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2.9 Plano diretor

2.9.2 Concepção do plano diretor no Estatuto da Cidade

Os movimentos sociais, a partir do final dos anos 1970, começaram a questionar os parâmetros tradicionais do planejamento urbano e impulsionaram as discussões sobre a relação entre a legislação e a cidade real e a responsabilidade pela cidade irregular, informal e clandestina.

Os debates alcançaram os mais diversos setores da sociedade e resultaram em uma proposta de reformulação das leis, objeto da Emenda Popular da Reforma Urbana que o Movimento Nacional pela Reforma Urbana encaminhou ao Congresso Constituinte em 1988, contendo novos instrumentos para o controle do uso do solo e viabilização do acesso a terra. A concepção tradicional, separando planejamento e gestão, antes objeto de conflito, pois o planejamento se cingia à esfera técnica e a gestão à dimensão política, foi substituída por um modelo resultado de múltiplos agentes com ação coordenada. Um modelo não criado em escritórios, secretarias de estado ou partidos políticos, mas, sim, por um pacto que traduz o interesse público na construção de uma cidade que todos querem e precisam.

O processo constituinte do final dos anos 1980 discutiu a autonomia municipal e a gestão democrática das cidades, nos seus variados aspectos, como, por exemplo, instrumentos de gestão urbana, relação público-privado, valorização do solo urbano e, principalmente, a necessidade de um novo arquétipo para a legislação urbanística.

Em 1988, a Constituição Federal, como resultado dessas discussões, definiu no seu artigo 182 que “a política de desenvolvimento urbano [...] tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, e,

no § 1° do mesmo artigo, “que o plano diretor [...] obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.”. A Constituição Federal de 1988 trouxe para o seu bojo a política urbana e, para o plano diretor, a legislação urbanística, com uma nova relação quanto à propriedade privada, rompendo a dicotomia, até então, existente no planejamento urbano, em que o plano e a legislação eram duas realidades diversas.

A regulação urbanística passou a ser tratada como um processo, com etapas sucessivas desde a formulação de instrumentos para realizar os objetivos e as diretrizes do plano diretor, até a sua aprovação pelas câmaras municipais, fiscalização e revisão periódicas, por meio do cotejo entre as proposições e os resultados obtidos.

O plano diretor passou, então, a observar a cidade real em seus aspectos urbanos, sociais, econômicos e ambientais, para formular hipóteses concretas de desenvolvimento e modelos de territorialização, sem se preocupar em resolver todos os problemas, mas, sim, em ser um instrumento para definir uma estratégia necessária e imediata de ação para os agentes envolvidos na construção da cidade.

A partir de 1990, surgem os primeiros planos resultantes de maior discussão e politização. Emergem de discussões sobre as desigualdades sociais na distribuição do solo urbano, que “reflete a própria estratificação do tecido social” (CASTELLS, 2000, p. 249). O Estatuto da Cidade, como um importante instrumento da política urbana, ampliou significativamente essa nova visão de plano diretor.

Não se pretende, é claro, colocar em um plano todas as soluções ou fazer dele o meio mágico para resolver o caos urbano, as desigualdades sociais, a violência e os demais problemas presentes na cidade, os quais passam, obrigatoriamente, por atitudes provenientes de uma necessária junção política e social. O plano veio possibilitar, e exigir, maior clareza nas decisões acerca do uso da terra urbana, resultando em maior transparência administrativa do poder municipal, aliando a isso uma via de participação popular durante o processo de sua elaboração e votação e, principalmente, na sua realização e gestão.

O plano diretor é, constitucionalmente, o instrumento básico da política urbana e se encontra disciplinado no Estatuto da Cidade, nos artigos 39 a 42. Segundo a Constituição Federal de 1988, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor. Este, conforme princípios e diretrizes expressos no Estatuto da Cidade, deve resultar de um amplo processo de

participação da população e de associações representativas dos vários segmentos econômicos e sociais.

A Constituição Brasileira trouxe “para dentro do plano diretor a legislação urbanística, definindo uma nova relação desta com a propriedade privada.” (MENDONÇA, 2000, p. 153), determinando que a propriedade urbana cumpra sua função social no contexto urbano.

O plano diretor é um documento técnico, que deve ser construído coletivamente por meio de debates com os cidadãos, de conferências das cidades, audiências públicas, plebiscitos, referendos, orçamentos participativos obrigatórios, tudo para dar cumprimento à função social da cidade e, por conseguinte, fazê-la ao gosto e de acordo com as necessidades dos seus habitantes, respeitando-se as normas legais e o interesse público.

Nessa conjuntura, é necessário que os cidadãos sejam cônscios dos seus direitos e deveres e possam compreender a política e o seu exercício, como integrantes da cidadania e, com base nisso, cobrar atitudes governamentais em prol do povo, que, afinal, é a razão de existir do Estado, como seu destinatário e provedor dos seus recursos. Vale a lembrança de Brecht:

O pior analfabeto é o analfabeto político.

Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão,

do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia

a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta,

o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista,

pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo54.

Embora existam leis, não é incomum ser ignorada a sua aplicabilidade. Por isso, a mera existência de determinação legal sobre o plano diretor não significa a sua eficácia, cabendo ao povo o exercício do seu papel nessa conjuntura de discussão, elaboração, aprovação e fiscalização de sua realização, a fim de que não se torne mais um dos instrumentos da política urbana presentes no ordenamento jurídico, com a antiga simbologia de tratar da ordenação das cidades, mas sem efetividade real para tanto.