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A partir a Primeira Guerra Mundial, em 1914, o mundo procurou ordenar o crescimento exagerado das cidades, buscando atender especialmente as condições higiênicas da moradia, alinhamento das novas construções, regulamentação dos estabelecimentos insalubres ou inconvenientes.

No Brasil, em 1937, surgiu o primeiro regulamento urbano, o Decreto-lei nº. 58/1937, motivado por situações, como: a) número exagerado de loteamentos irregulares, sem controle do cadastro dos proprietários; b) tentativa de proteger o consumidor contra o mau loteador. O sistema registral no Brasil sempre foi precário e somente a partir da Lei nº. 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), e suas alterações, esse sistema passou a ter matrícula para cadastrar os imóveis nacionais.

26 PINTAUDI, Silvana Maria. Urbanismo: é possível projetar um futuro coletivo para a cidade? IX Coloquio Internacional de Geocrítica. Porto Alegre: UFGRS, maio/2007

Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/9porto/silvana.htm>. Acesso em: 10 mar. 2007.

27 Think now of a flower. ‘A rose does not know that it is a rose.’ Obviously, a city does not present itself in the same way as a flower, ignorant of its own beauty. It has, after all, been ‘composed’ by people, by well-defined groups. All the same, it has none of the intentional character of an ‘art object’.

Essa questão legal foi resolvida. Entretanto, a questão pessoal, se é que assim se pode chamar aquela que envolve os cidadãos, não se resolve com leis. As diferenças entre as pessoas, tanto materiais, culturais, familiares, educacionais quanto de acesso à saúde, habitação e ao lazer são acentuadas pela concentração de renda.

Convergem nesse sentido, o desemprego, a pobreza e a degradação dos valores sociais e morais. Desse pano de fundo, surge um horizonte que mostra o imperativo da redistribuição de riqueza, além de políticas sociais e os seus programas para minorar a pobreza dentro das cidades.

Na cidade, estão aqueles que pertencem a uma sociedade e os excluídos socialmente. A exclusão social resulta de uma dificuldade, para não dizer impossibilidade, de partilhar os bens comuns oriundos das relações econômicas, sociais, culturais e políticas. A exclusão, por mais que não se queira, é parte integrante do sistema social, que leva à privação de uma coletividade, decorrente da pobreza, discriminação, subalternidade, falta de eqüidade, de acessibilidade e de representação política.

Os excluídos não pertencem e não se integram ao “espaço urbano da cidade dos iguais” (PESAVENTO, 2001, p. 23), configurando a dificuldade de realizar a cidadania. Essa apartação social relega o homem ao outro, ao ser à parte, ferindo o princípio da isonomia, afastando-o dos meios de consumo, bens e serviços e, o que é pior, classificando-o como um dessemelhante e, conseqüentemente, um excluído dos valores e vínculos societais pela ruptura do sentimento de pertencimento.

Em conseqüência desse quadro, surge a violência, como resultante direta, embora não exclusiva, da miséria e da desigualdade cada vez mais acentuadas, pois é visível o número crescente de desvalidos e daqueles que vivem abaixo da linha da pobreza.

É possível, então, reconhecer que é difícil se realizar o crescimento ordenado das cidades. Os espaços urbanos são caracterizados por encontros e desencontros, acertos e desacertos das políticas públicas, e a sua ocupação não segue um planejamento, até mesmo, pela impossibilidade de assim o ser, uma vez que as favelas surgem em decorrência da baixa renda e da crescente exclusão social.

Precariedade do emprego, qualificação insuficiente, incerteza do futuro, privação material, degradação moral e dessocialização são fatores que contribuem para a chamada exclusão social, que, por sua vez, leva a uma ocupação desordenada do espaço urbano, à margem do planejamento e da urbanização, que se tornam, desse modo, um vazio.

A ocupação formal atende os padrões estabelecidos no planejamento urbano, mas a ocupação informal não tem a mesma característica. O território de uma cidade é ocupado e utilizado de diversos modos. “O Poder público o divisa como espaço urbano a ser ordenado” (PESAVENTO, 2001, p. 25). Para cumprir essa ordenação, são fixados distritos e bairros, dão-se nomes a eles, as suas ruas e avenidas, estabelece-se o modo de numeração das casas; é feito um plano diretor para a cidade, com observância às leis de ocupação do solo.

Os incluídos socialmente ocupam o espaço de acordo com as regras estabelecidas pelas leis e pelo Poder público; os excluídos socialmente se opõem à cidade que se quer organizada, com bairros inseridos na sua tipologia e destinados aos incluídos. Ocorre que é muito difícil, senão impossível, controlar o aparecimento desses vácuos dentro das cidades, onde se alojam os excluídos.

Verifica-se, pois, que a ocupação da cidade ocorre na mão e na contramão do desenvolvimento social do seu povo. A ocupação pelos chamados incluídos exige investimentos na rede de ensino, hospitais etc, do Poder público, que, ao lado dos incluídos, trata com indiferença a ocupação pelos excluídos.

Esses excluídos do “espaço urbano e marginais ante a ordem social que se consolida são também dirigidos por um outro fator de segregação: trata-se da exclusão no tempo.” (PESAVENTO, 2001, p. 23). São pessoas sem história, são atores oficiosos no palco urbano, no tecido e paisagens cotidianas da cidade.

A ocupação das cidades, ao que se percebe, se dá pela mais variadas interferências e ações planejadas, ou não. Por isso, “o chão e suas circunstâncias deixam de ser um dado natural e tornam-se uma construção humana”, diz, com propriedade Sposati (2003), no prefácio ao livro Medida de cidades.28 Afirma, ainda, que:

Sobre a topografia da natureza, ergue-se uma topografia social. Para além da fluidez das relações, ela incorpora a concretude de condições e acessos como dois elementos imbricados e mutuamente dependentes. Já não se está simplesmente falando de um lugar como um vazio, mas do resultado da ocupação e da ação dos sujeitos cidadãos, ou quase-cidadãos. (SPOSATI, 2003, p. 15-16)

Na ocupação da cidade, é preciso redefinir o social e construir diariamente a cidadania. É nas cidades que está o “chão do exercício da cidadania” (KOGA, 2003, p.33), que significa

vida ativa e integrada nas relações sociais, de vizinhança, de solidariedade e de poder, não obstante ser “o local onde a diferença habita.” (MITCHELL, 2003, p. 18)29 (grifo do autor). As desigualdades sociais que levam aos diversos modos de ocupação das cidades se evidenciam pela presença, ou ausência, dos serviços públicos e, quando presentes, pela qualidade com que são prestados.

Em reportagem publicada na Revista Veja, em 16 de fevereiro de 2007, a jornalista Rosana Zakabi informa que pesquisas demonstram que a longevidade está associada à visão sempre positiva da vida e ao intenso convívio social. As relações sociais, as relações de vizinhança são importantes para a vida do homem. Assim, a ocupação das cidades, além de preservar uma ordenação no solo, deveria possibilitar o convívio entre as pessoas, independentemente de sua renda. Esta hipótese configura o modelo ideal de cidade e de vida, mas a sua realização, reconhece-se, é muito difícil.

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, Cezar Britto, em artigo na Folha de São Paulo de 11 de fevereiro de 2007, posiciona-se:

Se necessário fosse nomear a carência-síntese da sociedade brasileira, não hesitaria em apontá-la numa única palavra: justiça. Todas as demais mazelas da vida brasileira – exclusão social, analfabetismo, violência urbana, impunidade, descrédito das instituições e infinitas outras – derivam dessa insuficiência.

Os iguais e os desiguais têm os mesmos direitos. A igualdade formal prevista na Constituição precisa ser consolidada e “esse direito a ter direitos” (KOGA, 2003, p. 33) efetiva-se com a existência de lugares concretos para morar, estudar, trabalhar, divertir-se e garantia de acesso a hospitais, escolas, com possibilidade de opinar e participar.

A cidade é muito mais que o espaço físico, ocupado ou não. Ela é um lugar de vivência e sobrevivência. A ocupação das cidades, observada pelas construções residenciais, comerciais, praças, deve ser considerada, ainda, em referência aos modos de vida, serviços básicos, utilização dos terrenos e, por fim, aos contrastes que bordam ou mancham os cartões postais. O uso diferenciado da cidade mostra que esse espaço é construído e destruído, de forma desigual e contraditória e, como produto dessas desigualdades, surgem as ocupações ilegais, as favelas e os movimentos sociais urbanos, que reivindicam o acesso à cidade e à plenitude dos serviços ofertados aos incluídos socialmente. Assim, “se o direito à cidade é um clamor e

uma demanda, então ele apenas será um clamor ouvido e uma demanda com força, na medida em que existir um espaço, a partir e através do qual, esse clamor e essa demanda sejam visíveis.” (MITCHELL, 2003, p. 129)30

A cidade é um lugar com finalidade político-administrativa, mas não apenas isso. Segundo Carlos (2001), a cidade é a “materialização de relações da história dos homens, normatizada por ideologias; é forma de pensar, sentir, consumir, é modo de vida, de uma vida contraditória.” (CARLOS, 2001, p. 26).

A ocupação da cidade, além de se pautar por um plano diretor, e demais normas que tratam do assunto, deve ser pensada, também, como um direito daqueles que, embora desrespeitem o desenho planejado, têm direito a ela. Os contrastes são componentes desse cotidiano que não se faz com idéias, e, sim, com comportamentos daqueles que habitam e daqueles cuja incumbência legal é dirigir a cidade, em vista dos poderes que lhes foram conferidos pelo povo.

A cidade é um espaço de ambiência e sua imagem composta pela topografia, utilização do espaço, apropriação patrimonial, tipologias arquitetônicas, além de hospedagem de um sistema de sinais e um vocabulário dominado pelo citadino, bem como dos mais variados estilos de vida de cada qual. Nessa ambiência, e extraída dela, os poetas, músicos e historiadores traduzem seus pensamentos e emoções, demonstrando que a cidade, no todo ou nos seus fragmentos, representa, também, um lugar de lembranças e emoções.

O povo, em decorrência de sua origem, formação e cultura, se apropria, produz e se reflete em lugares, onde passa a depositar o seu afeto. A cidade, em sua ocupação, é uma composição de construções, costumes e afetos, demonstrados pela população urbana, razão de sobra para ser repensada, em especial, pelo Poder público, ao qual compete dar efetividade à função social da cidade.

Maquiavel, cujo amor pela cidade onde nasceu e por sua liberdade é conhecido em suas obras, ao ser enviado para parlamentar com os invasores de Faenza31, em 1501, encontra, neste fato, o modelo para a sua obra O príncipe. À época, afirmou que a história é a mestra dos atos humanos, especialmente dos governantes, e que o mundo sempre foi habitado por

30 If the right to the city is a cry and a demand, then it is only a cry that is heard and a demand that has force to the degree that there is a space from and within which this cry and demand is visible.

31 Faenza é uma comuna italiana da região da Emília-Romanha, província de Ravenna, com cerca de 53.369

habitantes. Estende-se por uma área de 215 km2, tendo uma densidade populacional de 248 hab/km2. Faz fronteira com Bagnacavallo, Brisighella, Castel Bolognese, Cotignola, Forlì (FC), Riolo Terme, Russi, Solarolo.

homens com as mesmas paixões, sempre existindo governantes e governados, bons e maus súditos.

Em 1513, Maquiavel, ao escrever O príncipe, afirma que “por intermédio dos seus próprios cidadãos, muito mais facilmente se conservará o governo duma cidade acostumada à liberdade, do que de qualquer outra forma.” (1991, p. 21). Nota-se que a preocupação com as cidades é universal e integra a história da humanidade.

A sua destinação ao ser humano é, também, um fato inequívoco. A forma de dirigir e realizar esse destino é que, nem sempre, encontra o ponto de equilíbrio desejado pelos citadinos, o que, todavia, insere uma obviedade, pois os homens não são iguais e, por conseguinte, seus desejos, comportamentos, emoções e paixões também são diferentes. Pensar em uma cidade ocupada por homens é admitir variadas posturas e exigências, inúmeros direitos e deveres, concebidos e aspirados por cada habitante. A cidade, então, há que buscar o senso comum dos direitos e dos deveres, sem negligenciar as leis e o tecido urbano, cuja paisagem deve contemplar as condições necessárias para a realização de uma cidadania plena.