo para a sua efetividade, como se observa, por exemplo, na saúde, educação e transporte públicos.

Esses direitos, como se nota, não são individuais; são trans ou metaindividuais, pois excedem o direito puramente individual e, por isso, não pertencem a uma só pessoa; mas a todos os cidadãos, considerados singularmente na coletividade. E essa coletividade será ferida, se um desses direitos for lesado. Porém, quando um direito é satisfeito, a sociedade, também, estará satisfeita. Infere-se, pois, dessa conjuntura que a indivisibilidade característica dos direitos difusos resulta na compreensão de que são direitos transindividuais, ou seja, direitos sociais, cujo destinatário é o homem singular no ambiente social.

A concepção de indivíduo é, de modo geral, inclusive no direito, estampada em/com um contexto singular e subjetivo. Ultrapassar o direito que nasce e morre com e no indivíduo não é o comum da ciência, que constrói a maior parte de suas críticas, análises e percepções em bases singulares, ainda que, para isso, faça, muitas vezes, análise da sociedade. A

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compreensão do coletivo, mesmo não estando apartada das ciências sociais, não constitui a gênese ou seu elemento de estudo inicial e final.

O homem, sem dúvida, é o foco de ações, mas a concepção dos seus direitos não pode, jamais, cingir-se ao entendimento privatista, devendo subjugar-se ao público, concebido, aqui, como o contraponto ao que é individual. Evidentemente, que a norma jurídica não é estática e a sua amplitude também não, pois “o direito não funciona se estiver distante da realidade” (OLIVEIRA, 2007, p. 71).

Como o legislador não pode certificar-se da realidade futura, incluindo o próprio amanhã, não obstante possa imaginá-los, os fatos vindouros não podem ser objetos de leis. É muito difícil englobar em uma legislação a totalidade de direitos do homem. Em face disso, é comum ao direito tratar de novos direitos, em especial aqueles que são extraídos da sociedade, pois o Estado Democrático de Direito não se desvincula do que é público e não pode, sob pena de não existir, apartar-se dos primados da justiça.

O direito transindividual projeta-se além do homem e se agrega à sociedade, integrando-se ao Estado Social preconizado pela CF/1988, cuja característica é a intervenção na economia para tutelar os interesses sociais. Os direitos do homem, observa Bobbio (2004), são um fenômeno social e podem ser analisados sob vários pontos de vista. E essa multiplicação de direitos ocorreu de três modos:

[...] a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, como velho, doente, etc. (BOBBIO, 2004, p. 83). A multiplicação de direitos a que se refere Bobbio (2004) encarta, sem dúvida, o direito à moradia, pois, no campo dos direitos sociais nota-se, com mais ênfase, a proliferação antes referida. A transformação da sociedade originou os direitos sociais e as suas exigências, que só se justificam como conseqüência dessa transformação.

Classificar o direito à moradia, como difuso, decorre da sua qualificação em direito social, prevista no artigo 6º da CF/1988. Os direitos transindividuais têm, naturalmente, dimensão social e configuram novas categorias política e jurídica e, a par de tratar-se de uma situação aflitiva para o povo brasileiro, o fato de não estarem efetivados não os diminui. Devem ser encontrados meios para que esses direitos sejam efetivados e consolidado o Estado Social, preconizado pela CF/1988. O homem, cujos direitos nasceram da filosofia jusnaturalista, que

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reconhecendo o estado da natureza admite a existência de poucos e essenciais direitos, como o direito à vida, à propriedade, à liberdade, tem, constitucionalmente, um rol de direitos, cuja efetividade, no que lhe cabe, deve ser proporcionada pelo Poder público.

A evolução do mundo trouxe exigências que a sociedade não pode ignorar; e não é porque a lei não as previu, ou conheceu, que não se podem acolhê-las e classificar ou reclassificar direitos não considerados fundamentais em um dado momento da história, mas que, com o progresso e o enriquecimento do pensamento humanista, tornaram-se imprescindíveis para o homem, ultrapassando a sua individualidade.

“É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; [...]” lembra Arendt (2003), e o homem não pode ser considerado uma mesma e só pessoa ao longo da sua existência, pois ele “é capaz de agir”, o que significa “que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (ARENDT, 2003, p. 189-191) e, diante dessas constatações, o direito transindividual – ultrapassando o indivíduo – é uma realidade da vida e da norma legal.

Os interesses sociais integram o Estado Democrático de Direito, que não existe dissociado dos valores fundamentais para a existência do homem, sem que se busque atender às necessidades coletivas e difusas do seu povo. O direito à moradia não é um interesse individual; é um direito social, mencionado já no preâmbulo da Constituição Federal, como requisito para a instituição do Estado Democrático de Direito.

A vida e os valores humanos – dentre os quais se insere o direito à moradia – não são dissociados e nem entendidos e disciplinados legalmente na sua individualidade, visto que a transcendem. As palavras não exprimem o seu conteúdo por sua literalidade, pois a sua “significação é o início, o sentido é o fim.”, adverte Lefébvre (1966, p. 183), e assim é que a moradia, pelo seu sentido e por tudo mais que foi dito, é um direito metaindividual, embora a literalidade das disposições constitucionais não a enquadre como tal.

Reduzir a linguagem e, mais que isso, o pensamento e a compreensão sobre o direito à moradia não se compatibiliza com a primazia da realidade. A análise do direito à moradia comporta uma reflexão da sua importância para o homem e para o mundo. “Abrir um caminho para o pensamento e para a prática”, afirma Lefébvre (1966), “quer dizer que a análise passa entre o limitado e o ilimitado, a forma demasiado definida e o informe.” (LEFÉBVRE, 1966, p. 171).

É com esse espírito interpretativo que se analisam o direito à moradia, como difuso, e a sua proteção e defesa por todos, e cada um, como critério para, na dogmática jurídica, realizar

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o direito social a uma sadia e digna qualidade de vida, fundamento dos direitos individuais em sua característica transindividual.

A democracia significa a igualdade “no exercício dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. A busca democrática requer fundamentalmente o exercício, em igualdade de condições dos direitos humanos elementares.” (PIOVESAN, 2003, p. 203).

O direito à moradia está inserido na concepção de democracia e, do mesmo modo que os direitos subjetivos, o seu reconhecimento, como difuso e integrante da ordem ético-normativa do país, impõe, também, acolhê-lo qual um valor sobrelevado à condição de res omnium, e não res nullius, merecedora de tutela judicial, como bem da vida que é.